«O Iluminismo é a saída do ser humano do estado de não-emancipação em que ele próprio se colocou. Não-emancipação é a incapacidade de fazer uso de sua razão sem recorrer a outros. Tem-se culpa própria na não-emancipação quando ela não advém de falta da razão, mas da falta de decisão e coragem de usar a razão sem as instruções de outrem. Sapere aude! (ouse saber!)» Immanuel Kant.
A aula magna de Bento XVI na Universidade de Regensburg, para além de uma defesa do catolicismo tradicional, isto é, pré Vaticano II, em relação às outras religiões do livro, é essencialmente, como já apontei, um ataque à ciência «que tornou Deus supérfluo», causa última dos males profundos que dominam a Europa na opinião de Ratzinger, a «ditadura do relativismo» e concumitantes secularismo, laicidade, respeito pelos direitos humanos, tolerância e plurarismo.
O discurso do Papa, tal como tudo o que tem debitado desde que o «espírito santo» o escolheu, assenta na loucura e erro de uma Europa «surda a Deus», que não fundamenta na fé o conhecimento e a própria Europa.
Assim, a palestra desenrola-se em torno deste tema desde a congratulação inicial ao Magnífico Reitor pela existência na sua Universidade, com duas faculdades de teologia, daquilo a que chama universitas scientiarum, ou seja, a genuína universitas que destaca proeminentemente a teologia nos «saberes» a transmitir aos alunos, que aceita como dado adquirido que Deus, na versão cristianismo tradicional, é imprescindível na Universidade. Embora Ratzinger note que nem todos os docentes, nomeadamente os cépticos «radicais» que afirmam a inexistência de Deus, partilham a opinião dos teólogos de que a fé e a razão estão intimimamente correlacionadas e sem fé não pode ocorrer o exercício da razão. Isto é, sem fé cristã tradicional, porque no decorrer do discurso Ratzinger explana porque razão apenas esta fé é racional!
Depois destas reminiscências de Regensburg, uma «genuína» Universidade em que o debate racional integra a teologia (católica) como componente indispensável, em que a teologia é aceite como equivalente da filosofia no privilegiar da razão universal, surgem então os 3 parágrafos que tanta tinta fizeram correr nos últimos dias, em que Ratzinger, esquecendo dois milénios de história sangrenta do catolicismo, usa o dito diálogo de Manuel II Paleólogo como ponto de partida para analisar a necessária centralidade da razão na fé e a relação entre a fé e a razão nas «três ‘Leis’ ou ‘Regras da Vida’: o Antigo Testamento, o Novo Testamento e o Corão. Embora não explicitamente, Ratzinger sugere que o Islão, a religião judaica e o protestantismo, não «helenizados», enfermam de uma irracionalidade constitucional enquanto o catolicismo é a única religião racional.
Este papa, grande admirador de Agostinho de Hipona mais que de Tomás de Aquino como o seu predecessor, ambos citados no texto, correlaciona a racionalidade da fé com a «helenização» desta mesma fé, que permitiu «uma nova compreensão de Deus acompanhada de uma espécie de iluminismo», helenização que segundo Ratzinger não aconteceu por acaso já que Deus «desviou» Paulo de Tarso da Ásia e encaminhou-o para a Grécia ( Actos dos Apóstolos 16:6-10) no que Ratzinger chama «uma destilação da necessidade intrínseca de reconciliação da fé bíblica com a racionalidade grega». Assim, desde o início do cristianismo e por desígnio divino, que a razão e a fé cristã são indissociáveis pelo que a de-helenização corresponde a não usar a razão, e como tal é contrária à natureza de Deus.
Uso da razão que parece exclusivo dos europeus, pelo menos no excerto em que Ratzinger afirma que «Dada esta convergência [entre cristianismo e helenismo, equivalente para Ratzinger ao uso da razão], não é de estranhar que o cristianismo, apesar das suas origens no Leste, assumiu o seu carácter histórico e decisivo na Europa».
Ratzinger contrasta esta compreensão cristã helenista de Deus, coincidente com uma harmonia entre razão e fé através da revelação de um Deus racional, com a «irracionalidade do islamismo» exemplificada com o (irrelevante) teólogo muçulmano Ibn Hazm que defendia a absoluta transcendência de Deus e rejeitava a necessidade de qualquer racionalização das leis islâmicas já que eram o código que Deus tinha legislado e a sua implementação, sem qualquer imiscuição da razão, indispensável na prática religiosa.
