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24 de Junho, 2006 Palmira Silva

Igreja Católica e Holocausto – Itália II

No início dos anos 20, o Partido Popular estava prestes a formar uma coligação com o partido reformador que poderia ter estabilizado a política italiana e frustrado a tomada de poder por Mussolini. Mas nessa altura Bento XV morre e é eleito Pio XI, o Cardeal Ratti que tinha seguido atentamente o percurso do Partido Fascista.

A 2 de Outubro de 1922, o Papa Pio XI fez circular uma carta ordenando ao clero para que deixasse claro que não se identificava com o Partido Popular, o que na prática cortou qualquer oposição a Mussolini. No seguimento da ascensão de Mussolini ao poder, nesse mesmo ano, o secretário de estado do Vaticano, o cardeal Gasparri, encontrou-se em segredo com Il Duce no início de 1923, encontros em que discutiram o partido católico, que Mussolini via como um obstáculo ao domínio fascista.

Em 1924, no seguimento do assassinato do líder do Partido Socialista por fascistas, o Partido Popular juntou-se ao partido socialista na exigência de que o rei demitisse Mussolini como primeiro-ministro, e afirmou o desejo de formar um governo de coligação. Pretensão cortada cerce por Pio XI que não demorou em avisar os católicos que tal era estritamente proíbido pela lei «moral», já que é um pecado a colaboração com o mal e o socialismo era um mal maior. O Vaticano ordenou a todos os padres para abandonarem o Partido Popular. Esta posição da Igreja levou à desintegração do partido, de implantação principalmente nas áreas rurais onde o partido assentava nas estruturas eclesiásticas.

Na sua primeira encíclica, um manifesto político datado de Dezembro de 1923, «Ubi arcano Dei consilio» (Onde está o plano oculto de Deus), Pio XI, que considera dever o catolicismo permear todas as actividades humanas, apresenta a Acção Católica quasi como panaceia universal para os males do mundo, proeminentes entre eles o «modernismo moral, legal e social».

Modernismo que não reconhece nem «a posição na sociedade que Ele em pessoa atribuiu à sua Igreja», a única instituição que «pode conceber leis internacionais em harmonia com o mundo» tal «como na Idade Média», nem que «A própria origem e natureza divina da soberania da Igreja exige» que a Igreja jamais «seja sujeita a alguma autoridade ou lei, qualquer que esta seja, mesmo que essa lei seja uma que proclama certas garantias para a liberdade do pontífice romano».

Modernismo que Mussolini se encarrega de eliminar de Itália quando em 1926 declara ilegal e dissolve o então irrelevante partido católico e cumpre a sua ambição: impõe em Itália, com o apoio explícito do Vaticano, a primeira ditadura fascista. Também em Outubro de 1926 Pio XI e Mussolini dão início às negociações que culminam com a assinatura do tratado de Latrão em 11 de Fevereiro de 1929, que cumpre integralmente as exigências, políticas e não só, de Pio XI, expressas no «plano oculto de Deus». Assim, não só é criado o estado soberano do Vaticano como o catolicismo é declarado a religião oficial do país, o ensino religioso passa a ser obrigatório nas escolas italianas e é proibida a admissão em cargos públicos dos sacerdotes que abandonassem a batina. Para além disso, é oferecido uma indemnização monetária vultuosa a Pio XI, supostamente pela perda da soberania nos Estados Pontifícios.

Em 31 de Outubro de 1926, o legado pontifical Cardeal Merry del Val, declara publicamente:

«Os meus agradecimentos vão para ele (Mussolini) que segura nas mãos o governo de Itália, que, com uma visão clara da realidade, desejou e deseja que a religião seja respeitada, honrada e praticada. Visivelmente protegido por Deus ele melhorou visivelmente a sorte da nação, aumentando o seu prestígio no mundo».

24 de Junho, 2006 Palmira Silva

Igreja Católica e Holocausto – Itália


«Devemos-nos perguntar se a perseguição do nazismo contra os judeus não teria sido facilitada pelos preconceitos anti-judaicos existentes em alguns corações e mentes cristãos». – Cardeal Edward Cassidy – Nós lembramos – uma reflexão sobre o Shoah, 1998.

