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6 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

A ICAR e os milagres

O culto necrófilo de JC está de acordo com a demência veneradora que a ICAR presta aos mártires e aos poderes que atribui aos mortos. A morte é, aliás, o alimento da fé, a droga que sustenta a religião e o medo que submete os vivos.

A ICAR recusa milagres de vivos, destina-os aos mortos. Os santos são padrinhos da Mafia que rodeia Deus. Quem acredita na catadupa de milagres obrados após JP2 ter sido alcandorado ao trono pontifício pelo Opus Dei, terá de interrogar-se como puderam obrar milagres patifes de alto coturno como Pio IX ou Escrivá.

O negócio dos milagres é a ilustração da mentalidade católica: a atenção que se solicita, a cunha que se mete, o lugarzinho que se mendiga. O padre-nosso é o cabrito da dívida, a ave-maria o queijinho da subserviência, a novena e o terço o óbolo para o partido político sem cuidar onde se perde ou o destino que lhe cabe.

Às vezes os milagres acontecem por mérito próprio mas urge que se atribuam ao divino para lhe dar prestígio e aumentar a clientela. «Graças a Deus» – grunhem ministros a piscar o olho aos padres, invertebrados a dar graxa ao patrão, locutores a despedirem-se dos beatos ou para serem ouvidos por patrões comprometidos com o clero.

Um deus que se deixa subornar por orações, que só ouve os gritos de desesperados por intermédio de cadáveres bem vistos no Vaticano, é um deus venal e falso, uma criatura pusilânime e interesseira, um aldrabão de feira e um crápula.

O deus dos padres, que manda a doença para que um bem-aventurado lhe peça a cura, é um biltre que faz chantagem, um corrupto que aguarda a paga, um ser repugnante que usa poder discricionário e se diverte com o sofrimento humano.

5 de Dezembro, 2005 Ricardo Alves

Um clerical anglófilo e francófobo

João Carlos Espada (JCE) constitui para mim uma referência intelectual de gabarito comparável a João César das Neves e Boaventura Sousa Santos. Sou um leitor habitual das suas colunas sociais do Expresso, onde fala sempre de clubes britânicos, idas à missa e outros comportamentos exóticos que me fascinam. No seu artigo deste Sábado, JCE defende a permanência dos crucifixos nas salas de aula das escolas públicas a partir de princípios políticos comunitaristas e tradicionalistas. O artigo consiste numa sucessão de estorietas sonsas em segunda mão, das quais não se segue qualquer conclusão óbvia, a não ser a de aceitar submissamente os preconceitos e constrangimentos nelas evocados.

A primeira estorieta, contada de forma deliberadamente capciosa, refere um artigo de Umberto Eco. A acreditar em JCE, o escritor italiano veria «com crescente preocupação o ataque ao cristianismo em nome do laicismo», um ataque que conduziria a um «vazio» logo preenchido pelo «paganismo», por leituras do «Código Da Vinci» e finalmente pelo fascismo, e ao qual Umberto Eco resistiria fazendo o presépio com o neto. Como rejeito tanto o cristianismo como o pós-modernismo, afoitei-me a procurar o artigo de Umberto Eco. Não foi tempo perdido: na realidade, JCE induziu os seus leitores em erro. O escritor italiano não refere qualquer «ataque do laicismo» ao cristianismo: esmera-se a condenar as tontices pós-modernistas da «Nova Era» e a fúria consumista (o que eu compreendo e aplaudo) e a opôr-lhe a religião, que considera uma necessidade natural da espécie humana (o que eu já não acompanho).

A segunda estorieta diz respeito a David Cameron, o candidato favorito à liderança do Partido Conservador. JCE, fanático dos princípios anglo-saxónicos segundo os quais «o pessoal é político» e a identidade religiosa deve ser explorada para fins eleitorais, elogia Cameron por este «afirmar claramente a sua fé cristã» numa entrevista televisiva. Creio que JCE não se apercebe de que quem legitima a exibição pública do privado, quer este seja o privado religioso ou familiar, justifica também a devassa pública da intimidade de quem assim se exibe, e dos seus desvios aos mandamentos religiosos ou às lealdades conjugais. Também por isso e ao contrário de JCE, parece-me preferível que o debate político se centre em questões de interesse público, e não em sentimentos privados, sejam eles a fé ou a «identidade» religiosa.

