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Equívocos, parte 9.

Para o nono equívoco, o Alfredo escolheu «a negação do carácter inspirado da Bíblia»(1). E volta a insistir que «Os ateus contemporâneos […] pressupõem não apenas que a Bíblia contém explicações de carácter científico sobre o modo como funciona a natureza, como também que estas passagens devem ser interpretadas da forma mais estritamente literal. Aliam-se, desta forma aos fundamentalistas cristãos mais radicais como são os criacionistas.» Não é bem assim.

Os criacionistas defendem que tudo o que está escrito na Bíblia é verdade e que boa parte é cientificamente relevante. Os ateus defendem o contrário, que o que está escrito na Bíblia exprime muitas ideias erradas acerca da natureza e da origem do universo e que, cientificamente, vale o que se espera de mitos tribais com dois milénios. Onde concordamos é apenas no significado da expressão “o que está escrito na Bíblia”, porque sem concordar com o objecto da discussão nem sequer poderíamos discordar do resto. E o significado dessa expressão é consensual. “O que está escrito” num texto é o que se percebe da intenção do autor. O próprio Alfredo lê (quase todos) os textos assim. E por isso pode discordar do que eu escrevo sem ter de esperar dois mil anos pela hermenêutica adequada dos meus posts.

Os autores do Génesis, do Êxodo, e de outros livros da Bíblia, não tencionaram escrever só metáforas. Tentaram a transmitir as ideias que tinham acerca da origem do universo e da história do seu povo. E mesmo interpretando-as como metáforas ficam muito longe da realidade. Deus criou os céus e a Terra e depois fez luz. Criou cada animal segundo a sua espécie e matou tudo num dilúvio, excepto uns poucos exemplares. Isto não tem nada que ver com que sabemos da formação do sistema solar, da origem das outras espécies e da evolução da nossa. Se são metáforas, falta saber de quê.

E o Alfredo contradiz as suas crenças quando afirma que «de acordo com uma actualizada leitura bíblica» a Bíblia não «contém verdades científicas». Porque segundo a religião do Alfredo a Bíblia descreve coisas como a paternidade de Jesus, a virgindade de Maria e a ressurreição, que estão claramente no domínio científico. Os cristãos não defendem que Jesus ressuscitou metaforicamente, que Maria só era “virgem” em sentido figurado e que “Espírito Santo” era uma referência poética ao jovem bem parecido que vivia na rua seguinte. Além disso, uma boa parte do Novo Testamento é lida como um registo histórico, e o estudo da história faz parte da ciência. Quer queiram quer não, a “actualizada leitura bíblica” interpreta uma boa parte da Bíblia como sendo ciência. Diferem dos criacionistas apenas na escolha da parte que interpretam assim.

Por isso, apesar do que alega, o Alfredo não exclui da Bíblia afirmações científicas. O que faz é reinterpretar o que for preciso para que não se possa confrontar o que lá está escrito com fontes independentes. E esta batota cria uma contradição ainda mais fundamental. O Alfredo defende que o seu deus inspirou os autores da Bíblia a revelar uma mensagem divina. Mas, ao mesmo tempo, defende que esses autores divinamente inspirados estavam completamente enganados acerca da mensagem que transmitiam, e que só os hermeneutas de hoje a compreendem. Pior ainda, o que propõe é que as únicas partes da Bíblia que podemos considerar literalmente verdade são aquelas cuja verdade não podemos confirmar fora da Bíblia. O que retira, logo à partida, qualquer possibilidade de fundamentar esta hipótese. Porque antes de considerar um texto como uma verdade revelada por um deus, no mínimo temos de poder aferir se o que está lá é verdade ou não.

Daí a necessidade do equívoco do Alfredo, um equívoco comum na apologética. Diz que o meu ateísmo erra pela «negação do carácter inspirado da Bíblia». Como diz que eu nego Deus ou que nego a transubstanciação da hóstia. Mas isto é um equívoco porque não são as coisas em si que eu nego. Para já porque não se pode negar coisas, só proposições. E, além disso, não tenho aqui qualquer inspiração divina, deus ou transubstanciação para “negar”. A única coisa que o Alfredo me dá são as suas afirmações. E é apenas isso que eu nego. São essas hipóteses que rejeito, tal como rejeito as hipóteses de haver deuses ou do criador do universo ter inspirado a Bíblia, o Corão ou o Livro de Mórmon.

Este equívoco é importante porque negar a inspiração divina ou negar um deus com maiúscula parece uma enorme arrogância. Afinal quem sou eu, humano insignificante, para negar o criador do universo ou dizer quem ele pode ou não pode inspirar. Manter este equívoco dá toda a vantagem ao Alfredo. Mas desfazendo-o percebe-se que estou apenas a duvidar do Alfredo. O Alfredo que não é o criador do universo, que não inspira bíblias e que é apenas outro humano como eu. E se o Alfredo diz saber que uns livros escritos há mais de dois milénios foram inspirados pelo deus criador do universo, faz todo o sentido pedir ao Alfredo que fundamente devidamente essa afirmação extraordinária. E se vier com interpretações, reinterpretações e desculpas para não se poder testar o que lá está escrito, então é caso para dizer ao Alfredo desculpa lá, mas isso soa-me a treta.

1- Alfredo Dinis, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo

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