Neste documento oficial do Vaticano, que supostamente é um me(i)a culpa da ICAR em relação ao Holocausto é afirmado, entre inúmeros outros revisionismos descarados da História para limpar a imagem da Igreja, que «o Papa Pio XI condenou o racismo nazista de modo solene na Encíclica Mit brennender Sorge, que foi lida nas igrejas da Alemanha no Domingo da Paixão de 1937, iniciativa que provocou ataques e sanções contra membros do clero».

Na realidade a referida encíclica, assim como a enciclica Non Abbiamo Bisogno de 29 de Junho de 1931, igualmente referida pelos revisionistas católicos como críticas dos regimes nazi e fascista respectivamente, são críticas restritas às acções que limitaram a imiscuição, política e não só, da Igreja Católica nos respectivos países.

Por outro lado, como indica a historiadora Susan Zuccotti1 , não obstante os artigos anti-judeus no jornal oficial do Vaticano, L’Osservatore Romano, terem desaparecido durante o papado de Pio XII, eram muito frequentes até finais dos anos 30, revelando abertamente os «preconceitos anti-judaicos» existentes nos corações dos papas da época.

A pesquisa exaustiva da historiadora indica ainda a reticência do L’Osservatore Romano em referir sequer as atrocidades do regime nazi, nunca mencionadas. Mesmo depois da libertação de Roma em 1944 o jornal do Vaticano nunca mencionou o genocídio levado a cabo pelo regime nazi. No entanto, todas as letras foram poucas para denunciar as agressões soviéticas.

Depois da extradição, em 16 de Outubro de 1943, de 1 259 judeus romanos, mesmo debaixo do nariz do Papa, que não mexeu alguma vez um dedo em defesa dos judeus italianos, apenas é referida a caridade universal do Papa, sem distinção de «nacionalidade, religião ou ascendência» e em Dezembro do mesmo ano aparece um débil artigo, inconsequente, que objecta contra a prisão de judeus… por italianos. A intervenção nazi nunca é mencionada!

Na sequência da série de posts sobre o Holocausto, e dado a recorrência com que as referidas encíclicas são utilizadas na defesa da Igreja, certamente por quem sabe que a maioria dos que aceitam esta lavagem da História nunca as irá ler, retomo o tema com a análise da encíclica de 1931.

Uma vez que esta se inicia com uma crítica dura da extinção da Acção Católica (e de grupos das organizações de juventude católica a ela ligados) é necessário enquadrar politicamente esta extinção. Que teve cariz essencialmente político porque alguns dos seus dirigentes tinham sido igualmente dirigentes do partido católico, o Partido Popular, opositor do Partido Fascista no início da «carreira» deste último e perseguido, por vezes sangrentamente, por Benito Mussolini. Pio XI, que nunca referiu ou condenou as atrocidades cometidas pelos fascistas contra os católicos de cor política «errada», logo nos primeiros parágrafos da encíclica apressa-se a relembrar o papel fundamental que o Vaticano e ele próprio, Pio XI, tinham tido na ascensão de Mussolini e do Partido Fascista.

De facto, Bento XV decretou em 1919 que ninguém que tivesse ocupado uma posição de responsabilidade no Partido Popular poderia ocupar qualquer cargo directivo no que viria a ser uns anos mais tarde a Acção Católica, uma organização supostamente não política sob o controlo directo dos bispos, que traça a sua origem a 1867, na Sociedade da Juventude Católica Italiana, aprovada no ano seguinte por Pio IX.

A organização foi proibida pelo Vaticano de participar na política e deste modo não lhe era permitido opor-se ao regime fascista. Pio XI, o criador da Acção Católica que configurou e nomeou, ordenou posteriormente a todos os católicos que se juntassem à Acção Católica. Como consequência, centenas de milhares de católicos italianos trocaram o Partido Popular pela Acção Católica, deixando aberto o caminho ao «Homem da Providência» (como se referiu Pio XI em relação a Mussolini, em 20 de Decembro de1926).

