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10 de Dezembro, 2006 Palmira Silva

8 de Dezembro – IV

«1817. Cân. 2 – Se alguém disser que as ciências humanas devem ser tratadas com tal liberdade que as suas conclusões, embora contrárias à doutrina revelada, possam ser retidas como verdadeiras e não possam ser proscritas pela Igreja – seja excomungado [cf. nº 1797-1799].

1818. Cân. 3 – Se alguém disser que às vezes, conforme o progresso das ciências, se pode atribuir aos dogmas propostos pela Igreja um sentido diverso daquele que ensinou e ensina a Igreja – seja excomungado [cf. nº 1800].

1825. [Cânon] Se, portanto, alguém negar ser de direito divino e por instituição do próprio Cristo que S. Pedro tem perpétuos sucessores no primado da Igreja universal; ou que o Romano Pontífice é o sucessor de S. Pedro no mesmo primado – seja excomungado

1831. [Cânon] Se, pois alguém disser que ao Romano Pontífice cabe apenas o ofício de inspecção ou direcção, mas não o pleno e supremo poder de jurisdição sobre toda a Igreja,[…] – seja excomungado.» Concílio Vaticano I, Sessões III e IV.

Para além da Revolução Francesa outro duro golpe recebido pelo poder papal foi a supressão da ordem dos jesuítas, um poderoso instrumento das políticas pontifícias. Após ser expulsa pelo Marquês de Pombal de Portugal e suas colónias, exemplo seguido rapidamente por Espanha e França, a Companhia de Jesus foi dissolvida em 1773 pelo papa Clemente XIV. Assim, ironicamente, enquanto os papas insistiam na sua jurisdição universal, eles estavam de facto perdendo poder e autoridade.

No século XIX, com a Companhia entretanto restaurada em 1814 pelo Decreto do Papa Pio VII Solicitudo omnium Ecclesiarum, Pio IX assistia impotente à queda do poder temporal absoluto de Roma que tão ardentemente desejava. Os domínios papais começaram a ser perdidos no Risorgimento, primeiro Toscana, Parma, Módena e Romagna (1859), depois a região da Úmbria, Marcas (1860) e finalmente Roma (1870). O Papa ficou restrito ao Estado do Vaticano e a igreja de Roma não era mais a soberana absoluta que ditava com mão-de-ferro os destinos da Europa.

Existiam ainda fortes conflitos doutrinários que dividiam os teólogos católicos e ameaçavam a hegemonia de Roma, nomeadamente o galicanismo que Pio IX queria suprimir, cujas principais teses eram inadmissíveis para o Papa:

1) Total independência do rei (ou governo) em assuntos temporais em relação ao papa;
2) a autoridade papal é inferior à do Concílio;
3) obrigação por parte do papa de respeitar as antigas tradições da igreja francesa (ou outras);
4) necessidade de consentimento da Igreja Universal para a ratificação dos dogmas proclamados pelo papa.

A igreja, durante séculos considerada infalível e omnipotente, assistia assim à derrocada do seu poder absoluto. Não só as novas ideias seculares que emergiam – as quais o Papa condenou como «erros modernos» – se espalhavam por toda a Europa, nomeadamente a «peregrina» ideia de que os judeus tinham direitos, como dentro da própria Igreja muitos não aceitavam os ditames de Roma.

Para obstar a estas situações pré-cismáticas e consolidar o poder que a Igreja ainda detinha nas mãos de um agente único – o Papa – Pio IX convocou o concílio Vaticano I, que decorreu entre 8 de Dezembro de 1869 a 18 de Dezembro de 1870 (e que não foi concluído devido à eclosão da guerra franco-prussiana, em 1870 e se encontra até hoje suspenso).

* O terramoto de 1755 abalou muito mais que a cidade e os seus edifícios. Lisboa era a capital de um país católico, com uma larga tradição de evangelização das suas colónias. O facto de o terramoto ocorrer num feriado religioso e destruir várias igrejas importantes levantou muitas questões religiosas por toda a Europa. Para a mentalidade religiosa do século XVIII esta manifestação da ira divina era de difícil explicação.