A terceira estorieta é sobre outro cronista do Daily Telegraph que, aparentemente, protestou contra a retirada de símbolos religiosos dos espaços públicos, embora não seja claro se as escolas britânicas aí se incluem. Esta estorieta parece-me suspeita, quanto mais não seja porque não é um hábito muito protestante andar a espalhar símbolos religiosos, particularmente crucifixos, pelas escolas.

A quarta estorieta é sobre a Elizabeth, por acaso rainha do Reino Unido, e líder formal da Igreja Anglicana. JCE, que (por preguiça?) não consegue escrever um artigo inteiro sem citar longamente terceiros, transcreve uma passagem de um discurso da senhora, em que ela nos diz que «todas as pessoas (…) podem encontrar significado e propósito no Evangelho de Jesus Cristo». Nem Elizabeth nem JCE parecem querer conceder-nos a possibilidade de recusarmos o cristianismo como referência de vida, uma opção que, no entanto, constitui para muitos de nós uma consequência elementar da liberdade de consciência.

No parágrafo final, JCE tira uma conclusão que não surpreenderá os seus leitores habituais: a culpa é dos franceses. Se fosse tudo como em Inglaterra, se todos tentássemos ser lordes britânicos e falar com batatas quentes na boca, se todos espumássemos de raiva cada vez que ouvíssemos falar francês ou falar da França (seja do laicismo ou dos cruássans), então o mundo seria um paraíso. Mais, JCE sugere que a solução perfeita será a adaptação das leis gerais do Estado a todas as «realidades locais» e «circunstâncias particulares», incluindo naturalmente a adaptação da Constituição a todas as tradições religiosas e costumes comunitários. Porém, se seguíssemos esta sugestão, não apenas os crucifixos continuariam nas escolas públicas portuguesas de todo o país, como seriam substituídos na península de Setúbal pela foice e pelo martelo, e na Madeira seriam acompanhados pelo retrato de Alberto João Jardim. Esta perspectiva horroriza-me, mas parece maravilhar JCE. Sugiro a JCE que seja mais ousado ainda e assuma que defende também que as leis que criminalizam as mutilações genitais efectuadas a menores sejam adaptadas às tradições das comunidades. Não é suficiente manter em vigor uma Concordata que em cada alínea faz uma discriminação positiva a favor da ICAR: cada comunidade que faça as suas leis. Com JCE como Grande Timoneiro, voltaremos à Idade Média. Em frente, para trás!
5 de Dezembro, 2005 Ricardo Alves

Só a laicidade garante a liberdade de consciência de todos

Num artigo publicado na quarta-feira no Diário de Notícias e na sexta-feira no Público, António Pinheiro Torres apresentou alguns argumentos em defesa da permanência de crucifixos nas salas de aula das escolas públicas portuguesas.

Nesse artigo, Pinheiro Torres assegura-nos de que «na retirada dos crucifixos, aquilo a que assistimos é (…) a adopção do laicismo (aquela atitude que consiste em afastar a religião do espaço público) como religião do Estado». No entanto, um preceito metapolítico de neutralidade estatal – a laicidade – não pode ser considerado uma religião, pois não constitui, por si só, uma forma de relação com o sobrenatural ou uma sistematização de mitos sobre o universo. O laicismo, ao contrário das religiões (sobretudo as mais clericais como o catolicismo ou o islamismo), não obriga o cidadão a uma crença qualquer – pelo contrário, liberta-o de coacções (como a imposição de crucifixos em espaços estatais) para que possa acreditar, ou não, naquilo que quiser.

Pinheiro Torres afirma ainda que «o Estado é incompetente em matéria religiosa, não podendo imiscuir-se na fé individual» e que «[para os católicos] o ponto fundamental é este: o da liberdade». Concordo com a primeira afirmação, e regozijo-me com a segunda. Mas compete justamente aos católicos mostrar que não valorizam apenas a liberdade de que gozam quando manifestam a sua fé, e que também respeitam a liberdade dos outros de não lhes ser imposta uma fé. Para tal, não podem desejar que o Estado manifeste uma fé, como continuará a acontecer enquanto tivermos crucifixos em salas de aula de escolas públicas. Portanto, que se cumpra a Constituição e que se retirem os crucifixos.
4 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

Andam créus no Diário Ateísta

Há na última vaga de peregrinos em romagem ao Diário Ateísta uma sanha reforçada, um proselitismo agudo e uma demência mística que não era usual.