Compreensão helenista que Ratzinger afirma fazer parte essencial da fé cristã e «permanece a fundação do que podemos chamar apropriadamente Europa». Criticando a de-helenização do cristianismo e da Europa- as causas dos tais «males profundos» que a assolam e a deixam impotente face à ameaça islâmica – que segundo ele ocorreu em três fases, interligadas mas claramente distintas nas motivações e objectivos.
Assim, Ratzinger critica a separação da fé e da razão que ocorreu com a Reforma, a primeira de-helenização que rejeita a razão (isto é, a interpretação bíblica de Roma) e assenta a fé no princípio da sola scriptura, postulado base da reforma protestante. Ou seja, afirma claramente que o protestantismo é irracional!
A segunda fase de de-helenização corresponde ao pensamento teológico liberal dos séculos XIX e XX, de onde surgiram as heresias modernista e progressista, censuradas na encíclica de Pio X, Pascendi Dominici Gregis, que têm para Ratzinger o seu representante máximo em Adolf von Harnack. Heresia que na prática reduz a fé católica a meras directivas éticas e morais, sem necessidade de culto nem de teologia.
Ou seja, mais uma vez critica os católicos que não seguem à letra os ditames do Vaticano, «enganados» por teólogos como Harnack ou Roger Haight que «numa subordinação [inadmíssivel] dos conteúdos da fé à sua plausibilidade e inteligibilidade» tentam reconciliar a fé com a modernidade. Para Ratzinger, como tem sido abundantemente expresso no seu papado e concretizado sem margens para dúvidas nesta palestra, é a modernidade que tem de se sujeitar à fé!
Harnack, que reconhecia a complicação irracional colocada pelos dogmas em que assenta o cristianismo, a divindade de um Cristo com duas essências integrante de uma trindade com três pessoas e uma essência, advogava que Jesus era apenas o pai de uma mensagem moral humanitária e tinha terminado com a necessidade de cultos.
Pior, Harnack afirmava ser necessário harmonizar o catolicismo com a modernidade libertando-o de elementos especulativos (isto é, teológicos), ou seja, advogava ser necessário basear o catolicismo em «uma exegese histórica crítica do Novo Testamento» a única forma de a Teologia ter assento numa Universidade já que «teologia, para Harnack, é algo essencialmente histórico e assim estritamente científico» o que «acabaria na redução do cristianismo a um mero fragmento do que foi no passado».
Ora, Ratzinger não quer que o cristianismo seja este mero fragmento, quer retomar para o cristianismo o papel que este assumiu no seu passado «glorioso» e «racional» – nomeadamente na Idade Média em que este papel era assegurado «racionalmente» pela Inquisição – pelo que a ciência e o pensamento científico, crítica dos quais ele assume ser o cerne da dita palestra, têm de reconhecer ser a teologia a mais nobre das disciplinas à qual as restantes se devem submeter. Ou seja, os cientistas devem aceitar o Sapientia Dei, Scientia Mundi agostiniano, isto é, que há um conhecimento superior, a sapiência, a contemplação das «verdades eternas» divinas, e um inferior, a ciência, que consiste na interpretação dos dados sensíveis.
A mensagem da Bíblia é, no seu global, extremamente bélica e intolerante.
Tanto no Antigo Testamento, como no Novo Testamento.
Jesus é esclarecedor: «não vos venho trazer a Paz, mas a Espada».
Apesar de dezenas e dezenas de citações que comprovam estas minhas alegações (e apesar das maiores igrejas cristãs terem todo um historial que as ilustra em actos, guerras e agressões e respectivas fundamentações teológicas), todos os cristãos que conheço acham tais alegações disparatadas.
Tentam refutá-las com base em interpretações distorcidas que traiem a mensagem bíblica. Caso a caso, citação a citação, é fácil desconstruir tais patéticas interpretações que tentam negar o óbvio: o carácter bélico da mensagem bíblica.
Outra linha de argumentação, e esta já merece mais crédito, é a exposição de outras passagens que evocam a mensagem oposta. Apelam à Paz e à piedade. Em actos concretos.