O sismo influenciou assim de forma determinante muitos pensadores europeus do Iluminismo. De facto, muitos filósofos fizeram menção ou aludiram ao terramoto nos seus escritos, dos quais se destaca Voltaire, no seu Candide e no Poème sur le désastre de Lisbonne (Poema sobre o desastre de Lisboa). A arbitrariedade da sobrevivência foi, provavelmente, o que mais marcou o autor, que satirizou a ideia, defendida por autores como Gottfried Wilhelm Leibniz e Alexander Pope, de que «este é o melhor dos mundos possíveis»; como escreveu Theodor Adorno, o terramoto de Lisboa o foi suficiente para Voltaire para refutar a teodiceia de Leibniz (Negative Dialectics 361).

Como adenda aos textos do João Vasco sobre o paradoxo do mal, o termo teodiceia, do grego theós, Deus e díke, «justiça», significa literalmente «justiça de Deus».

(continua)
9 de Dezembro, 2006 jvasco

O paradoxo do mal – II

A refutação mais simples da ideia que o mal é causado pelo livre arbítrio é lembrar os males que não o são.

Terramotos, tsunamis, cheias, além de grande parte das doenças que vão matando as pessoas.

A este argumento, muitos crentes respondem com a ideia de castigo. Muitas vezes a discussão não evolui a partir desse ponto – é frequente que a pessoa que os oiça dar tal resposta fique demasiado indignada para manter um tom frio e sério. Afinal, pode parecer monstruoso acreditar que as pessoas que morrem de cancro «mereciam-no», tal como outras doenças que envolvem muito mais sofrimento e dor. Pode parecer um tanto monstruoso considerar que quando milhares de pessoas numa determinada região do mundo morrem em cheias, tsunamis ou tremores de terra, estas o mereciam.
E quanto mais se pensa no sofrimento concreto que esses males infligem, mais mesquinhas, insensíveis e abjctas podem parecer tais considerações. Mais indignação tendem a provocar.

Mas indignação não é argumento.

É por isso que pretendo, ao invés de me indignar, responder com um contra-exemplo. Tomemos um feto, no útero de uma mãe, que tem uma doença. Ele nasce e, devido à sua doença, passa dois dias em sofrimento no hospital até que morre. Não é um exemplo impossível: já aconteceu, continuará a acontecer.
Em que medida é que este mal foi resultado da escolha de quem o sofreu?

Que livre arbítrio teve esta criança com dois dias de vida? Que liberdade é que Deus lhe terá dado? Deus, que alegadamente respeita a liberdade, respeitou a escolha desta criança, que era não sofrer, que era viver? Ou todas estas crianças escolhem morrer em sofrimento?
Deus teria criado um mundo em que o livre-arbítrio desta criança não foi respeitado, em que ela não teve liberdade, nem escolha, em relação ao que lhe aconteceu. E o mal não deixou de lhe acontecer.

Podemos entrever aqui o meu argumento, portanto. Notemos que, neste caso, a ausência de liberdade da criança foi, em si, um mal. Nós gostamos de ser livres e sofremos quando não o somos, então a ausência de liberdade é um mal.

Se um Deus for benevolente, ele apenas optaria por nos dar liberdade na medida em que o mal que dela resultasse fosse inferior ao mal que representa a ausência de liberdade. Assim sendo, com um Deus benevolente, o mundo seria necessariamente o melhor mundo possível. Qualquer mundo diferente (por exemplo um em que Deus interviesse mais, com a limitação à liberdade que cada intervenção implicasse) seria pior.

Notem que, sendo Deus omnipotente e omnisciente, ele poderia criar qualquer mundo concebível. Isto quer dizer que, para Deus ser benevolente, omnipotente e omnisciente, não poderá existir nenhum mundo concebível melhor que este – o que é notoriamente falso: basta conceber um mundo em que, apesar dos pecados do homem, o bebé do exemplo não morreu ao fim de 2 dias.