Acredito que os confessores os isentaram das orações e que a penitência, após confissão bem feita, se converteu, para expiação dos pecados, em peregrinação ao blog dos ateus.

É uma forma de porem a fé à prova, sem necessidade de genuflexões.

Substituem os pai-nossos e ave-marias com que embrutecem o espírito e desencardem a alma por insultos aos infiéis, ameaças aos blasfemos e profecias sobre o destino dos sacrílegos. São caminhos tão sinuosos como os da fé.

Uma santa alimária já profetizou a morte deste modesto escriba a apelar ao deus dele, enquanto uma rata de sacristia ameaçou golpear-me com os pés todos.

Os directores espirituais, uma espécie de polícias da consciência, conhecem os riscos que correm as ovelhas, capazes de se tresmalharem do redil, mas é um risco que vale a pena. As que resistirem ao Diário Ateísta ficam aptas para a insanidade, o martírio e a violência com que julgam ganhar o Paraíso.

Às vezes parecem sair disparadas da missa com a hóstia mal deglutida, ainda húmidas da aspersão do hissope, cheias de Espírito Santo, em loucas arremetidas contra os ateus.

Que sejam bem-vindas tais ovelhas. Nada temos contra os crentes, apenas combatemos as crenças e os trampolineiros da fé.

4 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Dois milénios de obscurantismo: a escolástica pré tomista

Como referi logo no primeiro post devotado ao tema, considero que o início da longa «noite de mil anos» cristã se situa no Natal de 800, data da coroação de Carlos Magno por Leão III, que investiu o rei franco da suprema autoridade temporal sobre os povos cristãos do Ocidente. Simultaneamente Leão III conseguiu desta forma cimentar o poder da Igreja na Europa medieval, que já detinha um poder económico considerável uma vez que a Igreja de Roma, a única instituição que sobreviveu à queda do Império Romano, possuía cerca de um terço das áreas cultiváveis, a base da riqueza medieval, da Europa ocidental.

Carlos Magno (768-814) reinava assim sobre um continente europeu fragmentado e desorganizado. Para restaurar o império, precisava do apoio da Igreja, a única estrutura organizada sobrevivente. A consequência cultural e civilizacional da união entre a Igreja e o Estado foi o que alguns apelidam de renascimento carolíngio que na realidade se traduziu no início de um obscurantismo de que o Ocidente só começou a sair na Renascença. Um longo período da História em que a civilização europeia cristã foi acorrentada aos dogmas das Escrituras e sujeita a vigilância constante e repressiva pela Igreja.

De facto, a supremacia total da Igreja sobre o pensamento da época, que se traduziu não só na asfixia na difusão do conhecimento como na perseguição de quem diferisse uma vírgula das emanações da Igreja, deve-se a Carlos Magno que criou uma quase obrigatoriedade de fornecer instrução aos cidadãos europeus por parte da Igreja. Pretendendo imitar o Império Romano e assegurar a unidade do seu vasto império, como a única estrutura sobrevivente passível de tal tarefa era a Igreja, encarregou-a de educar religiosamente os povos bárbaros que o constituíam. Para além disso Carlos Magno precisava urgentemente de preparar uma classe dirigente e, em especial, de dispor de funcionários letrados, capazes de cumprir tarefas que assegurassem a funcionalidade do império.

Assim, criou um grande número de escolas em mosteiros, conventos e abadias, para além de fundar, junto da sua corte e no seu próprio palácio, a chamada Escola Palatina, precursora das Universidades (sob domínio católico, claro) que começaram a surgir na Europa a partir do século XII. Estas escolas deveriam ser presididas por um eclesiástico, scholasticus, dependente directamente do bispo, daí o nome de escolástica dado à doutrina católica a partir do século IX.

