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Treta da semana: isso não se diz…

Há uns dias o Dawkins escreveu 130 caracteres no Twitter comentando que «Todos os muçulmanos do mundo tiveram menos prémios Nobel do que o Trinity College de Cambridge. Mas fizeram grandes coisas na Idade Média». Foi logo acusado de preconceituoso e intolerante (bigoted) por vários ateus, outros apontaram que os muçulmanos tiveram mais prémios Nobel do que o Dawkins, como se o Dawkins fosse 23% da população mundial, e alguns até o acusaram de racismo, nem percebendo quão racistas estavam a ser ao confundir o Islão com uma raça (1). Por cá, em conversa semi-privada no Facebook, também encontrei ateus a defender que a afirmação era repugnante, que culpava os muçulmanos inocentes e que era uma generalização injusta. Disparates.

As mulheres são 50% da população mundial mas apenas 17 dos cerca de 600 galardoados com prémios Nobel em ciência foram mulheres (2), 18 vezes menos do que as 300 que seria de esperar sem correlação entre o sexo e a probabilidade de ganhar um Nobel em ciência. Esta afirmação não é misógina, racista, repugnante ou intolerante. É um facto. Se a reacção à expressão deste facto fosse sempre a de repúdio visceral nunca se teria tomado medidas para mitigar o problema. Não se tentaria combater a discriminação contra as mulheres nem oferecer condições para que uma mãe não tenha de abandonar a carreira para cuidar de filhos pequenos, por exemplo. Durante este século e pouco de Nobel muito foi mudando nestes aspectos e encarar os factos como eles são foi uma condição indispensável para que isso acontecesse.

Os muçulmanos são 23% da população mundial e receberam, no total, dois prémios Nobel em ciência (3), 70 vezes menos do que seria de esperar sem correlação e uma proporção em relação a esse valor esperado quatro vezes inferior à das mulheres. Este facto também indica algum problema. Os homens muçulmanos não perdem mais tempo com gravidez e aleitamento do que os outros homens que ganham prémios Nobel e é pouco plausível que tenham sofrido quatro vezes mais discriminação do que as mulheres. A natureza repressiva dos regimes de muitos países muçulmanos, o Islão ser uma obrigação legal para muitos dos seus seguidores e os castigos por qualquer opinião fora do que essa religião lhes permite parecem factores mais importantes. É claro que o problema é complexo e pode haver dissensão acerca dos factores principais, mas isso é muito diferente de ignorar o problema para repudiar quem o aponta.

A reacção de alguns ateus a um artigo analisando estudos sobre religiosidade e inteligência (4) teve menos acrimónia mas também incluiu exemplos semelhantes de irracionalidade. O sociólogo Frank Furedi acusou os autores de «“cientismo” do pior»(5) sem dizer nada acerca da análise em si ou dos estudos em que se basearam. Especulou sobre a cultura e intenções, insinuou que foram muito mauzinhos, alegou que «a relação entre “a investigação mostra” e a verdade é muitas vezes tão dúbia quanto a da alegação de que “Deus disse” com o que realmente acontece» e concluiu com uma contradição: «Como ateu discordo da alegação de que a minha posição é produto da minha inteligência […] Acredito que fiz uma escolha inteligente em não acreditar». Foi uma escolha inteligente mas não tem qualquer relação com a sua inteligência. Pois claro. Entre os ateus de cá, também houve quem endossasse estes disparates de que a investigação científica é o mesmo que “Deus disse” e de criticar um artigo científico divagando sobre tudo menos o conteúdo do artigo (6).

O artigo merece algumas críticas, como qualquer artigo científico. Recolhe dados de estudos diferentes e tenta normalizar medidas diferentes, o que não é trivial, e há mecanismos alternativos que podem explicar a correlação por factores comuns. Por exemplo, pessoas com menos poder económico têm pior alimentação, educação e estímulos e mais probabilidade de necessitar do apoio de instituições religiosas. Isto pode explicar a correlação sem implicar qualquer relação causal entre religião e inteligência. Pode também ser um efeito de alguns pontos extremos. Pessoas com muito pouca inteligência são menos independentes e podem-se associar mais a grupos religiosos, alterando a média sem que haja diferenças entre os restantes ateus e crentes. Há muitas possibilidades a considerar para tentar perceber o que está por trás desta correlação negativa entre religiosidade e inteligência. Incluindo, obviamente, a de que pessoas com mais inteligência tenham menos propensão para acreditar nas histórias que as religiões contam. Podem não ser possibilidades agradáveis, mas para lidar com os factos é preciso controlar as tripas.

Esta indignação, muitas vezes fingida, e a demagogia falaciosa do apelo à emoção e ao preconceito, já incomodam bastante quando vêm de crentes e apologistas da religião. Mas desses é tão comum que uma pessoa acaba por se habituar. Mais deprimente é ver os que se dizem livres pensadores deitar fora toda a objectividade e fazerem-se de beatas ofendidas só para parecerem politicamente correctos.

1- Guardian, Richard Dawkins criticised for Twitter comment about Muslims
2- Nobelprize.org, Nobel Prize Awarded Women
3- Wikipedia, List of Muslim Nobel Laureates
4- Zuckerman et al, The Relation Between Intelligence and Religiosity A Meta-Analysis and Some Proposed Explanations (pdf)
5- The Independent, Atheists are more intelligent than religious people? That’s ‘sciencism’ at its worst
6- Não gosto de omitir referências, mas como não sei com que expectativas de privacidade as pessoas usam o Facebook é melhor deixar assim.

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