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Do destino

Há quem acredite que uma pessoa só morre quando chega a sua hora, do mesmo modo que há quem acredite no destino.

Tudo bem.

Por mim, até podem acreditar nas promessas eleitorais. Eu é que não acredito – nem no destino, nem na hora pré-determinada para morrer. Nem, naturalmente, nas promessas eleito­rais. Nem em muitas outras coisas que agora não vêm ao caso.

Na verdade, as coisas não são assim tão simples; e o mero facto de acreditar nisto ou na­quilo, tem muito que se lhe diga, torna-se muito complicado, por muito simples que pareça.

Vejamos, por exemplo: eu dou um tiro num freguês qualquer, e mato-o. A minha pergunta é: tinha, ou não, chegado a hora da morte do cidadão? A pergunta parece cavilosa, mas não é. Por­que duas questões se nos deparam imediatamente: se ainda não era chegada a hora de o ca­ramelo morrer então prova-se, sem que reste a menor margem para qualquer resquício de dúvi­da, que a hora da morte pode ser quando um homem quiser, como o Natal. O que põe logo em causa a legiti­midade da crença acima referida; por outro lado, se já era a hora de o ex-cidadão, ora transformad­o, para poder servir de exemplificação, em respeitável defunto, deixar este vale de lágri­mas, eu pergunto por que carga de água há-de a polícia andar atrás de mim, se eu me li­mitei a cumprir os desígnios do altíssimo, seja lá isso o que for? Sim, porque não é de desprezar a hipóte­se de o ho­nesto cidadão se ter esquecido de que era chegada a sua hora ou, mais grave ainda, de se tratar de um cidadão relapso que, mesmo sabendo que era chegada a sua hora, se tenha positivamente borri­fado para o assunto, sem o menor respeito pelo cumprimento dos altos desígnios. Ora, assim sendo, a polícia apenas teria que se limitar a ouvir as minhas explicações e a mandar-me em paz, com dis­pensa absoluta de entrada nos calabouços.

Mas não é isso que acontece; por isso, não me venham lá com as histórias da chegada da hora, e mais não-sei-quê.

 

In “Enquanto As Armas Falavam”  Editora Lugar da Palavra.