Os traços característicos da escolástica são, tal como na patrística, a subordinação à teologia do pensamento antigo, especialmente dos filósofos gregos, Platão, mais concretamente o neoplatonismo, na escolástica pré-tomista, Aristóteles na escolástica tomista e de novo o neoplatonismo na versão agostiniana do pós Tomás de Aquino. Em todas as vertentes da escolástica afirma-se a supremacia da Igreja em relação às instituições seculares, nomeadamente defende-se (e implementa-se) que o direito deve ser elaborado a partir da teologia, pois Deus é o seu fundamento.

Um dos pomos de discórdia entre os vários períodos da escolástica tem a ver com o livre arbítrio, uma vez que para os neoplatónicos do período inicial da Escolástica, tanto a vontade, como a razão de Deus, determinavam o justo, pois só «Deus é criador do Justo». Daí serem chamados de voluntaristas. Já a linha tomista é não-voluntarista, pois o que determina a justiça é a natureza das coisas e a natureza racional do homem. Nesse sentido, Deus é apenas conselheiro e guia do Justo.

O teólogo mais proeminente do período inicial da escolástica é Scoto Eriúgena, um teólogo originário da Irlanda, dita Scotia maior, Eriu em língua céltica, daí o nome de Scoto Eriúgena. Em 874 é chamado à corte de Carlos o Calvo, para presidir e leccionar na escola palatina. A sua obra principal, De Divisione Naturae, (847)uma obra marcadamente neoplatónica, com uma interpretação realista dos universais (um conceito mental, a natureza intrínseca das realidades expressas por palavras universais como homem, árvore, animal, etc.), foi posteriormente condenada pela Igreja em 1225…

O facto do saber neste período medieval partir exclusivamente dos clássicos e ser reproduzido com muita interpolação em enciclopédias sortidas, de acordo com o autor «copista» mas seguindo as piedosa censura proposta por Agostinho, impediu a inovação do conhecimento. Por outro lado como se procedia à «purga» dos clássicos de forma a «comprovar» as opiniões da Igreja muito do conhecimento perdeu-se, irremediavelmente não fora ter sido conservado pela civilização árabe. Foi um período em que a aversão pelo empirismo propiciou o desenvolvimento de lendas sortidas, em que se acreditava nas coisas mais mirabolantes como são exemplo os bestiários medievais. Estas obras compiladas por monges pretendiam, como não podia deixar de ser, ensinar ao homem o caminho da redenção, e atribuiam a cada animal um significado místico, tendo como base as Sagradas Escrituras. Nas páginas dos bestiários abundam animais míticos como a fénix, o unicórnio, a sereia, cavalos alados e afins. Lendas como a do reino de Prestes João, um mítico reino cristão situado «para lá da Pérsia e da Arménia», governado por um rei-sacerdote denominado Iohannes Presbyter, descendente de um dos Reis Magos, propagada por Hugo de Gebel, bispo de uma colónia cristã no Líbano, preenchiam o imaginário dos europeus oprimidos e crédulos.

Foi um período de obscurantismo supersticioso em que reinou o maravilhoso, uma fuga ao insuportável quotidiano determinado estritamente pela Igreja, o mirabilis (o maravilhoso de origens pré-cristãs), o magicus (o sobrenatural maléfico) e o miraculosus (o maravilhoso cristão, o milagre que ainda hoje perdura).

De facto, a característica principal deste período escolástico pré-tomista, que se estendeu até ao século XIII, é a luta dos teólogos mais influentes, ou seja, os místicos, contra a ciência e a filosofia por eles considerada um resíduo pagão, uma distracção mundana, uma demonstração de vaidade e orgulho intoleráveis num cristão. Mistícos bem representados por São Pedro Damião no século XI e São Bernardo de Claraval (ou Clairvaux) no século XII.

Este último, que pregava a ignorância piedosa afirmando que «Deus não obedece à lei ordinária», combateu especialmente a linha filosófica dos chamados dialécticos, escola de pensamento cristão iniciada por Anselmo de Aosta (1033-1109), que cometiam a heresia de advogarem o uso da razão.