9 de Dezembro, 2006 Palmira Silva

8 de Dezembro – III

«Portanto[…]os Bispos, que são os sucessores dos Apóstolos, pertencem à ordem hierárquica[…]estabelecida pelo Espírito Santo para governar a Igreja de Deus (At 20, 28)[…]Ensina ademais[…]na ordenação dos Bispos e sacerdotes[…]não se requer o consentimento do povo nem de qualquer poder ou magistrado secular.

Se alguém disser que na Igreja Católica não há hierarquia eclesiástica estabelecida por ordem de Deus, que se compõe de Bispos, presbíteros e ministros, seja excomungado». Concílio Ecuménico de Trento. Sessão XXIII

A oposição ao conceito de uma igreja centralizada sob a autoridade papal recebeu o nome de «galicanismo», por se ter manifestado com mais vigor em França. De facto, o rei, que até aí nomeava os bispos, opôs-se veeementemente à aplicação em território francês da reforma estabelecida pelo Concílio de Trento e apenas em 1615 os decretos de Trento foram promulgados neste país.

Durante os séculos XVII e XVIII, a intromissão da Igreja em assuntos seculares, a norma até a Reforma em que a Igreja ditava as leis – e recebia boa parte das receitas – em toda a Europa, conheceu uma crescente oposição por parte dos governos europeus que procuravam afirmar a plena soberania sobre os seus territórios.

Dentro da própria Igreja muitos dignitários afirmavam-se galicanos, isto é, acreditavam que a autoridade eclesiástica residia nos bispos, e não no papa. Por outro lado, os defensores da autoridade suprema dos papas, os «ultramontanistas» ou «ultramontanos», que afirmavam estar toda a autoridade da Igreja «além montanhas» (os Alpes), não aceitavam a reinvidicação do episcopado em participar na direcção da Igreja declarando o papa monarca absoluto da Igreja.

O galicanismo foi retomado mais tarde pela Revolução Francesa e, depois, pela monarquia francesa restaurada, tornando-se no século XIX o modelo seguido por grande parte dos Estados onde a maioria da população era católica.

Na realidade, até hoje o termo «jacobino» reflecte o golpe devastador contra o poder do papado desferido em 1789 pela Revolução Francesa. Não apenas pelo que se passou em França – onde desde os primórdios houve, no país anteriormente considerado por muitos papas como o «filho predilecto da Igreja», um profundo conflito entre a Igreja e o ideal republicano da revolução – mas essencialmente porque propagou os ideais iluministas a todo o mundo ocidental.

Só para dar um exemplo do poder da Igreja em França antes da Revolução Francesa, em 1766 um jovem de 19 anos, Jean François de Le Fabvre, o Cavaleiro de la Barre, passa «a vinte passos duma procissão, sem tirar o chapéu». É preso e torturado. É condenado por sacrilégio e decapitado depois de lhe terem cortado a língua. Finalmente o seu corpo é queimado junto com um exemplar do Dicionário Filosófico de Voltaire, numa orgia de fé participada por uma multidão entusiasmada.

Os ideais iluministas assentes na «Liberdade, Igualdade e Fraternidade» (Liberté, Egalité, Fraternité) entravam necessariamente em conflito total com este poder da Igreja, para além de recusarem os muitos privilégios do clero ou Primeiro Estado. Uma das primeiras medidas revolucionárias, violentamente contestada por Roma, numa França em profunda crise económica, foi a supressão do pagamento do dizimo à Igreja e a confiscação de alguns dos seus bens.

Mas o golpe final no poder de Roma foi desferido pela aprovação, em Agosto de 1790, da Constituição Civil do Clero, que separava a Igreja e Estado e, considerando que a Igreja era sustentada pelo Estado, determinava que os clérigos lhe deviam obediência. Determinava assim que os clérigos deveriam jurar a nova Constituição – os que o fizeram ficaram conhecidos como juramentados; os que se recusaram passaram a ser chamados de refractários – para além de retirar a Roma o poder de ordenação de bispos e padres de paróquia que seriam eleitos pelos membros das congregações respectivas.