Homem enviado pela Providência divina, porque, como o então arcebispo Roncalli, depois João XXIII, proferiria em 1939 (Mons. Roncalli, Carta à família, em 25 /12/39, apud Hebblethwaite, Giovanni XXIII, Rusconi Milano, 1989, p. 230).
«Benditos nós em Itália. Desta vez é preciso mesmo dizê-lo: há uma mão que guia o Duce pelo bem dos italianos. Eu creio que Deus queira recompensar governantes e súbditos pela paz feita com a Igreja (…) E é preciso que sejamos reconhecidos a Mussolini. Quantos homens de Estado houve na Itália antes dele! Os Papas sempre estiveram dispostos à conciliação, mas sempre faltou o homem capaz de lhes corresponder da parte do Estado».

1 – Susan Zuccotti, «L’Osservatore Romano and the Holocaust, 1939-1945»
Holocaust and Genocide Studies – Volume 17, Nº 2, 2003, pp. 249-277, Oxford University Press

24 de Junho, 2006 lrodrigues

Uma Mancha no Passado

O Papa Bento XVI nomeou como novo Secretário de Estado do Vaticano o Cardeal Tarcisio Bertone.

Bertone, que é também Arcebispo de Génova e tem 72 anos de idade, irá suceder neste cargo (que é assim uma espécie de Primeiro-ministro do Vaticano), ao Cardeal Sodano que aos 78 anos atingiu o limite de idade de 75 anos que está estipulado no Código de Direito Canónico.

O Cardeal Tarcisio Bertone parece indiscutivelmente ser a pessoa indicada para este cargo de altíssima responsabilidade.
De facto, Bertone foi de 1995 a 2002 o braço direito do Papa Ratzinger na Congregação para a Doutrina da Fé, que como toda a gente sabe é o eufemismo actualmente utilizado para a Santa Inquisição.
Mais recentemente, Tarcisio Bertone ficou conhecido por ter dado a cara pela campanha desenvolvida pelo Vaticano contra a exibição do filme «O Código da Vinci».
É, na verdade, um currículo invejável.
Como é óbvio, o Papa está no seu pleno direito de nomear quem muito bem lhe apetecer e quem ache mais adequado para o desempenho dos mais diversos cargos no Vaticano.
Até porque a sua infalibilidade lhe garante sempre uma escolha acertada.
Mas há uma indelével mancha no passado do Cardeal Tarcisio Bertone, uma maldade por si impiedosamente praticada, que eu não posso de forma alguma tolerar, e muito menos entendo que tenha sido esquecida pelo Rotweiller de Deus, o Papa Bento XVI.
Foi no final dos anos 90:
O arcebispo de Lusaka, na Zâmbia, o Monsenhor Emanuele Milingo resolveu um belo dia aderir a uma seita animista e esotérica, com ligações à célebre «Igreja da Unificação», do famoso e inefável Reverendo Moon.
Vai daí, o bom do Emanuele Milingo largou a Igreja Católica e casou-se em Nova York, numa cerimónia religiosa colectiva, com uma grande-sacerdotisa da tal seita animista, uma senhora de nome Maria Sung Ryae Soon, tida como pessoa de grandes dotes e ainda por cima especialista em acupunctura.
Estava o Emanuele posto em sossego, a desfrutar os prazeres e colhendo o doce fruto do leito e dos conhecimentos esotéricos da sua nova consorte, e a preparar já a fundação de uma «Igreja Paralela» em África, quando a galhofa internacional obrigou o Papa João Paulo II a fazer alguma coisa.
Foi precisamente o novo Secretário de Estado do Vaticano, o Cardeal Tarcisio Bertone, quem na ocasião foi escolhido para a delicada missão de recolher a ovelha tresmalhada.
Então, apelando aos seus melhores dotes de argumentação, e certamente com a ajuda do Divino Espírito Santo, que sozinho não ia lá, Bertone lá conseguiu convencer o coitado do Emanuele Milingo a abandonar a seita animista, a desistir dos seus planos de criação de uma Igreja Paralela, a divorciar-se da grande-sacerdotisa e a abandonar o seu leito conjugal e os prazeres da carne e da acupunctura que ela lhe proporcionava e, pasme-se, a regressar ao seu cargo de arcebispo e ao seio da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana.
– Ora, isto não se faz!!!