É óbvio que tais passagens são dezenas de vezes menos frequentes que as restantes (e não exagero: é mesmo outra ordem de grandeza!). Mas as mensagens não se medem «ao litro»: se bem que tal disparidade na frequência dos apelos para a guerra e para a paz não possa ser ignorada, a verdade é que cada um dos apelos à paz merece ser estudado com cuidado, para que se poder concluir algo a respeito do teor mais ou menos bélico da Bíblia.
Uma das mais importantes afirmações que Jesus faz a este respeito é a seguinte: «Se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda» (Mt. 5, 39).
Importa debruçarmo-nos sobre esta passagem. Ela é muito importante, uma das que mais influencia a percepção (distorcida) que as pessoas têm daquilo que é a mensagem de Jesus. Quando eu era mais novo (e cristão) achava estas palavras ousadas, revolucionárias, e seu conteúdo profundo. Muita gente acha isso…
…E não se apercebe que são um enorme e patético disparate.
Se mais pessoas seguissem este conselho, o mundo seria pior. Os agressores teriam mais incentivos (e menos riscos) para agredirem. Os agredidos eram mais humilhados e injustiçados. Os povos conheceriam melhor o domínio, o saque e a pilhagem, e os corruptos, os invasores, os saqueadores teriam ainda menos quem lhes fizesse frente.
Se a Inglaterra, a Rússia, e os Estados Unidos tivessem dado ouvidos a Jesus, não saberemos quantas suásticas teriam sido edificadas, após o domínio nazi que teria sido incontestado. É um exemplo insignificante, pequeno, no imenso oceano de exemplos em todas as escalas, em tantos episódios no dia-a-dia. Se muitos seguissem tal conselho, as guerras e agressões não iriam diminuir, aumentariam alimentadas por tão delicioso incentivo.
Não há razões para preocupação, é claro. A verdade é que as palavras de Jesus são tão disparatadas, que não existe sequer o risco de serem levadas a sério, mesmo por aqueles que as acham tão belas. Mesmo esses facilmente se apercebem que não as podem pôr em prática, pois o bom senso sobrepõem-se, e existe uma noção intuitiva de que a justiça não poderia prevalecer dessa forma (e isso dificilmente seria louvável) e de que as consequências de tal atitude seriam o abuso incondicional por parte dos piores entre os piores. Muitos podem continuar a gostar de tal passagem, desligando-a completamente daquilo que seria afectar a sua vida por tais palavras. E bendita incoerência essa!
Não me interpretem mal: não venho aqui defender que nunca se deve perdoar, ou outras teses bélicas do género propaladas na Bíblia (lembram-se do «olho por olho»?). Há casos em que se deve retaliar, e outros em que se deve perdoar – qualquer incondicional será disparatado. Os estudiosos da ética e da teoria dos jogos têm chegado a resultados muito interessantes a este respeito. O jogo do prisioneiro, tão simples, tem dado bases sólidas para que o conhecimento avance neste domínio e se chegue cada vez mais longe.
Há casos em que a agressão deve ser perdoada, e outros em que se deve retaliar. Mas no que respeita à informação, o ideal é que o agressor espere sempre a retaliação, para que diminua o seu incentivo para agredir. O erro presente neste disparate de Jesus não está, portanto, apenas ao nível do incondicional como ao nível da informação. Ou seja: não é apenas errado perdoar sempre, e em qualquer situação, como também é indesejável que os agressores esperem que tal aconteça.
Assim sendo, depois de tantos incentivos que a Bíblia dá para a guerra e para agressão, nesta passagem apelando à Paz, só não se incentiva mais a guerra porque, por ser tão disparatada, está fora de questão que seja posta em prática.
Em sociedades em que a religião é obrigatória o condicionamento da opinião pública começa na infância pela manipulação das crianças e pela fanatização que conduz ao martírio e ao crime.
O Islão de hoje não é diferente do catolicismo medieval mas este, graças à descoberta da cultura helénica e do direito romano, encontrou forças para usar a razão e contestar a fé, para fazer a Reforma e retirar ao Papa o poder temporal.
O direito divino, como origem do poder, foi substituído pela legitimidade democrática e a secularização tornou as sociedades abertas, tolerantes e plurais. A fé foi remetida para esfera privada e as convulsões surgem quando os crentes pretendem fazer proselitismo através do aparelho de Estado.
Hoje, é o protestantismo evangélico que lidera o fundamentalismo cristão nos EUA, em clara violação da Constituição e da vontade dos seus fundadores. A Igreja Ortodoxa tem dificuldade em aceitar a separação do Estado e tem uma exegese de pendor francamente reaccionário.
