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Estará tudo louco no Vaticano?

Na longa tradição do revisionismo histórico de uma Igreja de Roma que pretende ter a Inquisição de facto assassinado pouquissimas pessoas, já que apenas queimavam… manequins e não pessoas nas fogueiras,
leio com natural estupefacção que o cardeal Renato Raffaele Martino numa alocução a que chamou «Ciência e Fé ao serviço do homem», proferida no Festival da Ciência de Bérgamo pôs em dúvida «a já habitual consideração que se tem de que a ciência é resultado do Iluminismo», pois, «para os grandes cientistas e teólogos da Idade Média como São Alberto Magno, Roberto Grossatesta e Santa Ildegard von Bingen, a relação entre fé e ciência era quase co-natural». Assim percebiam estes «eminentes cientistas e crentes no Deus do universo» «a harmonia entre estas duas formas de conhecimento» -reconheceu o presidente do Conselho Pontifício Justiça e Paz- mas «esta harmonia entre ciência e fé vem a quebrar-se em uma época que corresponde mais ou menos ao início do Iluminismo».

O digno eclesiástico afirmou ainda que houve «instrumentalização» do caso Galileu Galilei, que foi assim usado «como símbolo de uma suposta oposição entre ciência e fé, que levou muitos a sustentar» a «incompatibilidade entre ambas». «Ao contrário, a ciência moderna é produto genuíno de uma visão judaico-cristã do mundo que tem sua fonte de inspiração na Bíblia e na doutrina do Logos»

Acho que raramente li algo tão absurdo! Uma Igreja, pela voz do Papa, que acusa os cientistas de se estarem indevidamente a imiscuir em assuntos que pertencem a Deus, que perseguiu, matou e censurou ao longo de toda a sua história, mesmo a mais recente, os cientistas que ameaçam a visão absurda da Terra escrita na Bíblia dizer uma barbaridade destas é tão ridículo que precisei confirmar se a página onde a li pela primeira vez não corresponderia a um jornal satírico, tipo The Onion!

Ainda por cima não percebi muito bem porque citou Ildegard von Bingen, que tanto quanto sei só é conhecida pelas suas vinte e seis visões místicas da salvação por Cristo, explanadas no livro Scivas e pela sua música. Enfim, praticava aquilo a que agora se chamaria medicina mística mas não estou exactamente a ver como alguém lhe pode chamar grande cientista!

Roberto Grosseteste (mentor de Roger Bacon) e Alberto Magno (professor de Tomás de Aquino) podem-se considerar contributores para o iluminismo renascentista já que tornaram aceitáveis pela Igreja Católica as obras do “pagão” empiricista Aristóteles, introduzidas na Europa no século XII pelo filósofo muçulmano Averrois. De facto, Averrois, que foi médico na corte cordovesa até ser acusado de heresia em 1195 e desterrado para Lucena, e Avicena ou Abu Alí Ibn Sina (980-1037), o autor do “Canone de Medicina”, o qual impregnou profundamente todas as obras medievais sobre farmacopeia e química, são os mais decisivos pensadores medievais.

Em relação aos apelidados cientistas cristãos são mais conhecidos pelas suas vertentes «mágicas» e alquimistas, que não são exactamente o que eu designaria por ciência. Roger Bacon enfatizou o papel primordial da observação e da experimentação, mas, tal como Alberto Magno, acreditava na iluminação divina dos dados experimentais. Por exemplo, Bacon explica o arco-íris com Genesis (IX): Deus fez o arco-íris para selar o fim do dilúvio, portanto para eliminar uma quantidade excessiva de água.

A relação quase co-natural entre fé e ciência de Alberto Magno e Gosseteste citada pelo prelado e a interpretação mística de dados experimentais quer por parte de Roger Bacon quer de Alberto Magno, propiciaram a dissolução da ambição de ambos os teólogos: unir numa síntese sólida a teologia natural e a teologia revelada. Especialmente devido à influência crescente dos filósofos árabes, em particular Averrois, que exaltava com vigor essa separação.

As obras de Averrois foram (em vão) proíbidas pela Igreja, por instigação de Tomás de Aquino e Alberto Magno, porque, para além de advogarem a supremacia da razão sobre a fé, os averroístas aceitavam a concepção aristotélica de Deus como o motor imóvel que move eternamente um mundo eternamente existente não criado nem conhecido por ele, para além de afirmarem que a alma não é imortal!

As bases para revolução intelectual no Ocidente situam-se na Espanha do século XII onde se redescobriu a ciência árabe e grega, onde, para além das obras de Averrois e Avicena, se podiam encontrar trabalhos originais árabes como a Álgebra de Al-Khwarizmi, e a óptica de Ibn al-Haytham (latinizada como Opticae Thesaurus), para além de traduções e comentários árabes sobre textos gregos de Aristóteles, Ptolomeu e Euclides.

Assim, a cristianização de Aristóteles por Tomás de Aquino e a sua afirmação de que «Procurar compreender as leis da natureza é procurar compreender a obra de Deus, é, por conseguinte, aproximar-se dele», ou seja, a sua tentativa de tornar a ciência uma aliada da fé, são apenas manobras da Igreja de tomar as rédeas de um processo imparável. Não esqueçamos que até então vigoravam as pias palavras do prior de Clairvaux, Bernardo, que, dois séculos antes, pregava a ignorância piedosa afirmando que «Deus não obedece à lei ordinária.»

A invenção da imprensa em 1440 foi mais um passo para a cisão irreversível entre ciência e religião, já que a partir da invenção de Gutenberg o controle da difusão do saber escapou à Igreja. Não obstante o Index librorum prohibitorum. E o princípio do fim do monopólio científico (se é que lhe podemos chamar isso) e filosófico dos religiosos começa com o humanismo de Petrarca e Lorenzo Valla…