(Publicado simultaneamente no «Random Precision»)


24 de Junho, 2006 jvasco

Deus deu-nos Liberdade

Imaginemos que o Henrique Fernandes criava 10 seres. 10 seres vivos. Com inteligência.
Henrique Fernandes criou 2 caminhos. O da esquerda e o da direita.
Henrique Fernandes ama os seres que criou, e quer que escolham o caminho da direita. Por isso cria-os por forma a que estes seres escolham esse caminho. Os seres assim o fazem. Ficam todos felizes.

Mas o Alberto acha que o Henrique Fernandes é mau. Não deu liberdade aos seres que criou. Por isso faz as coisas de maneira diferente: cria 10 seres e dois caminhos, e dá-lhes a Liberdade. E a coisa funciona assim: cada ser pode escolher se quer ir pelo caminho da direita ou da esquerda, mas ele avisa logo que quem for pela esquerda leva um tiro na nuca. Assim sendo, ele dá a Liberdade aos seres de irem pela esquerda (e sofrerem as consequências).
Quando o Alberto cria os seres, já sabe que, da forma que os criou, 9 escolherão o caminho da direita, e apenas um escolherá o caminho da esquerda. E é com a maior das tristezas que Alberto dispara sobre um ser que tanto ama.

O Joaquim acha que o Alberto é cruel e opressor. Que liberdade tem cada ser para escolher a direita ou a esquerda, se o Alberto lhes diz imediatamente que quem for pela esquerda leva um tiro na nuca? Obviamente estaria fora de questão não lhes dizer nada, mas Joaquim tem outra ideia.
Deixa os seres criados em paz, mas deixa pistas espalhadas. Assim sendo, eles podem descobrir, se as interpretarem correctamente e não se deixarem enganar pelas pistas falsas, que quem for pela esquerda leva um tiro na nuca. E, apesar de ao criar 10 seres prever que, da forma que foram criados, apenas um deles pereceberá o enigima e escolherá o caminho certo, é com toda a tristeza que extermina 9 dos 10 seres que criou.

O Jeová não é cruel como o Joaquim. Não vai matar os seres que criou apenas porque escolheram o caminho errado. Simplesmente, entre os 2 caminhos que criou, um deles vai dar a si, e conduzirá á felicidade, e outro afasta-os de si e vai dar à infelicidade eterna. Um castigo que faz a bala na nuca parecer apetecível…
Também não põe lá um engima qualquer. Ao invés manda o seu filho (que também é ele próprio) sacrificar-se (?) para que, no meio de todos os falsos profetas que indirectamente também são criação sua, algumas pessoas possam ter a sorte de contactar com quem conhece a história da ressurreição (grande azar se viverem na Mongólia, e nunca vos tiverem explicado o que aconteceu em Jerusalém por volta do ano 33 dC).
Depois, uma ínfima minoria dos seres que criou tem a Liberdade de ser feliz, enquanto que a outra tem a Liberdade de sofrer por toda a eternidade. Um destino tão monstruoso que eu nem sei se Hitler o merecerá, quanto mais a maioria da humanidade.

Enfim… um Deus de Amor. Um Deus de Liberdade.

23 de Junho, 2006 Carlos Esperança

Andam santos pelos cemitérios

A ICAR continua a fúria canonizadora despertada pelo bem-aventurado JP2, um polaco supersticioso de quem o Opus Dei, uns tantos cardeais e o espírito Santo fizeram Papa.

B16, especialista em moral e bons costumes, pós-graduado em relações com Deus, vai canonizar no próximo dia 1 de Julho quatro novos santos.

