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  • 15 de Agosto, 2014
  • Por Carlos Esperança
  • Imprensa

A corrupção do Vaticano

Como o crime organizado corrompeu o Vaticano

Mafioso sepultado ao lado do corpo de papas lavava dinheiro com auxiliares de João Paulo II e é acusado de sequestrar e matar a mando de um cardeal

Flávio Costa
INVESTIGAÇÃO
Corpo do criminoso Enrico De Pedis, chefe de uma das quadrilhas mais
poderosas de Roma, é retirado da Basílica de Santo Apolinário

O desaparecimento da adolescente Emanuela Orlandi, ocorrido há quase três décadas, está obrigando a Itália a desenterrar a incômoda relação entre o crime organizado e a Santa Sé. O caso lança luz sobre a história da Banda della Magliana, quadrilha que comandou, durante duas décadas (1970-1990), o crime organizado de Roma por meio de uma intrincada rede que envolvia tráfico de drogas, prostituição, sequestros, homicídios e atentados políticos. O lucro das atividades ilegais era lavado em bancos ligados à Santa Madre Igreja. O desenrolar desse novelo promíscuo começou, na semana passada, com a exumação do corpo de Enrico ‘Renatino’ De Pedis, ex-capo da Magliana, enterrado “com honras de benfeitor dos pobres” na Basílica de Santo Apolinário, ao lado de papas e cardeais. A retirada do cadáver da sacrossanta sepultura vem no bojo da investigação da polícia e do Ministério Público da Itália sobre o paradeiro de Emanuela. Filha de um alto funcionário do Vaticano, a garota teria sido sequestrada pelo gângster, a mando do controverso cardeal americano Paul Marcinkus (1922-2006), conhecido em vida como o “banqueiro de Deus”, e assessor direto do papa João Paulo II.

Em 22 de junho de 1983, Emanuela, então com 15 anos, desapareceu após sair de uma aula de música, na praça Navona, a poucos metros da igreja que abrigaria anos depois os restos mortais de Enrico De Pedis – assassinado a tiros em 1990, em uma emboscada. O terceiro protagonista dessa história, o arcebispo Marcinkus, foi o pivô do maior escândalo financeiro do Vaticano: a quebra do banco Ambrosiano, então maior entidade privada do país, no início dos anos 1980. À época, o religioso presidia o Instituto para as Obras da Religião (IOR), o chamado Banco do Vaticano, que possuía 16% do capital do Ambrosiano. A Justiça italiana descobriu um complexo esquema de corrupção, que incluía pagamentos ilegais e desvio dos fundos para enriquecimento particular. Há provas, ainda, de que a Magliana injetava dinheiro no banco controlado pela Igreja Católica. Marcinkus foi afastado de Roma e morreu no ostracismo em Phoenix (EUA).

A trama que liga os destinos da adolescente, do mafioso e do cardeal começou a ser desvendada somente em julho de 2005, por meio de um telefonema anônimo ao programa de TV RAI-3 “Chi l’ha visto?” (Quem a viu?): “Se quer saber mais sobre Emanuela, olhe no túmulo de De Pedis…”, dizia a voz masculina, nunca identificada. Para espanto geral, a polícia descobriu que o criminoso estava enterrado na Basílica de Santo Apolinário. Um documento oficial do Vaticano afirmava que o criminoso, responsável por diversos assassinatos, realizou “contribuições particulares para jovens, interessado, sobretudo, em sua formação cristã e humana”. Descobriu-se também que ele pagou pela sepultura um milhão de liras (450 mil euros) ao cardeal Ugo Poletti, então vigário-geral de Roma.

 
PERDA
Pietro Orlandi espera há 29 anos pelo esclarecimento do sumiço da irmã Emanuela: 

“Ela sofreu uma injustiça que não lhe permitiu viver a vida”

Os investigadores italianos chegaram à figura da prostituta Sabrina Minardi. Ex-amante de Enrico De Pedis, Sabrina afirmou, em juízo, que Emanuela Orlandi foi assassinada por ele e seu corpo foi envolto em um saco e jogado em uma betoneira em Torvaianica, uma província de Roma. Sabrina declarou, ainda, que o sequestro da adolescente foi executado por ordem do arcebispo Paul Marcinkus “como se quisessem dar uma mensagem para alguém acima deles”. O pai da garota, Ercole Orlandi, teve acesso a papéis comprometedores sobre a relação entre o crime organizado e a Igreja. Por sua vez, o criminoso queria reaver o dinheiro investido por sua gangue nos bancos papais. “São acusações infames, sem provas, sobre o monsenhor Marcinkus, morto há vários anos e impossibilitado de se defender”, afirmou o Vaticano, após a divulgação do depoimento de Sabrina.

Começou-se então a se especular que os restos mortais da adolescente estavam escondidos junto à cripta do criminoso. Só agora, porém, anos depois do depoimento de Sabrina, o Ministério Público italiano conseguiu a autorização para abrir a sepultura. A identificação foi confirmada, por meio da verificação das impressões digitais, graças ao alto nível de preservação do cadáver, guardado em três caixões de zinco, cobre e madeira, e envolto em um sarcófago de mármore. Outras dezenas de caixas com ossos encontrados nas proximidades do caixão serão periciadas. Por enquanto, nada foi encontrado que possa esclarecer o que aconteceu a Emanuela. Após os exames finais, o corpo de De Pedis será enterrado em um cemitério comum de Roma. A família de Emanuela espera, um dia, ter a mesma oportunidade.