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Treta da semana (passada): Olavo de Carvalho.

De vez em quando, acusam-me de desprezar a filosofia. É falso. Eu acho que a filosofia é uma disciplina importante e uma peça crucial na procura de conhecimento. Não se consegue esclarecer nada sem pensar com clareza, especificar bem os termos e encontrar as distinções relevantes. Mas prezar a filosofia não é o mesmo que prezar tudo o que se diz ser filosofia. Há umas semanas, partilharam comigo este vídeo de um defensor do cristianismo, conservador, e alegado filósofo Olavo de Carvalho (1). Contornando a forma como o argumento é apresentado, ignorando uma série de disparates e reduzindo-o ao essencial, Carvalho propõe que é mais fácil acreditar que Jesus foi mesmo a encarnação terrena do criador do universo porque o que está relatado nos evangelhos é um facto.

Mas talvez estivesse num dia mau quando gravaram este vídeo e não é justo julgá-lo apenas pelo que aparentou ser nesse episódio menos feliz da sua carreira filosófica. Por isso, fui procurar outros exemplos. Textos escritos, onde a prosa é mais ponderada e se evita o “cêtáentenden?” a cada três palavras. Por exemplo, criticando ateus como Dawkins e Dennett, Carvalho afirma que «você só pode discutir a existência de um objeto previamente definido se o discute conforme a definição dada de início e não mudando a definição no decorrer da conversa, o que equivale a trocar de objeto e discutir outra coisa. Se Deus é definido como onipotente, onisciente e onipresente, é desse Deus que você tem de demonstrar a inexistência»(2). Há aqui um erro categórico fundamental que qualquer respeitador da filosofia deveria evitar. Não se discute o objecto nem se define o objecto. O que se define é um conceito e o que se discute é a hipótese desse conceito corresponder a algum aspecto da realidade. Parece uma distinção desnecessária mas, em filosofia, estes detalhes são importantes.

Se seguíssemos a regra que Carvalho propõe, então ninguém poderia rejeitar a existência do “deus esparguete voador que existe”. Se alguém o fizesse estaria a discutir outra coisa que não este deus esparguete voador que, por definição, existe. Obviamente, essa regra é um disparate. Se percebermos que a definição não é do deus esparguete em si mas apenas de um conceito e que o que está em causa é a hipótese desse conceito corresponder a alguma coisa real, então é evidentemente legítimo rejeitar essa hipótese em favor da alternativa de que este conceito é meramente fictício e não corresponde a nada de real. Cêtaentenden? Passa-se o mesmo com as conversas acerca de qualquer outro deus. Carvalho defende que há um «Deus onipotente, onisciente e onipresente» que podemos conhecer «apenas como fundamento ativo da nossa própria autoconsciência, maximamente presente como tal no instante mesmo em que esta, tomando posse de si, se pergunta por Ele.» Também aqui é legítimo, e não é «trocar de objeto e discutir outra coisa», considerar que esta alegação não corresponde à realidade por esse tal Deus ser apenas um personagem fictício de algumas histórias antigas. Carvalho alega também não se poder concluir que Deus não existe porque «Longe de poder ser investigado como objeto do mundo exterior, Deus também é definido na Bíblia como uma pessoa […] que mantém um diálogo íntimo e secreto com cada ser humano». Confunde novamente o que está em causa. O primeiro passo não é analisar esse Deus assumindo essa definição. Antes disso é preciso decidir se há alguma justificação para considerar que essa definição corresponde a alguma entidade real. Não há. Daí o ateísmo.

Noutro texto, Carvalho começa por alegar que «Quem quer que saiba o que é lógica tem a obrigação de saber também que, se a demonstração da existência de Deus pode ser difícil, a da Sua inexistência é absolutamente impossível.»(3) Na verdade, quem quer que saiba o que é lógica tem a obrigação de saber duas coisas mais fundamentais. Primeiro, que a facilidade ou impossibilidade de demonstrar algo logicamente depende totalmente dos axiomas de onde se parte. E, em segundo lugar, que a demonstração lógica apenas garante a consistência formal com os axiomas escolhidos e não nos diz nada acerca da realidade. Por exemplo, se ignorarmos a viscosidade do ar e a turbulência, podemos demonstrar logicamente que é impossível uma abelha voar. Para a abelha, a conclusão é irrelevante.

Pela incapacidade de disfarçar estes erros crassos, suspeito que o Olavo de Carvalho não seja um filósofo muito conceituado fora do seu grupo de seguidores no Facebook. No entanto, estes erros de confundir a definição de um conceito com os atributos de algo real e de julgar que uma demonstração lógica garante que a conclusão corresponde à realidade estão na base de quase todos (se não todos) os argumentos em suporte da existência de Deus que passam por filosóficos. O desprezo que sinto e manifesto por esse tipo de argumentos não vem de qualquer desprezo pela filosofia. Pelo contrário. É precisamente o apreço que tenho pela filosofia que me torna avesso a tais imposturas.

1- O Olavo de Carvalho tem um curriculum variado. Alguns exemplos: «Colaborou no primeiro curso de extensão universitária em astrologia na PUC de São Paulo para os formandos em psicologia em 1979. Aproximadamente na mesma época, realizava consultas astrológicas e lecionou na Escola Júpiter, escola de astrologia em São Paulo que chegou a receber 140 alunos. […] Além da manutenção periódica da página pessoal com novos artigos e ensaios, Carvalho ministra, com certa frequência, cursos à distância de Filosofia». Mais em Olavo de Carvalho.
2- Olavo de Carvalho, O deus dos palpiteiros.
3- Olavo de Carvalho, A chacota geral do mundo

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