Desta vez a lotaria da santidade saiu à casa. Os canonizados, todos agentes e promotores de vendas da ICAR, são os seguintes:

Rafael Guizar Valencia (1878-1938), Bispo Mexicano;

Filippo Smaldone (1848-1923), sacerdote e fundador do Instituto das Irmãs Salesianas dos Sagrados Corações;

Rosa Venerini (1656-1728), fundadora da Congregação das Irmãs Mestras Pie Venerini;

Theodore Guerin (1798-1858), fundadora da Congregação das Irmãs da Providência de Santa Maria ad Nemus.

O anúncio, feito hoje, significa que os emolumentos, liquidados pelas igrejas dos países interessados, já entraram na tesouraria do Vaticano.

A Agência Ecclesia é omissa quanto aos milagres obrados pelos taumaturgos, mas a experiência diz-nos que são no ramo da medicina, ignorando-se apenas a especialidade e os miraculados. As provas são, como sempre, arrasadoras e os atestados rubricados por médicos de imaculada honestidade.

A ICAR é recordista de milagres por sepultura e por cadáver. Deus, na sua infinita venalidade, não deixa de atender os pedidos feitos por intercessão de um esqueleto com algumas décadas de terra.

A intermediação milagreira é um negócio florescente do sector terciário (o terço é, a seguir ao óbolo, o instrumento mais estimável para a corrupção divina e com provas dadas).

Apesar da opacidade do Orçamento de Estado e de se desconhecer o IVA aplicado, sabe-se que a rubrica «beatificações e canonizações» passou a ter um peso crescente no erário do Vaticano.

23 de Junho, 2006 Carlos Esperança

Protocolo de Estado e falta de pudor republicano

Pretender integrar o clero na lista de precedências dos titulares dos órgãos de soberania e altos funcionários do Estado é um anacronismo incompatível com um país laico. Afigura-se tão despropositado como colocar nos templos uma cadeira junto ao altar para os representantes do Estado ou das autarquias.

Surpreende que um político experiente como o açoreano Mota Amaral, que não é um demagogo, persista na defesa de uma promiscuidade entre o Estado e a Igreja que tão maus resultados deu no passado e que só pode prejudicar ambas as instituições.

Mas, mais anacrónico, é a peregrina ideia de incluir no protocolo de Estado o Sr. Duarte Pio, um descendente do ramo miguelista da família de Bragança, a menos que se pretenda desprestigiar o regime democrático e transformar o País numa República de ananases, já que as bananas são características da outra Região Autónoma.

O pudor republicano é incompatível com os delírios místicos de um deputado ou com o pendor monárquico de quem sabe que a monarquia constitucional portuguesa se extinguiu com a morte de D. Manuel II.

Que o CDS dê particular destaque «quer às Forças Armadas, quer às instituições religiosas – com realce para a Igreja Católica», é uma atitude que se compreende num partido que foi expulso do Partido Popular Europeu, por ser demasiado conservador e anti-europeu. No fundo é um partido de duvidoso ideário republicano e de hesitantes sentimentos democráticos.

23 de Junho, 2006 Palmira Silva

Histórias do Paleolítico

Várias perspectivas das duas conchas encontradas em Skhul. A linha desenhada para comparação tem 1 cm.

A descoberta de objectos pré-históricos cuja morfologia indica terem sido alvo de acção humana deliberada (por vezes difíceis de distinguir de objectos naturais) levanta algumas questões aos arqueólogos sobre o fim destes objectos, nomeadamente se a sua função última tinha cariz prático ou simbólico.

Os arqueólogos e (antropólogos) identificam arfefactos simbólicos com uma competência cognitiva que normalmente é assumida como tendo aparecido relativamente tarde na evolução humana, mais concretamente tem sido considerado que a cultura humana moderna, capaz de interpretar a realidade simbolicamente e incorporar e transmitir esse simbolismo no seu comportamento, surgiu há cerca de 40 000 anos quando os homens anatomicamente modernos chegaram à Europa.

Nas últimas décadas uma série de descobertas tem indicado que esta capacidade cognitiva evoluiu com o próprio homem quiçá tendo estado presente no Neanderthal e nas populações Sapiens mais antigas. As sociedades simbólicas interpretam detalhes do mundo natural, incluindo o corpo humano, ou seja, procuram características do mundo que os rodeia em que baseiam todo um sistema de sinais- e por extensão um sistema de crenças – que transmitem às gerações subsquentes.

