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O meu Pacote de Leite

Quando eu era pequenino, ouvia, muitas vezes, a minha avó dizer “Olha, meu menino, café é que nos salva”, convindo esclarecer que a santa e provecta senhora era frequentadora assídua de missas e novenas, e consumidora compulsiva de rodelas de Cristo. Actualmente, a senhora já não diz nada, porque os mortos não falam, embora haja quem afirme o contrário, aliás a Joaninha até toma café com um morto todos os dias, ela é que o assevera. Adiante, que atrás vem gente, a ora defunta senhora, enquanto ainda não o era costumava, até, rezar umas lengalengas a Santa Bárbara, quando trovejava, e a verdade é que algum tempo depois a trovoada afastava-se ou silenciava-se, e o certo é que, por exemplo, agora não está a trovejar, pelo menos na cidade onde escrevo. É claro que algumas vezes troveja, mas não dura muito, o que quer dizer que há pessoas que continuam a rezar a Santa Bárbara, e isso é bom, porque eu não gosto de trovoadas. Mas nunca percebi o que tinha o café a ver com a salvação. Só mais tarde, quando já era crescidote, é que o padre Hilário, meu professor de Religião e Moral me explicou que aquilo do café mais não era de um simpático cacófato, já que a minha defunta avó queria era dizer “que a fé”, mas dizia “qu’afé”, e ouvia-se “café”. A minha avó tinha uma cultura algo suburbana, a atirar para o rural, mas pelos vistoa o padre Hilário sabia português à brava.

Entretanto cresci e fiz-me homem, como é fácil de constatar, e comecei a verificar que quase todos os meus amigos e conhecidos tinham uma fé embora não fosse uma fé comum, havia feses para todos os gostos, um deles, o Jeremias, que nós, carinhosamente, tratamos por Jeremias, ainda tem fé em que o Sporting, não é o de Braga, mas o outro, há-de ganhar o campeonato este ano, se calhar por isso é que alguém disse que “a fé é a crença no improvável”, mas a verdade é que eu comecei a sentir-me mal no seio do grupo, todos com uma fé e eu sem fé nenhuma, eu aprendi com os mais velhos a respeitar os mais velhos, que costumam ter muita sabedoria, a minha avó era velha, eu acho que sempre a conheci velha, por isso devir ter muita sabedoria, vai daí um dia decidi ter uma fé. Como já me tinha tornado ateu e materialista, achei que devia ter fé numa coisa palpável, visível, existente. Resolvi atirar a minha fezada para um pacote de leite, mas que estivesse dentro do prazo de validade, naturalmente. Meus amigos: resultou! Tal como Deus, o meu Pacote de Leite, PL, assim com maiúsculas e tudo, protege-me ou não me protege, guia-me ou não me guia. Só não me promete o Céu, e ainda bem, porque aquilo deve estar cheio de crentes e deve ser uma pasmaceira. Também é certo que não me castiga com o Inferno, o que é pena, porque deve estar cheio de gajas boas. Mas a verdade é que desde que adoptei o PL me sinto mais protegido, já que nunca mais voltei a cair pelas escadas abaixo, uma vez que passei a descê-las com cuidado, nunca fui atropelado porque olho sempre para todos os lados da rua antes de atravessar, bem sei que a rua só tem dois lados mas nunca fiando, a única coisita que me aconteceu foi ter tido cancro, mas na unidade de oncologia do hospital também vi lá duas freiras, ora, se Deus não é válido para cancro, por que carga de água o meu PL havia de ser? Depois, o meu PL tem outra vantagem, que é a de poder ser bebido quando estiver em cima do prazo de validade, e pode ser substituído por outro, o que não acontece com Deus. Vantagem, pois, para o PL.

Louvado seja.