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Humor de Verão – O segredo de Fátima

“Nelo Careca” afastou a farta melena que lha caía por sobre os olhos, e sorveu mais um gole de cerveja, e é a altura de dizer que só aparentemente é que há contradição entre a alcunha de “Nelo Careca” e a sua exuberantemente rebelde cabeleira. Não há contradição nenhuma, ponto final. “Nelo Careca” era detentor de um invejável ornamento capilar, e a sua alcunha, ou antes, as razões que presidiram à atribuição de tão paradoxal como absurda antonomásia seriam um profundo mistério, que permaneceria, pelo menos, até ao Juízo Final, se outro não houver depois. Seriam, disse eu, e muito bem, mas deixaram de o ser quando começou, tempos antes, a haver estrilho[1] com a sua agá[2], Fátima, agora transmutada em ex-agá.

Ultimamente a vida não lhe tinha corrido bem, e refiro-me a “Nelo Careca”. Aliás, nem ultimamente nem remotamente, valha a verdade. Primeiro, foi a agá a reclamar que o dinheiro do Rendimento Mínimo que, mais tarde, veio a chamar-se Social de Inserção, era insuficiente para ir tomar o pequeno-almoço e o lanche ao café, todos os dias e, ainda por cima, para pagar ao merceeiro, porque era preciso comer, não é verdade?

lá se arranjas qualquer coisa para ganhar dinheiro, que eu num faço milagres – garantia Fátima, no seu característico sotaque nortenho, do qual nunca se separava nem para dormir.

— Mas tu não vês como isto anda? — tentava argumentar “Nelo Careca”. — Está mau para todos, até para nós.

— Está mau porque tu passas a bida na taberna e num queres bergar a mola. Se há crise nos cabedais, bai pró o conto do bigário, que nunca failha.

Foi numa dessas ocasiões que “Nelo Careca” que, nesse dia, tinha acordado mal disposto, lhe atirou um deixa de te armar em fina e  passa a tomar o pequeno-almoço e a lanchar em casa, só que  Fátima não estava pelos ajustes mas oube lá, o que é que tu queres? Queres que todos pensem que sou uma pelintra? Estás bêbedo, ou quê? Há duas semanas que num compro roupa noba, e ainda ontem a D. Serafina, a cabeleireira, me mandou a boca que eu já não ia arranjar o cabelo há dois dias! Estou farta de passar bergonhas por tua causa, e quem num tem dinheiro num tem bícios.

— O que é que queres dizer com isso?

— É simples. Se num tens dinheiro para me sustentar, bou procurar outra bida.

Fátima sabia que a melhor forma de dominar um homem é ameaçá-lo com o abandono. Não há nada mais carente e, consequentemente mais dócil, do que um homem que se sente abandonado, sem ter quem lhe passe as camisas a ferro e sem ter quem, acima de tudo, lhe aqueça os pés nas longas e frias noites de inverno.

— Quer dizer: sua excelência não pode passar sem tomar o café  e mamar o “croissant” todos os dias de manhã, no café, armada em gente fina; não pode deixar de lanchar chá e bolinhos todos os dias, para estar no serrote com as amigas; não pode deixar de ir à cabeleireira todos os dias; não pode deixar de comprar roupas todas as semanas; e eu é que tenho os vícios. É preciso ter lata como um penico! Minha linda, vai à merda, e é já! Pega nas trouxas, e RUA! Quando chegar a casa já não te quero ver.

Porra! Saiu o tiro pela culatra. Mas Fátima tinha poderes. Outros poderes. E o plano B fez a sua aparição:

— Ó home! Tu como falas comigo. Olha que eu num posso enerbar-me, qu’índa posso ter um ABC.

–… Um quê??

— Um ABC, home! Num sabes o que é um ABC?

— Sei perfeitamente, e estou-me cagando. Por mim, até podes ter o abecedário completo.

“Nelo Careca” voltou as costas e saiu. Fátima tratou de carregar os haveres no carro, que isto de andar a pé é para os tesos, e zarpou para casa da mãe. “Nelo Careca” não era para brincadeiras, e se a encontrasse em casa quando regressasse, o mais certo era ir fazer uma visita à “urgência” do hospital. Nem Nossa Senhora seria capaz de valer a Fátima. Consigo, para além dos trapos, chamemos assim às quantidades industriais de roupas de marca, Fátima levava um segredo. E o segredo de Fátima era o que iria ditar, dias depois, a alcunha de “Nelo Careca” que, até então, era conhecido por “Nelo”, simplesmente. É que “Nelo” era completamente imberbe, passe o termo, na zona onde, normalmente, homens e mulheres são detentores de abundante e encarapinhada pilosidade. Segredo que, naturalmente, “Nelo” partilhava com Fátima e que se manteve como segredo de alcova até ao dia em que Fátima foi despedida. Mulher despeitada é capaz de fazer mais estragos do que as armas de destruição maciça do falecido Saddam, e Fátima não quis deixar os pergaminhos por mãos alheias. Logo no dia seguinte, o segredo de Fátima era revelado aos quatro ventos e, minutos depois da revelação, “Nelo”, o carteirista, passava a ser, oficialmente, “Nelo Careca”.


[1] Estrilho: barulho, confusão, zanga.

[2] Agá: amante, companheira, esposa.

 

In “O Alfa das 10 e 10”

Papiro Editora