Claro que o Vaticano não aceitou perder o poder quasi absoluto que anteriormente detinha em França e acirrou os refractários ultramontanos a combater os «hereges». A luta entre a Igreja Católica e a Revolução Francesa e os seus partidários culminou no levantamento dos camponeses católicos na Vendeia, no oeste da França, entre 1791 e 1793 e numa selvagem luta de extermínio entre os habitantes da Vendeia e os jacobinos, luta que depois se estendeu a mais pontos de França na guerrilha camponesa dos Chouans – a Chouannerie, da qual participaram o clero refractário e a aristocracia.

(continua)
8 de Dezembro, 2006 Palmira Silva

8 de Dezembro – II

O final do século XIV e o século XV marcaram o fim da supremacia absoluta da Igreja de Roma na Europa. Para além da ameaça que o conhecimento científico leigo apresentava, esta viu-se confrontada com a Reforma protestante, despoletada pelo empenho que Leão X devotou à construção da Basílica de S. Pedro, intento iniciado em 1510 pelo papa anterior, Júlio II, que lançara a Indulgência do Jubileu para esse fim.

Leão X concentrou a recolha de fundos para a edificação da sumptuosa Basílica no comércio intensivo de «indulgências», perdão garantido para todos os pecados possíveis e imagináveis, passados, presentes ou futuros, comércio esse que atingiu dimensões e contornos que escandalizaram o então monge agostiniano Martinho Lutero.

Também ajudou à Reforma protestante e consequente perda de poder da Igreja Católica o nepotismo dos papas precedentes, especialmente Alexandre VI (1492-1503), nascido Rodrigo de Bórgia e pai do infamemente conhecido César Bórgia, que deixou Roma refém do caos, da corrupção e da violência, algo absolutamente evidente para Lutero durante o Jubileu de 1500 lançado por este Papa.

O Jubileu seguinte, em 1525, decorreu assim em plena crise religiosa, com as reivindicações de Martinho Lutero a despoletar a crítica e o reconhecimento generalizado em toda a Europa da ganância e corrupção do papado. O queda do poder de Roma acelerou-se com o desmembramento das igrejas, primeiro na Alemanha e Inglaterra e depois em todo o norte da Europa.

O Papa Paulo III (1534-1549), um dos papas mais nepotistas, que separou Parma e Piacenza dos Estados Pontifícios para criar um ducado independente para o seu filho Pier Luigi, esforçou-se por remediar a situação. Para combater o conhecimento científico fora dos auspícios da Igreja formou em 1540 a nova ordem dos jesuítas ou Companhia de Jesus.

Para reafirmar as doutrinas católicas tradicionais e fazer frente à reforma protestante que se tinha espalhado por toda a Europa, com vários reformadores a reinterpretar o cristianismo para além de Lutero, como Ulrico Zuínglio, Guilherme Farel, Filipe Melanchton, João Calvino e João Knox, convocou em Dezembro de 1545 o Concílio de Trento, que marcou a Contra-Reforma.

A última sessão do Concílio de Trento decorreu no dia 4 de Dezembro de 1563. Nesse dia foram lidas todas as decisões tridentinas, formalmente aprovadas pelo Papa Pio IV em 26 de janeiro de 1564.

Para além de reafirmar a doutrina da transubstanciação, defender a concessão de indulgências, aprovar as preces dirigidas aos santos e de insistir na existência do purgatório, a profissão de fé tridentina marca a ascendência de Tomás de Aquino, isto é Aristóteles, no catolicismo. Assim, a doutrina é definida sob um ponto de vista teológico, imiscuindo-se, por outro lado, no domínio científico. A Terra imóvel, centro do mundo, torna-se palavra do Evangelho. Os Santos Padres arrogam-se ao direito de decidirem acerca de tudo, mesmo em matéria «científica», e quem passe para lá destes ditames incorre a partir do Concílio de Trento nas sanções mais severas.

Por outro lado, a preocupação dominante do concílio de Trento, que ignorou totalmente os fiéis e as pessoas em geral, é a afirmação do poder de Roma através da regulação total das sociedades. Regulação intolerante conseguida através de uma doutrina (a «ortodoxia») consagrada numa liturgia rígida e ditando as leis pelas quais as sociedades se deviam reger, condensadas nos 2414 cânones do primeiro Código de Direito Canónico de 1917.

