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Equívocos, parte 12. Grandes equívocos da neurologia?

Técnicas modernas de imagem têm revelado correlações entre experiências religiosas e a actividade de zonas específicas do cérebro, sugerindo hipóteses acerca do que causa algumas experiências religiosas mais profundas. No post mais recente da sua série «Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo», o Alfredo Dinis critica estas hipóteses por não abrangerem tudo aquilo que o Alfredo considera experiência religiosa. Fica por explicar porque é que isto há de ser um grande equívoco do ateísmo e, de qualquer forma, parece que os equívocos estão novamente do outro lado.

Escreve o Alfredo que «Sem negar o interesse dos estudos de Newberg e dos neuroteólogos em geral, deve dizer-se que há em todos eles um esquecimento da natureza relacional do ser humano, e da dimensão comunitária da experiência religiosa, entre outros elementos.»(1) Concordo que as religiões são muito mais do que aquelas experiências que a neurologia tenta compreender. Por exemplo, o Daniel Dennett entrevistou alguns sacerdotes cristãos que não acreditam na existência de um deus sobrenatural (2). Este é um exemplo extremo, mas demonstra bem que professar uma religião se pode dever a muitos factores. Quem dedicou a vida a uma carreira terá, compreensivelmente, relutância em admitir publicamente que o fez enganado, principalmente se tal admissão lhe custar o cargo, rendimento e estatuto social. Também haverá quem professe uma religião por pressões familiares, sociais ou até legais, em alguns sítios, e também quem esteja sinceramente convicto da sua religião por uma educação que precedeu a sua autonomia intelectual. Por exemplo, a Assunção Cristas diz não se lembrar da sua vida sem Deus, o que sugere que a sua religião não resulta de uma decisão ponderada, voluntária e consciente (2).

Mas parece-me um equívoco do Alfredo assumir que os neurologistas se esqueceram da complexidade social, psicológica e cognitiva da religião, ou da multiplicidade de factores que levam alguém a dizer ámen e comer a hóstia. A tecnologia, e o que se sabe do cérebro, é que não permitem tal detalhe. Não se pode ver pelos neurónios o que é que levou a Assunção Cristas a acreditar nestas coisas desde criança, ou que factores desencorajam um sacerdote descrente de dizer à sua congregação “lamento, mas isto é tudo mentira”. O que se pode observar é mais grosseiro. Por exemplo, a síndrome de Geschwind, devida a epilepsia no lobo temporal, é caracterizada por uma forte religiosidade, pedantismo, escrita muito extensa e desmaios (4). São sintomas salientes como estes – alguns até evidentes em comentários de blogs – que podem ser correlacionados com actividade nervosa detectável, como a epilepsia. Como um cientista, ao contrário dos religiosos, não se pode afirmar perito acerca daquilo que ninguém sabe, são estas coisas que os neurologistas têm de focar. O que me leva a concordar, em parte, com o Alfredo; “neuroteologia” é um termo infeliz, porque aquilo é só neurologia. Não há lá “teo” nenhum.

O Alfredo afirma também que «a actividade neuronal só poderia ser considerada condição suficiente se aquela experiência fosse fundamentalmente causada pelo cérebro. Ora, isso é o que se pretende provar.» Exactamente. E como fazê-lo? Um problema que os religiosos apontam é que a hipótese de Deus causar certas experiências religiosas não pode ser testada cientificamente, o que está parcialmente correcto. Por exemplo, a ciência não consegue testar, isoladamente, a hipótese de os ataques epilépticos serem causados por possessão demoníaca. O cientista pode examinar os neurónios mas não consegue detectar demónios. No entanto, é hoje consensual* que a epilepsia não tem nada que ver com o mafarrico. Ou seja, a ciência acabou por rejeitar, justificadamente, uma hipótese que não podia ser directamente testada.

A forma como se chegou a esta conclusão foi encontrando outra hipótese, essa testável, que explica melhor a epilepsia. Que dá mais detalhes, elucida o mecanismo e permite prever com mais rigor o que vai acontecer, por exemplo, se a pessoa for medicada. E isto aplica-se a muitas experiências. Não temos de postular um mundo dos sonhos para onde a nossa alma vai quando dormimos, nem um universo paralelo onde o bicho-papão e o Homem-aranha esperam pacientemente que alguém pense num deles. A ciência não pode provar a inexistência de tais coisas mas pode mostrar hipóteses alternativas melhores. Esse é, afinal, o melhor teste de qualquer hipótese: o confronto com as alternativas. E é o que a ciência tem feito, tantas vezes que alguns católicos até já defendem que Deus não intervém neste mundo – especialmente nos desastres naturais – à excepção do ocasional milagre necessário à contratação de novos santos.

A neurologia apenas continua este processo. O êxtase de Teresa de Ávila ou a visão de Saulo de Tarso são também fenómenos para os quais as relações sociais, a educação e a actividade dos neurónios são causas suficientes. Basta isso, que é também o que basta, como certamente o Alfredo concordará, para explicar a conversa entre Maomé e o arcanjo Gabriel, ou todas as experiências religiosas que outras religiões explicam invocando deuses diferentes do deus do Alfredo.

Um dos grandes equívocos do Alfredo é assumir que a sua hipótese de Deus ganha por omissão. Que deve ser aceite como verdadeira enquanto não se provar o contrário. É uma abordagem incorrecta. O correcto é ponderar as alternativas e favorecer aquela que explica mais dados com menos premissas por justificar. E, com o que sabemos hoje, isto deixa o ateísmo à frente de todas as religiões. Bem destacado.

*Excepto para o Bernado Motta.

1- Alfredo Dinis, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo
2- Washington Post,Non-believing clergy: Now what shall we do?
3- SNPC, Assunção Cristas e a questão de Deus, via Companhia dos Filósofos.
4- Wikipedia, Geschwind syndrome
5- Wikipedia, Neurotheology

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