Mas é no Islão que os constrangimentos sociais e a violência clerical empurra os crentes para a irracionalidade da fé e a aceitação acrítica do Corão. Como há muito desistiram de questionar o que o clero diz que o Profeta disse e quer, há um permanente conflito com a modernidade e uma violência incompatível com a civilização.
A laicidade que libertou o Ocidente da tutela clerical é impensável onde o clero islâmico tem o poder absoluto no campo económico, político, militar, assistencial e ideológico.
Tal como durante a inquisição era impossível contestar a autoridade do Papa e o seu poder, também nas teocracias islâmicas é impossível discutir a desigualdade da mulher, o adultério, a poligamia, o repúdio, a guerra santa e o pluralismo.
As religiões são, por natureza, totalitárias e avessas à modernidade. Ao atribuírem aos livros sagrados a vontade literal de Deus ditada a um eleito como versão definitiva, acaba com a discussão e com a vida do réprobo enquanto a separação entre a Igreja e o estado se não afirmar.
É esse passo que parece estar cada vez mais longe nas teocracias islâmicas e que propicia o confronto entre a fé e a modernidade.
Contrariamente ao que têm afirmado os bispos católicos os árabes não temem a liberdade religiosa que, segundo sondagens, é o que mais apreciam no Ocidente. São os clérigos que se assustam com a possibilidade de verem os seus crentes a renunciar à fé.
A liberdade, a democracia e, sobretudo, a perda de direitos sobre a mulher, assusta-os. É por isso que não renunciam à sharia, que não dispensam uma boa decapitação a quem renuncie à fé, uma alegre lapidação à mulher adúltera e uma divertida amputação para quem roube.
O que está em curso é uma luta desesperada contra a modernidade por uma civilização falhada.
Publicado também no Ponte Europa.
A última edição da revista Nature descreve a descoberta da equipa liderada por Zeresenay Alemseged, um paleoantropólogo do Max Planck Institute for Evolutionary Anthropology em Leipzig. A equipa encontrou o fóssil mais completo de um exemplar do Australopithecus afarensis, a que chamaram Selam ou DIK-1-1, o fóssil com 3,3 milhões de anos de um bébé de 3 anos encontrado em Dikika na Etiópia, uns quilómetros apenas do sítio arqueológico em que foi descoberto em1974 o fóssil de Lucy, o primeiro exemplar encontrado desta espécie.
Lucy é o membro mais antigo da linha de bípedes que levou, cerca de quatro milhões de anos mais tarde, aos humanos modernos. E, como veremos, os homínideos «Lucy» apresentavam uma série de características morfológicas intermédias entre os outros primatas e os humanos.
Aproveito o ensejo para corrigir um equívoco muito disseminado, que os «humanos são descendentes dos macacos», equívoco muito aproveitado pelos criacionistas embora seja totalmente errado. Os homínideos não são descendentes dos macacos; aproximadamente há 5 milhões de anos atrás, a árvore filogenética humana e a dos chimpanzés dividiu-se em ramos distintos a partir de um ancestral comum. Os macacos modernos, são deste modo apenas os nossos parentes evolutivos próximos, não são nossos ancestrais. Assim esse axioma utilizado e abusado pelos criacionistas é tão absurdo, como todos os seus argumentos, como dizer que alguém é descendente de um primo.
Voltando ao Selam, nomeado a partir da palavra etíope para paz, embora muitos mais exemplares do A. afarensis tenham sido descobertos, este exemplar de um bébé afarensis, cuja idade foi estimada em 3 anos, é o mais completo descoberto, e inclui a escápula ou omoplata, osso nunca encontrado antes. A escápula do A. afarensis apresenta características intermédias entre a escápula dos homens e macacos modernos que permitem concluir que este nosso antepassado remoto estava a perder as suas capacidades de locomoção nas árvores.
