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Deus e deuses (II)

Confesso que não li Sebastien Faure. Por várias razões, algumas das quais não me coíbo de apontar: alguma falta de tempo, muita preguiça, essa coisa deliciosa de que os crentes não podem usufruir, e, finalmente, porque me parece impossível provar a inexistência… do que não existe. Não existe, ponto final. Se eu afirmar que tenho um papagaio azul invisível pousado no meu ombro direito (ou será no esquerdo?), sou eu que tenho de provar a sua existência, nunca me passaria pela cabeça desafiar fosse quem fosse a provar que tal animal não existe.

No entanto, o primeiro artigo serviu para várias coisas: para provar que se pode discutir com elevação, e que há crentes exímios em argumentação balofa, mas que tentam, desesperadamente, justificar o injustificável. Mesmo o inverosímil. Defendem a asneira com unhas e dentes, virtude que admiro.

Deus não existe, mas é pena; porque mesmo não existindo, tem mais maleabilidade do que a mais requintada plasticina. Qualquer crente consegue moldar o seu deus da forma que mais lhe convier. Nem Tertuliano, com o seu “credo quia absurdum”! Há dias, uma Testemunha de Jeová garantia-me que Deus era de carne e osso, como o Homem, já que este foi criado à imagem e semelhança daquele. Imagem e semelhança, pois claro. Só podia!

Um dos argumentos apresentados nos comentários ao artigo anterior concerne à liberdade dada ao homem pelo criador. A liberdade, diz o comentador que eu cito de memória, consiste em, livremente, o homem escolher entre o Mal e o Bem. Julgo poder inferir que o Homem, fruto da criação, nasce perfeito, mas que vai adquirindo maldade (ou não) ao longo da vida. Não sei se estou a seguir o raciocínio do comentador mas, caso afirmativo, se assim fosse a educação não seria precisa para nada. Nem a educação nem a aquisição de valores. Faça o comentador uma experiência: coloque quatro ou cinco crianças, de idade em que ainda não adquiriram o Mal, suponhamos, dois ou três a nos de idade. Depois, coloque junto a elas um brinquedo atraente. A seguir, verifique com que altruísmo essas crianças passam o brinquedo para o colega, prescindindo dele. Ou como se esgadanham para apanhar o brinquedo.

Selvagem, meu caro. O Homem, como diz a canção, nasce selvagem. Por isso é que é preciso educá-lo.

Argumenta-se que Adão, perante a tentação da serpente, escolheu desobedecer a Deus. E que, por isso, se tornou imperfeito. Balelas! Se fosse perfeito podia, com a liberdade que Deus lhe tinha dado, escolher a obediência, sem que isso implicasse “escravidão”.

Aliás, a bondade divina está patente nessa armadilha, que nem a Maquiavel lembraria: plantar uma árvore, e proibir de comer o respectivo fruto. Sabendo, como tinha obrigação de saber, que Adão iria lá direitinho, acho que foi a Eva, não interessa, Deus sabia o que iria acontecer. Plantou a árvore, para quê? Liberdade? Poupem-me.

Mas há uma afirmação que me deixou desqueixelado: “Pode não acreditar na doutrina, mas segundo a mesma Jesus é tão eterno quanto o Pai.” Importa-se de repetir? Um filho tem a mesma idade do pai? Bom, aqui não se tratará de idade, mas de eternidade. Então são dois??? Gémeos, sócios, ou o quê? Por definição, um filho é um descendente, é fruto de, é criação, concepção, geração, o que quiserem. O comentador está a afirmar que há duas entidades. Há quanto tempo não vai à missa? Tem ouvido o credo católico, principalmente nesta parte “Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Único de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos:” Nascido do pai. Se nasceu, não existia. Se não existia, não é eterno. Se não é eterno, não é deus.

Aliás, só o passou a ser depois do Concílio de Niceia.