Isto é, as sociedades que criam uma «história acumulada», as «sociedades quentes» de Claude Lévi-Strauss – que se opõem às «sociedades frias» que vivem num eterno presente – podem ser anteriores ao que muitos acreditam. Até hoje tão anteriores como 75 000 anos como a descoberta de conchas Nassarius kraussianus perfuradas na caverna de Blombos na África do Sul indica.

No número de hoje da Science figura o artigo «Middle Paleolithic Shell Beads in Israel and Algeria» (artigo completo reservado a assinantes) que sugere a existência de culturas simbólicas há pelo menos 100 000 anos.

De facto, o artigo descreve descobertas arqueológicas em Skhul, Israel, e Oued Djebbana, Argélia, proeminentes entre elas mais conchas Nassarius perfuradas, análogas às encontradas em Blombos. A datação dos artefactos encontrados em Skhul indica que as duas conchas aí encontradas têm mais de 100 000 anos e que as de Oued Djebbana podem ter 90 000 anos.

«O nosso artigo suporta o cenário que humanos modernos em África desenvolveram comportamentos que são considerados modernos muito cedo, de forma que estas pessoas são não apenas biologicamente modernas mas igualmente modernas cultural e cognitivamente, pelo menos num certo grau» afirmou à World of Science um dos cientistas responsáveis pelo trabalho, Francesco d’Errico do Centre Nationale de la Recherche Scientifique, CNRS, em Talence, França.

Porque, como afirma por sua vez Marian Vanhaeren, a outra cientista responsável, também do CNRS «Comportamento mediado simbolicamente é um dos indicadores da modernidade incontestados e aceites universalmente. Uma característica chave de todos os símbolos é que o seu significado é atribuído por convenções arbitrárias socialmente construídas que permitem o armazenamento e transmissão de conhecimento».

Convenções arbitrárias e socialmente construídas como são as religiões, que quasi podem ser encaradas como sub-culturas «frias» na medida em que não foram penetradas pela «história acumulada» da Humanidade e persistem num simbolismo anacrónico e num sistema de crenças completamente dissociado do conhecimento actual. Nomeadamente nas religiões do livro a crença no «pecado original», com a concumitante concepção do ser humano como naturalmente perverso, a explicação para a existência do Mal, é um disparate «frio» que continuarei a analisar durante o fim de semana em conjunto com as contradições debitadas pelo Vaticano em relação à evolução.

23 de Junho, 2006 fburnay

A fé pessoal

Uma das críticas que faço à fé é a capacidade que tem de pôr as pessoas a acreditar em coisas sem que tenham para isso qualquer tipo de justificação. Não acho plausível acreditar em algo sem que me seja mostrado que de facto faz sentido fazê-lo. É por isso que não acredito na existência do éter. Pegando na existência dos deuses como hipótese (mesmo que isso não seja, a meu ver, tão válido como propor a existência do éter enquanto explicação natural do mundo) rapidamente se chega à conclusão de que não vale a pena acreditar neles. Epistemologicamente, não há razões para acreditar na existência do éter. Isso rapidamente nos leva a uma forma de agnosticismo – não há provas empíricas da existência do éter e não é um conceito relevante para explicar o Universo, como tal, sou levado a concluir que a existência ou não existência do éter é irrelevante. A partir daqui, acreditar na existência do éter é uma prática insubstanciada.

Se eu quiser continuar a acreditar que o éter existe, posso fazê-lo. Por capricho, por teimosia, por fé – seja por que razão for, estou no meu direito de o fazer. No entanto, tenho de concordar em que não posso esperar que os outros também acreditem. Sou só eu que acredito, pelas minhas razões pessoais.