E de facto, uma análise do esqueleto de Lucy tinha permitido chegar à conclusão que Lucy exibia bipedalismo. Os membros inferiores do Australopithecus afarensis não eram simiescos e são quasi indistinguíveis dos membros inferiores humanos. Nos humanos, por exemplo, os ossos do calcanhar têm uma almofada alargada composta de osso esponjoso que absorve o impacto gerado pelo bipedalismo. O calcanhar do esqueleto de Lucy exibe esse osso esponjoso enquanto os macacos, que se movem apoiando-se nas articulações interfalângicas (dedos), não apresentam essa almofada óssea. O fémur de Lucy, embora proporcionalmente mais longo que nos humanos modernos, exibia uma série de características claramente humanas. Nos humanos, o colo do fémur apresenta um centro esponjoso que absorve o impacto de caminhar e uma camada mais espessa de osso compacto no topo da articulação para suportar o esforço. Nos macacos, este arranjo é totalmente diferente; o colo do fémur é quase completamente sólido, apresentando apenas um pequeno núcleo central de osso esponjoso.
O fémur dos macacos apresenta uma quilha larga ao longo da parte superior do colo onde se une com o receptáculo da anca. O fémur do Australopithecus afarensis é idêntico neste arranjo ao fémur humano. É na cintura pélvica, no entanto, que as características humanóides e o bipedalismo do Australopithecus afarensis são mais claramente evidentes. Na realidade, a cintura pélvica do Australopithecus afarensis, com o seu sacro proporcionalmente mais largo que o dos humanos modernos, era mais adequada ao bipedalismo que a nossa. Nos humanos um sacro tão largo estreitaria o canal de parto e tornaria impossível o parto, o que não acontecia no Afarensis que apresentava uma dimensão craniana muito inferior.
Este trilho de pegadas de hominídeos, descoberto em 1978 por Mary Leakey numa camada de cinzas vulcânicas com mais de três e meio milhões de anos, num sítio próximo de Laetoli na Tanzânia, mostra claramente mostram que a espécie que deixou estas marcas caminhava de forma bípede eficientemente, como um humano. Não há evidência de um polegar divergente como apresentado pelos macacos, e foi encontrado um arco plantar muito similar ao humano. Um modelo do pé do A. afarensis reconstruído a partir dos ossos fósseis recuperados, encaixa-se perfeitamente nas pegadas de Laetoli.
O osso hióide (o Hyoideum ou osso da língua) do Selam, por outro lado, apresenta mais semelhanças com o análogo nos chimpazés modernos o que implica uma capacidade de vocalização muito próxima da dos macacos e que um longo caminho evolucional foi percorrido para o desenvolvimento das nossas capacidades discursivas.
Não há ainda reacções dos criacionistas a esta descoberta que comprova claramente o carácter transicional do Afarensis, provavelmente vão continuar a negar todas as características humanóides do Afarensis e pretender que este é apenas mais um macaco e que as pegadas de Laetoli foram feitas não pelo A. Afarensis mas por um homem igualzinho aos homens modernos, criado à imagem de Deus!
Por definição, toda religião – toda fé – é intolerante, pois proclama uma verdade que não pode conviver pacificamente com outras que a negam. Mario Vargas Llosa
Antes de continuar a análise da relação antagónica de Ratzinger com a modernidade e com os valores civilizacionais correspondentes a essa modernidade – a democracia, a tolerância, a prevalência da ciência e da razão em relação à fé, os direitos humanos,especialmente os direitos das mulheres e a liberdade de opinião e expressão, etc. – gostaria de relembrar aos nossos leitores que esgrimem como argumento da superioridade do cristianismo em relação ao islamismo o facto de existir liberdade de religião e não existir perseguição religiosa nos países de maioria cristã, que estão a cair numa falácia causal ou post hoc ergo propter hoc.
Isto é, não é por serem países de maioria cristã que tal acontece, mas simplesmente porque são países democráticos assentes num conceito de estado moderno, onde, depois de muitas lutas, algumas sangrentas, com a Igreja Católica, se conseguiu a separação religião estado que não existe na esmagadora maioria dos países de maioria islâmica.
Se olharmos criticamente para a História, a violência na defesa e imposição da fé que se associa actualmente ao Islão mimifica na perfeição o que acontecia no Ocidente quando esta separação não existia. A «ordem de divulgar a fé usando a espada» não é exclusivo do Islão, foi indissociável do cristianismo até muito na tarde na história e não foi abandonada por vontade da Igreja, foi imposta pelas transformações sociais decorrentes do Iluminismo, por sua vez herdeiro da Renascença e do humanismo renascentista. Iluminismo que enfatizava a razão e a ciência como formas de explicar o universo, o alvo principal de críticas por Ratzinger na palestra da qual apenas os três parágrafos referentes ao Islão têm merecido análises mas que importa não esquecer, já que é esta crítica que nos permite apreciar a total dissociação de Ratzinger da modernidade e o seu manifesto desejo de retorno ao integrismo católico, isto é, à cristandade.