Segundo Bernardo, estes «hereges» «desvirtuavam a fé exigida pelos mistérios de Deus» e perseguiu Pedro Abelardo, o sucessor de Anselmo no uso blasfemo da razão, que, acusado de heresia, foi condenado em dois concílios, Soissons e Sens.

3 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Zâmbia bane IURD

Na passada terça feira a Igreja Universal do Reino de Deus foi banida na Zâmbia depois de ser acusada de praticar satanismo e sacrifícios humanos. Já em 1997 o governo da Zâmbia tinha banido a IURD, por «práticas anti-cristãs», mas esta apelou da sentença obtendo a revogação da decisão no Supremo Tribunal.

O Ministro do Interior da Zâmbia, Peter Mumba, informou os repórteres que «O governo decidiu suspender as operações da Igreja na Zâmbia com efeitos imediatos, (…) de forma a permitir investigações das alegações, que consideramos muito sérias».

A decisão governamental foi tomada escassos dias depois de milhares de pessoas se terem manifestado violentamente em frente a um dos templos da IURD na capital, Lusaka, devido à existência de rumores de que existiriam pessoas raptadas, prestes a serem sacrificadas, no seu interior. Depois de a polícia ter sossegado os ânimos dos manifestantes, os dois homens que a multidão afirmava terem sido raptados para rituais satânicos, sairam, pintados dos pés à cabeça, de dentro do edifício. Ambos não se recordavam do que lhes tinha acontecido nem como tinham ido parar ao interior da Igreja.

No dia seguinte uma multidão incendiou uma igreja da IURD em Kanyama, uma cidade ao sul de Lusaka, e marchou para uma recém-construída catedral de muitos milhões de dólares que a IURD era suposta inaugurar na semana que decorreu.

3 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Dois milénios de obscurantismo – a patrística

Como a própria Enciclopédia Católica Popular indica, a Idade Média foi um período de total domínio da Igreja Católica que imprimiu «à Europa a visão teocêntrica do mundo, o ideal do império sujeito ao Papado (Cris-tandade) e a organização da vida do povo em torno dos princípios doutrinais e morais do Cristianismo». Os ecos desta «longa noite de mil anos», uma época de trevas e de obscurantismo, um tempo em que o homem, marcado indelevelmente pelo pecado original, morre para fazer viver Deus, ainda hoje se imprimem na sociedade actual, especialmente no Sul da Europa que a Reforma protestante não libertou da asfixia intelectual imposta pela Igreja de Roma.

De facto, se as culturas gregas consagraram como valores fundamentais o saber e a razão, o cristianismo procurou contrapor aos mesmos a superioridade da Fé revelada. Assim, o abandono do saber e da razão e a subordinação (e asfixia) de todo o conhecimento à religião marcou o pensamento europeu durante a Idade Média. Os únicos pensamentos «originais» que surgem, especialmente na Alta Idade Média (até ao século X), têm a ver com temas cristãos, tais como a providência e revelação divinas, a criação a partir do nada (creatio ex nihilo) e afins.

Podemos dividir a cultura cristã medieval em dois períodos, um designado por Patrística (séculos II-VIII), porquanto representa o pensamento dos pais da Igreja, os construtores da teologia católica e que domina na Alta Idade Média, e a Escolástica que se segue e termina com a (Baixa)Idade Média. Os expoentes destas escolas de pensamento são, como não poderia deixar de ser, Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino, respectivamente.

O De doctrina Christiana (397) do inescapável Agostinho de Hipona (354-430) será a obra que dominará toda a cultura cristã medieval, obra que tem como objectivo formar o vir Christianus dicendi peritus, o cristão que através do uso judicioso da cultura antiga aplicada às Escrituras adquire sabedoria e habilidades retóricas necessárias à sua eficiência no disseminar da doutrina cristã. Agostinho quer assim uma cultura total e directamente subordinada ao cristianismo, em que todas as manifestações da vida intelectual estão ao serviço da vida religiosa, não sendo mais que uma função desta. Para Agostinho a vida intelectual do cristão deve opor-se de forma radical à cultura tradicional dos sábios do seu tempo, à estética do letrado e à curiosidade do erudito. Todas as ciências irrelevantes para este objectivo devem ser abandonadas por pagãs ou contrárias à verdade revelada.

