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  • 9 de Maio, 2014
  • Por Carlos Esperança
  • Laicidade

Algumas considerações sobre a Concordata de 2004

A cerimónia de despedida do núncio apostólico em Lisboa, em 2002, deixou as piores apreensões sobre os bastidores das negociações da Concordata.

O então MNE, Martins da Cruz, prometeu aí o que não podia nem devia –, o reforço da influência da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) no domínio «do ensino, da assistência social, da cultura, nos múltiplos domínios em que nos habituámos a ver uma Igreja ativa e empenhada em contribuir para a solução de problemas nacionais».

É sempre através das redes de ensino e socorro social (lares, hospitais, escolas, creches, templos) que as Igrejas se infiltram para controlar o quotidiano dos cidadãos. A tragédia dos países islâmicos, onde a religião tem hoje a mesma influência que a ICAR tinha na Europa na Idade Média, devia fazer refletir os crentes e os não crentes. E, com total impunidade, afirmou ainda: «Como católico considero um privilégio ocupar a pasta dos Negócios Estrangeiros no momento desta importante negociação», como se a religião se devesse explicitar, num Estado laico.

O país livrou-se do ministro mas não se livrou da Concordata. A experiência de 1940 devia ter-nos vacinado contra a reincidência. A própria ICAR, que sofreu o ónus de se tornar refém da ditadura fascista, associada à repressão de meio século, devia evitar a tentação de reivindicar privilégios embora ninguém, que deles beneficie, admita tê-los.

A atual Concordata foi negociada à sorrelfa e foi difícil aceder-lhe, durante alguns dias, depois de assinada. Não tendo sido possível discutir o texto que, depois de ratificado, se tornou direito interno português, diretamente aplicável, é indispensável um movimento da opinião pública para a sua denúncia e um Governo que sobreponha os interesses do Estado laico às convicções religiosas dos seus membros.

A religião não se impõe por tratados. A propagação da fé não se confia aos Estados. O mundo islâmico é o exemplo trágico. A Concordata não pode converter-se num tratado de Tordesilhas que submeta à órbita do Vaticano um espaço a que a Cúria trace o meridiano. A subserviência à tiara não augura nada de bom para um futuro que se quer plural e essa revisão ficou à mercê do promíscuo contubérnio entre ministros de Deus e de Durão Barroso. O resultado está aí.

A ICAR nunca sofreu qualquer limitação ao exercício do múnus nestes quarenta anos de democracia. Que mais pretende ou deseja proibir? A Concordata fere princípios de universalidade e de igualdade de direitos e de obrigações, que a lei geral estabelece e acautela; opõe-se à lei geral na medida em que a ICAR exige tratamento especial naquilo que lhe diz respeito; e enuncia deveres religiosos como se o princípio da separação não impusesse ao Estado total alheamento em relação a esses «deveres».

Por ser bizarro, cita-se o n.º 2 do Art.º 15: «A Santa Sé, reafirmando a doutrina da Igreja Católica sobre a indissolubilidade do vinculo matrimonial, recorda aos cônjuges que contraírem o matrimónio canónico o grave dever que lhes incumbe de se não valerem da faculdade civil de requerer o divórcio».

Se não fosse ridículo, o dever de reciprocidade, imporia um n.º 3 com esta redação: «A República Portuguesa, reafirmando a doutrina do Estado sobre o casamento civil, recorda aos cônjuges que contraírem o matrimónio civil o grave dever que lhes incumbe de se não valerem da faculdade canónica de requerer o matrimónio religioso».

Esta Concordata ofende a soberania portuguesa, é dispensável e, talvez, só o facto de ter sido assinada entre Durão Barroso e o cardeal Angelo Sodano, apenas duas pessoas, tenha evitado a primeira frase da de 1940: «Em nome da Santíssima Trindade».

 

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