Apenas a laicidade inerente ao nosso modelo democrático impede que o fanatismo/fundamentalismo cristão se exprima da mesma forma que o equivalente islâmico. Basta pensar nas pretensões dos fanáticos cristãos americanos, da imposição de um direito baseado na «lei» bíblica, que prevê penas de morte para adultério, «sodomia», apostasia, heresia, aborto e demais «pecados», para confirmarmos que não existe qualquer diferença entre ambos os fundamentalismos, as suas manifestações apenas são diferentes porque se inserem em países com modelos políticos diferentes e a laicidade reprime as demências e as orgias violentas de fé a que temos assistido por parte dos fundamentalistas islâmicos!
A razão pela qual o Islão se mostra resistente à modernidade, isto é, à tendência geral de secularização, só pode ser entendida à luz do pós-colonialismo e da emergência do nacionalismo árabe, uma reacção à aculturação colonianista recuperando uma utopia – mais um «entre» bhabhiano (de Homi Bhabha), isto é, uma tentativa de recuperação de uma cultura desaparecida há séculos e como tal construída no imaginário – baseada no Islão político. Uma leitura de Khaled Ahmed ou mesmo Bassam Tibi ajuda a perceber porquê.
Por outro lado, em relação ao argumento tão gasto que já maça, que confunde laicidade com estalinismo ou maoismo, gostaria apenas de relembrar que o totalitarismo político não tem nada a ver com laicidade, na realidade é uma cópia fiel do totalitarismo religioso, caracterizada por um culto de personalidade do ditador – quasi considerado um «deus», basta pensar no culto a Lenin, Stalin, Mao e actualmente a Fidel ou Kim Jong II – e as ideologias políticas são dogmas inquestionáveis, verdades absolutas apenas questionadas por «hereges» merecedores de «fogueiras» sortidas. O totalitarismo político não dispensa sequer cerimónias «religiosas» como comícios políticos e demais rituais de comunhão em que os «fiéis» papagueiam palavras de ordem em tudo análogas a orações…
Assim, como já escrevi, todos os totalitarismos, religiosos ou políticos, assentam em três pilares:
1) A detenção de uma verdade «absoluta», à qual todos devem se submeter, mesmo os descrentes nesta suposta verdade;
2) A certeza num destino glorioso para os justos/eleitos;
3) Um grande inimigo que é necessário diabolizar, sendo a suposta perseguição por este inimigo o nexus da angariação e fidelização de seguidores.
A palestra de Ratzinger é uma ilustração do ponto 3, em que o «inimigo» é identificado com todos os que não aceitam a «supremacia» da razão. Razão que para Ratzinger, que distribui generosamente epitetos de irracionalidade a todas as mundivisões que não a sua, reside apenas no catolicismo. Apenas o catolicismo é racional e como tal a ele todos se devem submeter é tão só a mensagem que Ratzinger quis transmitir nesta palestra…
Assim, como para todos os totalitarismos, o homem livre e racional é o principal inimigo para Ratzinger, que declarou guerra à modernidade, isto é, à «ditadura do relativismo» decorrente do que apelida de «secularismo ideológico» e «profanidade total», a separação entre a igreja e o estado. Ratzinger que se lamuria estarem os fundamentalistas católicos sob o «jugo» de uma «ditadura» que o impede, cruzado empenhado contra as liberdades «imorais» e representante mor desses fundamentalistas, de impor a sua pseudo-moralidade a todos.
Assim, este papado tem sido apenas uma sequência de ululações que denigrem e rejeitam a liberdade, a democracia, a tolerância e o pluralismo, a tal «ditadura» do relativismo, pretendendo que só a obediência cega a um mito, Deus – para o ditador do Vaticano a sujeição total aos seus ditames imbecis – é a verdadeira liberdade.
O imperador Hirohito, em 1945, coagido pelo general Mc Arthur, teve de dizer aos japoneses que não era Deus, o que levou ao suicídio de muitos que ficaram desolados.
Também Bento XVI, a reboque dos acontecimentos, acabou a negar a infalibilidade papal em que os mais devotos acreditavam.
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