O mesmo raciocínio aplicado às divindades chega a uma conclusão semelhante. Se bem que o conceito de deus é, em si, uma recusa explícita de uma explicação científica ou racional para qualquer tipo de fenómeno (é por isso que sou ateu) e, neste sentido, claramente diferente do conceito de éter, eu poderia não obstante continuar a acreditar num determinado deus, se quisesse. Isso seria, obviamente, uma prática individual. Acho que ninguém, racionalmente, tem razões senão para ser ateu. No entanto é justamente o Individualismo que resgata a possibilidade da fé, ainda que seja, a meu ver, uma prática extremamente perniciosa. Consegui provar a alguns crentes, julgo, que apesar de concordar com o facto de as provas (num contexto de testemunho enquanto vivência e não de provas empíricas) que me apresentam para a sua fé ter um imenso valor para eles, esses testemunhos são intransmissíveis.

Pessoalmente, não posso conversar de forma igual com pessoas diferentes. Que posso eu dizer a uma pessoa que acredita piamente nos milagres de Fátima senão que é a minha opinião de que se trata de um disparate acreditar em semelhante coisa? A uma pessoa que, seja por que razões, leva à letra os textos que considera sagrados não posso dizer-lhe mais de que não faz sentido levar à letra esses textos. Posso mostrar que este milagre é falso ou que esta profecia não se revelou, ponto a ponto, num exercício que, muito provavelmente, não vai mudar a opinião do meu interlocutor. No entanto, não penso que seja infrutífero fazê-lo – muitos crentes recusam-se, simplesmente, a acreditar que o mundo tem 5000 anos ou que o Sol rodou três vezes mas só na Cova da Iria. E não acreditam não por razões de fé – mas porque é implausível. É difícil acreditar nessas coisas e não no sentido em que é difícil para um católico acreditar na divindade de Maomé. É difícil porque a nossa razão e a nossa inteligência nos dizem – não faz sentido. Esta é a beleza da coisa.

Porque, vendo bem as coisas, as pessoas acreditam todas elas em algo diferente, ainda que se baseiem num substrato comum. Porque os líderes das religiões conhecem mais do que o comum fiel os textos sagrados. Terão, então, os fiéis as mesmas razões para acreditar que os seus sacerdotes?

Curiosamente – e este é o meu ponto – sempre que se ataca a fé nos pequenos “milagres” do dia-a-dia, nas benzeduras, nos exorcismos, quem sai em defesa do crente comum não é o crente comum. São crentes, sim, mas mais educados nas questões da fé. Pessoas com formação, inteligentes, com catequeses mais aprofundadas e menos literais. Porquê? Essas pessoas, mais que outras, deveriam perceber o porquê dessas críticas. Esses crentes têm uma noção muito mais refinada dos melindres da sua religião – não representam, de todo, o bruto dos crentes. E no entanto, continuam muitas delas (com raras e admiráveis excepções) a defender crenças medievais e os anacronismos mais repelentes. A distorcer a História na tentativa de ocultar manifestações de vivências pré-modernas para preservar dogmas. A deturpar conceitos como o de laicidade, liberdade, ciência, ateísmo, para salvaguardar o que de mais primitivo há na religião. E não as pessoas com catequeses mais provincianas mas sim as pessoas mais alfabetizadas. Os crentes que, fazendo uso da sua liberdade de pensamento e da sua individualidade procuram testemunhos que acreditam enriquecer a sua fé e a sua humanidade não percebem que defendem noutras alturas dogmas completamente contrários a essa expressão de individualismo? Como é isso ainda possível no século XXI?

Na minha opinião, isso apenas é possível graças a memes que foram transmitidos de forma diferente – no fundo, lavagens cerebrais mais eficientes. Isso talvez explique porque são, afinal de contas, os crentes comuns que abandonam a fé mais facilmente que os outros.

Quanto mais conhecemos mais contraditório se torna permanecer na fé. É este o medo que as religiões têm da Ciência e do livre-pensamento. Só uma educação fortemente orientada na religião e uma dependência memética extremamente enraizada impedem que uma pessoa com acesso a educação concilie a fé profunda com o mínimo bom senso.

23 de Junho, 2006 jvasco

30 minutos de radio

30 minutos de radio é tudo quanto Julia Sweeney precisa para explicar como deixou de ser crente. Para quem está à vontade com o inglês, aconselho vivamente: o texto é delicioso.