Aos leigos só era reconhecido o direito de «receber» os meios necessários à salvação da alma, ministrados pelos prelados da Igreja de Roma, claro. Considerações de felicidade ou bem estar terrenos são completamente ignoradas.

De forma a assegurar a hegemonia papal e uma vez que as suas ambições de poder temporal absoluto não foram satisfeitas, os papas utilizaram Concílio de Trento para assegurar o poder «espiritual» do Vaticano centralizando todo o poder da Igreja no papado.

(continua)
8 de Dezembro, 2006 jvasco

O paradoxo do Mal – I

A formulação clássica do paradoxo do mal, da autoria de Epicuro, é a seguinte:

«Quer Ele [Deus] impedir o mal, mas não pode? Então é impotente. Pode, mas não quer? Então é malévolo. Não quer nem pode? Porquê adorá-lo? Será que pode e quer? Então não pode existir mal»

Já que o mal existe, e já que a impotência é incompatível com a omnipotência, este paradoxo demonstraria que a crença num Deus como o da mitologia judaico-cristã, alegadamente benévolo e omnipotente não faria sentido.

A teologia cristã deu uma resposta a este aparente paradoxo. Alegadamente o mal surge porque Deus nos dá liberdade. E nós, seres humanos, muitas vezes usamos essa liberdade para o mal.
Neste caso, Deus pode mas não quer intervir, não porque seja malévolo, mas sim porque respeita a nossa liberdade.

Peço a todos os leitores que notem algo a respeito deste argumento. Existe uma premissa implicitamente assumida, necessária para a coerência da refutação, que seria interessante analisar.
Estas considerações não rebateriam o paradoxo de Epicuro se fosse possível a um Deus respeitar a liberdade humana e evitar o mal. Sendo Deus alegadamente omnisciente e omnipotente, o facto de encarar essas duas condições como inconciliáveis quer dizer algo de muito profundo a respeito da liberdade! Quer dizer que se encara um mundo livre como algo que não pode ser conciliado como um mundo onde o mal não existe. Nem um Deus omnipotente poderia conciliar essas duas realidades.
Quer dizer, não apenas que se considera a liberdade como a fonte do mal por razões conjunturais, mas que se considera que essa é de tal forma a natureza intrínseca da liberdade, que nem um Deus omnipotente poderia criar um mundo em que isso não fosse assim.

Realmente as religiões sempre foram inimigas da liberdade, mas é curioso observar que, a par de tantas declarações explícitas dos teólogos e Papas cristãos contra a liberdade e o livre-pensamento, nas próprias crenças a respeito da origem do mal se encontra esta inimizade implícita.

Com todas estas considerações não rebati o argumento. Eu creio que o paradoxo apresentado por Epicuro faz sentido, enquanto que crença num Deus omnipotente e benévolo não. Mas não é por mostrar que a refutação mais comum a esse paradoxo tem implícita uma ideia extremamente negativa a respeito da liberdade, que ela deixa de fazer sentido.

Por esta razão, pretendo escrever quatro artigos com argumentos diferentes que pretendem demonstrar, cada um por si, que esta refutação é falha. Que o paradoxo de Epicuro permanece irrefutável, e que a crença num Deus omnipotente e benevolente não é racional.

8 de Dezembro, 2006 Palmira Silva

8 de Dezembro

«O ódio e a cólera dominavam os corações dos sucessores dos apóstolos. Repelia-se com horror a ideia de conciliação, da mais pequena concessão. Pensava-se que era necessário fortificar a ortodoxia, concentrando todas as forças, disciplinando e centralizando; empedernir a Igreja, para a tornar inabalável. Era a opinião absolutista, representante do Papado
Antero de Quental, Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos, discurso proferido em 27 de Maio de 1871, durante a 1.ª sessão das Conferências Democráticas ou Conferências do Casino.

O feriado de hoje, o dia da imaculada conceição, que celebra o dogma da Imaculada Concepção proclamado infalivelmente por Pio IX numa bula publicada em 1854, reflecte o que este excerto de Antero de Quental tão bem retrata.