De facto, Agostinho viveu numa época de transição e conviveu com a cultura greco-romana que lhe serviu de inspiração, especialmente Platão, ou melhor, o neoplatonismo de Alexandria. Assim, cristianiza selectivamente a cultura greco-romana, com ênfase em Platão, extirpando o que considera erro comum de todos os filósofos antigos: a exaltação da razão, considerada a mais alta manifestação do homem. À razão Agostinho contrapunha a revelação e, traçando o caminho para o obscurantismo medieval cristão que se vai seguir, recomenda a colecção, numa só obra de preferência o que deu origem ao enciclopedismo medieval, de todos os conhecimentos do mundo clássico necessários à interpretação e ensino dos textos sagrados e ignorar (isto é, suprimir) os restantes.

Talvez a expressão Sapientia Dei, Scientia Mundi descreva os dois aspectos da cultura cristã agostiniana, o superior, a sapiência, a contemplação das «verdades eternas» divinas, e o inferior, a ciência, que consiste na interpretação dos dados sensíveis. Deveras interessante são as várias conotações que Agostinho dá à ciência, pejorativa quando corresponde a um considerado uso perverso e culpado da razão, que ocorre quando o objectivo é o conhecimento de per se, uma explicação do mundo sensível e não um meio para chegar a Deus.

A interpretação de ciência de Agostinho conjuntamente com a desvalorização da vida terrena, já que o mundo medieval não tinha qualquer valor intrínseco, era apenas uma passagem para um outro mundo, traduziu-se numa desconfiança pelos dados dos sentidos e, em particular, pelo conhecimento empírico que perduraram em toda a Alta Idade Média. O fundamento para a verdade seria unica e exclusivamente a Bíblia, a palavra revelada de Deus e quem a pusesse em dúvida um perigoso herege que urgia exterminar antes que contaminasse outrem com o seu pensamento impuro.

Para esta subordinação do conhecimento à religião contribuiu igualmente a desagregação do sistema de ensino da antiguidade clássica que acompanhou a queda do Império Romano no Ocidente. A Igreja monopolizou o conhecimento, os clérigos foram durante muito tempo os únicos letrados e as instituições de ensino romanas foram substituídas por mosteiros. O pouco ensino praticado assentava exclusivamente na interpretação da Bíblia.

De igual forma na Alta Idade Média, as bibliotecas foram transferidas para mosteiros e conventos. Aí, em húmidos scriptoria, os manuscritos eram conservados, copiados, cristãmente interpolados (o que passava por tradução à época) e ilustrados. Uma colecção de 200 volumes, criteriosamente escolhidos e censurados de acordo com a doutrina agostiniana, era considerada uma grande biblioteca. Alexandria no seu apogeu possuía 700 000 volumes…

3 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

Pios avanços na terapêutica do cancro

João Paulo II, aquele papa supersticioso, que acreditava em milagres e na bondade do Opus Dei, está a caminho da beatificação com um feito ocorrido em França.

Segundo a Agência Ecclesia, uma Irmã religiosa, vítima de cancro, obteve a cura sem explicação científica.

Este milagre vem a calhar para a carreira de santidade de JP2 pela qual zelam os meios mais conservadores da ICAR. O milagre foi adjudicado ao cadáver do Papa polaco.

Curiosamente já o santo Escrivá começou a corrida para a santidade com um milagre na mesma especialidade numa freira cuja madre superiora lhe desconhecia a doença. Em vida tinha sido um biltre ao serviço da ditadura de Franco e dos negócios da fé.

JP2 fez numerosos milagres em vida: recusou extraditar o bispo Marcinkus para prestar contas à justiça italiana na falência do Banco Ambrosiano, abafou o escândalo do assassinato do chefe da Guarda pontifícia; ocultou os motivos da morte de João Paulo I que pretendia investigar as contas do IOR (Banco do Vaticano) e que, para castigo, Deus só o deixou ser Papa 33 dias.

Já em vida, convencido de que tinha procuração divina para administrar os negócios de Cristo & Herdeiros, JP2 fazia curas com as mãos. Esses milagres não contam porque só os defuntos podem conviver com Deus. É o tráfico de influências entre cadáveres.