A ideia de que o homo sapiens é um animal excepcional, esmiuçada, resume-se a dois factos: fala muito e fabrica utensílios. Mas, mesmo aí, as diferenças são de grau: podemos ensinar os nossos primos chimpanzés a usar palavras (sem gramática, todavia) e a usar utensílios (e talvez mesmo fabricá-los). Mais importante: sabe-se que algumas lesões cerebrais prejudicam o uso da linguagem e alteram a personalidade (ler Damásio), o que certifica que a mente tem uma base biológica. Claro que isto deixa o homem sem a «dignidade especial» que obcecava Wojtyla. Mas o Papa polaco pertencia ao género de pessoas que, mesmo que tivessemos dez tsunamis como o de 2004 por ano, não se convenceria de que a natureza não é boa nem má, limita-se a ser. (Quanto à ideia de que a evolução se aplica aos chimpanzés mas não aos homens, é tão absurda que só merece ser ridicularizada.)
Mas é claro que a principal diferença entre ciência e religião é metodológica. A ideia de «criação» nunca produziu uma equação ou um instrumento, uma previsão que não fosse banal, nem alguma vez nos disse nada que não pudessemos saber por outros métodos. Pior ainda, é um método estático, que não apresenta forma de se corrigir a si próprio, e que pretende que o conhecimento sobre o universo se adquire consultando textos neolíticos e discutindo-os a partir de premissas erradas e inquestionáveis. Com a ciência, pelo contrário, já curámos doenças e prolongámos a esperança de vida, inventámos o computador e o telemóvel. E podemos actualizar a ciência com novas observações e novos desenvolvimentos teóricos, corrigindo alegremente o conhecimento anterior. A ciência está do lado da liberdade, da criatividade e do aperfeiçoamento do conhecimento. A religião, embora insista em pronunciar-se sobre biologia e cosmologia, nunca produziu uma conta certa.
O apelo da religião deve-se, evidentemente, à exploração de fraquezas humanas como a vaidade, o medo da morte, o medo da solidão, o medo da realidade, e a ignorância. Mas a ciência tem para oferecer o prazer da descoberta e da compreensão da realidade, armando-nos com o espírito crítico e a independência intelectual. Quanto ao propósito do universo ou da vida humana, isso é com cada um.
Se é verdade que o Papa Karol Wojtyla afirmou que «a teoria da evolução é mais do que uma hipótese», é também verdade que a considerava «incompatível com a verdade sobre o homem». A contradição é só aparente: lendo a sua «Mensagem à Academia Pontifícia de Ciências», compreende-se que Wojtyla pretendia conciliar o evolucionismo com a «revelação» judaico-cristã, limitando o campo de aplicação do primeiro a todos os animais à excepção do homem.
A ideia aparece claramente no final do quinto parágrafo, quando Wojtyla diz que «teorias da evolução que (…) consideram a mente como emergindo das forças da matéria viva, ou como um mero epifenómeno desta matéria, são incompatíveis com a verdade sobre o homem. Também não podem fundamentar a dignidade da pessoa». No início desse parágrafo, Wojtyla explicara claramente que a preocupação do «magistério da Igreja» com a evolução se deve às consequências desta para a «concepção do homem», que a ICAR considera que foi «criado» separadamente dos outros animais por «Deus». Portanto, a divergência fundamental com a ciência funda-se na repugnância católica em reconhecer que o ser humano é um animal.
No parágrafo seguinte, Wojtyla precisa que o ser humano constitui «uma diferença ontológica, um salto ontológico», e afirma que esta «descontinuidade ontológica» não contradiz a «continuidade física» do universo, porque o «momento da transição para o espiritual» não seria «observável» pelas ciências da natureza.
A cosmovisão «excepcionalista» de Karol Wojtyla seria compatível com várias situações: a «criação» do ser humano, mas não dos outros animais (existentes e passados); ou a aceitação da origem evolutiva do homo sapiens, seguida da «inoculação espiritual» da «alma» em momento histórico incerto.
Em qualquer dos casos, Wojtyla parte de várias premissas erradas: que o homem é um animal fundamentalmente diferente dos outros; que o universo foi «criado» para o homem; que o universo foi «criado» com um propósito ético benigno; que a separação disciplinar entre vários ramos do conhecimento corresponde a uma compartimentação das parcelas da realidade; finalmente, que existe uma hierarquia entre as disciplinas do conhecimento humano, com a teologia no topo.
(continua)
Tudo isto deveria ser óbvio, porque a vantagem que a religião confere às sociedades sempre foi a coragem e a imunidade moral, obscurecendo o bom senso e a própria realidade. Só a crença no além e a autoridade ética do clero têm permitido, ao longo dos séculos, que os soldados marchem para a guerra em ordem e aparentemente sem medo.
A Al-Qaeda insiste em recordar-nos que nos devemos converter ou morrer. É irracional? Sim: a religião é irracional.
(Richard Dawkins em entrevista à Salon.)
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