Um pouco de História, num dia em que a meteorologia não convida ao passeio, ajuda a situar as declarações do pensador português, nomeadamente no que concerne à origem do feriado que reflecte a opinião absolutista de Pio IX, como diz o Carlos um «santíssimo patife – mesmo para um papa católico». De facto, o anti-semita Pio IX – o fazedor de um dos santos mais representativos da Igreja de Roma: o primeiro inquisidor mor de Aragão, Pedro Arbues de Epilae, apenas ultrapassado no zelo com que perseguiu judeus e na «eficácia» das suas tácticas por Torquemada – não é um exemplo recomendável, por muito que João Paulo II tentasse lavar a História ao beatificá-lo em 3 de Setembro de 2000.

O Vaticano, para a maioria das pessoas equivalente à Igreja Católica Apostólica Romana, vulgo ICAR, na realidade é herdeiro de uma instituição política déspota que governou com mão de ferro os Estados Papais, Estados Pontifícios ou Estados da Igreja.

Menos de seis séculos após se terem outorgado os únicos representantes do seu mitológico fundador na Terra, os únicos com autoridade para interpretar os seus «legados» e distribuirem magnanimamente a «salvação», os Papas tornaram-se os líderes políticos de facto de Roma e das regiões circundantes.

Esse governo de facto foi formalizado pelo rei franco Pepino, o breve, pai de Carlos Magno, que entregou ao Papa Estêvão II, por volta de 756, o domínio temporal de uma extensa região, compreendendo toda a Itália central.

Não satisfeito com o poder temporal oferecido por Pepino, Estêvão II produziu a falsificação mais famosa da História, a doação de Constantino, «Constitutum domni Constantini imperatoris», um documento falsificado pela própria Cúria Romana. Esta falsificação grosseira pretendia que o imperador Constantino teria cedido ao Papa Silvestre I, para si e para os seus sucessores, a possessão de todo o Império Romano e lhe outorgava os poderes imperiais do próprio Constantino.

Confirmada como uma falsificação grosseira em 1440 por Lorenzo Valla, a Doação de Constantino pretendia assim ser uma carta de Constantino dirigida ao papa Silvestre I em 30 de Março de 315, na qual lhe o Imperador lhe concedia autoridade sobre todo o Império Romano, doando-lhe o palácio de Latrão, as insígnias, vestes e os poderes imperiais romanos, não só sobre a Itália como sobre todas as demais províncias do Império. Declarava ainda a pia falsificação que o bispo de Roma era o «Vigário de Cristo» a quem concedia o estatuto de Imperador. As vestes e insígnias imperiais foram supostamente emprestadas a Constantino, que as vestia com permissão eclesiástica.

Pepino não foi no conto do Vigário e as ambições papais de domínio absoluto do anterior Império Romano ficaram restritas aos vastos estados italianos que, com alguns incidentes de percurso, se mantiveram sob domínio papal até 1870.

Ou seja, Pio IX – ou Pio No No como era conhecido pela sua oposição a tudo e mais umas botas, especialmente pela sua oposição ululante à democracia, um «princípio absurdo» e «ultrajante traição», à «loucura e erro» da liberdade de opinião e de consciência e demais direitos humanos e, claro, à laicidade -, foi o último déspota temporal por direito divino em solo italiano. Recordo ainda ter sido Pio No No, em total discordância com a própria doutrina da Igreja, que declarou ser o aborto um pecado imperdoável.

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8 de Dezembro, 2006 Palmira Silva

700 000 visitas

O Diário Ateísta ultrapassou hoje as 700 mil visitas graças a ateus dedicados, visitantes acidentais e crentes que a respectiva religião obriga ao proselitismo, convencidos que tornar público o testemunho da sua fé converterá de per se o ateu mais racional. A todos os nossos leitores um muito obrigado, inclusive aos que visitam estas páginas com a vã esperança de nos evangelizarem.

Como referia há menos de um ano, com o humor habitual, o Carlos aquando das nossas 300 mil visitas, «destes últimos, há-os inteligentes, dialogantes, cultos e com sentido de humor.

