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Evolução: a hipótese nula.

O Alfredo Dinis pediu-me que explicasse «como deveria ser a evolução para que fosse compatível com a existência de um Deus criador.»(1) Não pode. É como a erosão e a escultura. Se a rocha tomou aquela forma pela acção intencional do escultor então não foi pelo efeito cego da chuva e do vento. São explicações diferentes, e mesmo que o escultor tenha poderes especiais e controle a chuva e o vento, o resultado será uma escultura e não o que entendemos por erosão. A evolução e a criação também são processos diferentes.

Para compreender a disposição da terra e pedras no solo podemos considerar a geologia da região, a forma como a água escorre pelos declives e deixa sulcos ou como o vento leva a areia fina e deixa as pedras maiores. Muitos aspectos são previsíveis devido a padrões que podemos perceber nestes processos naturais. E outros aspectos consideramos aleatórios por não os poder inferir dos mecanismos que conhecemos. Aquele seixo calhou ali como podia ter calhado um pouco ao lado, e esta pedra em cima da outra podia ter ficado por baixo.

A teoria da evolução dá-nos modelos deste tipo. Percebemos porque é que a inteligência só surgiu animais multicelulares. Seres unicelulares não conseguem a complexidade do sistema nervoso e plantas e fungos não têm neurónios. Mas os vertebrados terem todos a retina virada para o lado errado parece ter sido um acidente, uma mutação menos afortunada num antepassado distante. Não se explica pela presença de um esqueleto interno.

Se encontramos pedras em forma de ponta de seta precisamos de uma explicação diferente. A erosão pela chuva ou o azar não dão um modelo adequado. Explicamos essas pedras pela acção dos caçadores que ali viviam e que as esculpiram para caçar animais. Confirmamos a hipótese procurando vestígios de acampamentos, ossadas dos animais caçados e assim por diante. O mesmo para o milho transgénico, que não pode ser explicado pela teoria da evolução mas sim pela acção propositada de quem clonou os genes de outros organismos e os inseriu no milho, deixando no genoma vestígios dos vectores de clonagem e outros marcadores.

As teorias da evolução e da erosão dos solos são o que em estatística se chama a hipótese nula. Assumindo aquelas distribuições de probabilidade para o que não conseguimos prever, sujeitas às restrições impostas pelos processos que conhecemos, prevemos o que se deve observar. Se as pedras ou as espécies estiverem de acordo com essas previsões então não se justifica concluir que surgiram de outra maneira. Só algo como o milho híbrido ou as pontas de seta é que exige outra explicação. Nesses casos, as teorias da evolução e da erosão não servem porque não são compatíveis com actos inteligentes. Nem podem vir a ser, pois visam explicitamente descrever o que acontece na ausência de inteligência.

Portanto, a teoria da evolução que temos desenvolvido nos últimos dois séculos será sempre incompatível com a criação inteligente. Nos casos em que haja manipulação inteligente de espécies precisamos de outras explicações. Além disso, para obter essas outras explicações temos de assumir algo acerca da inteligência em causa. Quais os seus objectivos, quais os processos que usou e que vestígios haverá disso para que se possa fundamentar a explicação.

Há uns tempos ensinei aos meus filhos um feitiço poderosíssimo que faz com que todo o universo seja exactamente como é. Sem formação em teologia, riram-se logo do disparate. Mas a «a existência de um Deus criador» que o Alfredo propõe sofre do mesmo problema. Se o universo for como é porque eu fiz o feitiço, ou porque Deus o fez, então as explicações que temos estão erradas. E como estas alegações não implicam nada acerca do que podemos observar, não dão qualquer informação ou explicação. A hipótese de uma criação inteligente e propositada só faz sentido se implicar algo diferente da hipótese nula.

O criacionismo evangélico diz que todas as pedras e grãos de pó foram criados de propósito por Deus. O criacionismo católico aceita a evolução e a erosão para quase tudo mas insiste que a nossa espécie, um seixo equivalente aos outros, está cá porque esse Deus quer. Deixo em aberto se um disparate será maior que o outro mas, seja como for, ambos são incompatíveis com as teorias que temos. Se estas hipóteses forem verdade precisamos de outras explicações. Que não podemos encontrar porque estas hipóteses não dizem nada acerca do que se possa observar.

O Alfredo perguntou também se será por falta de inteligência que os criacionistas católicos dizem não haver conflito entre criação e evolução. Penso que não. Afinal, os criacionistas evangélicos também dizem que a sua interpretação da Bíblia não cria conflitos com os dados que temos, o que é obviamente falso. Julgo que o Alfredo não explicará isto por falta de inteligência dos evangélicos, quanto mais não seja porque é uma pessoa educada. O problema, parece-me, está na fé. Quem decide aceitar uma proposição por confiança perde a capacidade de corrigir erros que só o cepticismo pode dar. Inteligente ou não, condena-se a ter de defender um disparate.

1- Comentário em ECR 2: Evolução

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