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Rescaldo da visita de Ratzinger

  1. As «multidões» ficaram aquém das expectativas católicas. Na Praça do Comércio («Terreiro do Paço» para os católicos e para os monárquicos), estiveram entre 80 e 100 mil pessoas (eram esperadas «mais de 160 mil» ou até «200 mil»). Em Fátima era esperado meio milhão, terão aparecido 350 mil pessoas (incluindo dezenas de milhar de estrangeiros). Só no Porto a afluência (120 mil a 150 mil) ficou próxima das expectativas (150 mil a 200 mil).
  2. No dia 11, Policarpo disse que «a maioria católica (…) não tira o lugar a ninguém». A frase parece uma expressão de requintado cinismo, especialmente se considerarmos que se tinha acabado de cortar Lisboa ao meio para que Ratzinger circulasse a 40 km/h por avenidas vazias, parando boa parte do sistema de transportes e causando transtornos à maioria que não é católica praticante e que desejaria ter tido um dia normal de trabalho e afazeres (aconteceria o mesmo no Porto três dias depois). Não teria sido mais sensato fazer as cerimónias religiosas em estádios de futebol, minorando os transtornos causados, e abdicar da encenação (falhada) das ruas cheias de fiéis, minimizando também os incómodos à população?
  3. As tolerâncias de ponto concedidas pelo governo e por autarquias (há excepções, como Vila do Conde ou a Casa Fernando Pessoa) ficam como a marca mais absurda e negativa da visita. A verdade é que, num país com 740 mil funcionários público, parece duvidoso que tenham estado em Fátima, na quinta-feira, 110 mil funcionários públicos, o que seria 15% da totalidade. O governo foi portanto desautorizado, numa medida que, racionalmente, nunca deveria ter sido aplicada aos Açores e à Madeira, e que poderia ter sido substituída por um dia de férias a pedido de cada trabalhador. A maioria da população, por apreço pela laicidade, preocupação com a produtividade ou pelos transtornos que sofreu com escolas e hospitais fechados, foi contra a tolerância de ponto. Quem disse que os portugueses não gostam de trabalhar?
  4. Os custos da operação são um mistério, mas ultrapassaram os 72 milhões de euros, principalmente devidos à paragem na produtividade. Num momento de crise, o governo de Sócrates preferiu o circo católico à ética do trabalho.
  5. Os media elucidaram a população sobre as minúcias e os detalhes mais extravagantes da visita de «Sua Santidade», incluindo o microfone de ouro e a guitarra ultra-leve. Deram pouca voz aos não católicos e aos católicos críticos do Papa, com excepções como este artigo ou a secção de opinião do Diário de Notícias. A RTP emitiu um «Prós e Contras» patético no dia 10 de Maio, em que não houve, em duas horas de programa e apesar de duas dezenas de intervenientes, uma única voz crítica. Todavia, esta visita será recordada, pelo menos por mim, como a primeira em que o laicismo não foi silenciável. A petição Cidadãos pela Laicidade ultrapassou as 5000 assinaturas, e foi lançada uma campanha pela apostasia.
  6. Ratzinger disse umas coisas. Que aceita uma República desde que devidamente concordatada, como quis o seu «venerado» (sic) Cerejeira (que citou com deleite). Em Fátima, num encontro «pastoral», a sala só rompeu em aplausos quando se pronunciou sobre matérias políticas (a IVG, o direito a uma morte digna, e o casamento entre pessoas do mesmo sexo). No avião para Portugal, transformou crimes de abuso sexual em meros «pecados», sem assumir a responsabilidade da hierarquia pelo encobrimento.
  7. Portugal ainda não entrou no pós-catolicismo, mas um país em que coabitam Carlos Azevedo e Bruna Real já mudou. E muito.