No entanto, muitos parecem ter saído da pia de água benta sem tempo de se enxugarem, disparados da missa com a hóstia mal deglutida ou de longas genuflexões com a coluna e os joelhos ainda doridos.»

«O Diário Ateísta está, e continuará, ao lado das causas que promovem o progresso, a liberdade e a emancipação da humanidade. Defendemos a democracia, batemo-nos pela aplicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, combatemos o racismo, a xenofobia, as teocracias, a homofobia, as ditaduras e o poder clerical. Combatemos no campo das ideias, só nesse, Deus por não existir e os seus padres por existirem, sem pôr em causa o direito de ter e o de não ter religião».

De facto, o Diário Ateísta existe também para expor as intolerâncias intrínsecas e indissociáveis das religiões. No nosso mundo cada vez mais global em que urge a coexistência pacífica, especialmente de credos (ou inexistência deles), qualquer grupo que pretenda ser o detentor intolerante da verdade e moral absolutas, que se arrogue «divina» e superiormente justificado para impor a sua forma de ver e estar na vida é uma ameaça à paz e à justiça.

Todos nós somos testemunhas do perigo dos fundamentalismos religiosos. Os que têm curiosidade em investigar a Históriam mesmo a recente, sabem que nada de bom adveio do absolutismo religioso em termos do que deveriam ser os valores universais, independentes dos deuses por que cada um jura, nomeadamente o respeito pelo outro.

A paz, a justiça, os maltratados direitos humanos e a própria sobrevivência do homem só serão de facto possíveis quando as religiões se remeterem para o foro privado, que deveria ser o seu papel, sem tentativas de transpor para a res pública os preconceitos religiosos, nomeadamente querendo transformar em crimes os «pecados» das respectivas religiões. Quando os crentes não se acharem com direito a julgamentos de valor sobre a qualidade moral dos que não subscrevem a respectiva religião porque os preconceitos e o sentimento de superioridade moral resultantes justificam (e justificaram) as acções mais ignóbeis de que a Humanidade foi vítima.

A pouco mais de dois meses do referendo em que vamos não apenas referendar a despenalização do aborto, que todos os nossos políticos concordam ser uma «questão de consciência», como referendar o estatuto da mulher na sociedade portuguesa, é especialmente importante que todos recordem que ninguém tem o direito de ser o guardião da consciência alheia! Respeitar o outro, reconhecer a dignidade intrínseca do outro, implica reconhecer-lhe o direito a escolhas de consciência, por muito que estas difiram das nossas!

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7 de Dezembro, 2006 jvasco

E eles não se importam?

Anteontem estávamos a falar dum baptizado de um primo enquanto os meus miúdos brincavam por perto. Mais tarde, um deles veio-me perguntar porque é que os meninos choram nos baptizados, e eu expliquei que se deviam assustar com a água. Os padres deitam água na cabaça dos meninos? Sim. E não se importam?

Esta é uma daquelas perguntas que só uma criança de cinco anos pode fazer. Engasguei-me um bocado, e lá dei uma resposta vaga acerca de tradições e assim, que já nem eu me lembro, e que decerto não satisfez a curiosidade do pequeno. Não queria dizer «Não, querem lá saber se assustam o miúdo ou não. E muita sorte tem o puto não ser duma daquelas que cortam o prepúcio…». Mas fiquei a matutar. Eles não se importam?

Eles, não só os padres, mas a família, a sociedade, todos nós. Se queremos que uma criança aprenda a ser tolerante e a respeitar a fé dos outros, era boa ideia mostrar mais respeito pela sua liberdade religiosa. É certo que depressa se esquecerá do baptizado (a menos que lhe cortem o prepúcio), mas vão lembrar-lhe sempre que foi baptizada, e por decisão de outrém. E em muitos casos irá à catequese ou ter instrução religiosa desde tenra idade, antes de poder decidir se quer ter religião ou não. E vão lhe ensinar que deverá criar os seus filhos da mesma maneira, entregando-os à sua religião.

E depois querem que aprenda a respeitar os que têm outras fés…

——————————–[Ludwig Krippahl]