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Equívocos, parte 5.

Pela quinta vez o Alfredo Dinis imagina equívocos no ateísmo equivocando-se ele próprio acerca daquilo que o ateísmo é. «O maior drama do ateísmo», repete o Alfredo, é «estar estruturalmente impedido de conseguir os seus objectivos: erradicar a religião.» (1) Não sei se é da tradição religiosa de repetir o falso na esperança que se torne verdadeiro ou se é para mostrar que a religião resiste à crítica não lhe fazendo caso mas, seja pelo que for, lá tenho eu de esclarecer, também pela quinta vez, que o meu ateísmo não quer proibir a religião a ninguém. O objectivo é permitir a todos que tenham as religiões que quiserem, que não tenham nenhuma se nenhuma lhes interessar, e que possam discutir livremente os méritos de cada alternativa.

Se esta ambição parece modesta é pela sorte de vivermos em época e lugar onde se aceita estas discussões quase sem problemas. Noutro século, ou noutro país deste século ainda, a hierarquia religiosa não precisaria de procurar equívocos nem contrapor argumentos. Mandava prender o chato do ateu e pronto. E este estado afortunado do qual gozamos aqui e agora não é um trabalho acabado que dê royalties enquanto descansamos. É um filho, uma criança que precisa de carinho e encorajamento. E protecção atenta contra os que se aproveitam do poder para se impor aos mais frágeis. É sobre isto que trata o quinto equívoco do Alfredo:

«Os não crentes têm um particular gosto em apontar episódios negativos da história da Igreja Católica […]. O equívoco está em pretenderem transformar episódios lamentáveis em argumentos contra a existência de Deus.»

Admito parecer-me estranho que um deus omnipotente, justo e que ama toda a gente não se rale com a barbaridade que por aí fazem, fizeram, e certamente farão em seu nome. Se existisse devia deixar bem claro o que é a mando dele e o que é de improviso. Mas vou concordar com o Alfredo. A discussão sobre a existência de deuses não tem que ver com os problemas da religião. Por um lado porque tanto faz. As Cruzadas, matar judeus e hereges, a Inquisição, a sharia, as castas, o encobrimento de crimes e coisas que tais são hediondas haja ou não haja deuses. E, por outro lado, porque a existência de deuses é uma questão meramente académica sem aplicação prática. É como discutir se há zereminhos.

Como nunca ninguém viu, ouviu ou cheirou nem um zereminho* nem um deus, somos livres de lhes inventar os atributos. Alguns podem parecer impossíveis, como alimentar-se de coelhos marcianos ou nascer filho de si próprio e de uma virgem. Mas pode-se sempre inventar algo para que a hipótese deixe de ser testável. Uns comem coelhos marcianos noutro nível da realidade, fora do espaço e do tempo, e o outro nasceu filho de si e da virgem por milagre. E pronto. Com um pouco de imaginação inventa-se algo que ninguém pode provar que seja falso, e com uns rituais e vestes elaboradas muitos nem notarão que é ridículo.

Quando aponto “episódios negativos” das religiões – que infelizmente nem são poucos nem só históricos – não estou a apresentar argumentos contra a existência de qualquer deus. Estou a apontar os perigos da religião. Sem uma oposição constante e atenta é inevitável que a fé hierarquizada, dogmatizada e servida em pacote a cada fiel dê mau resultado. Sempre que a sociedade o permite, a hierarquia religiosa dominante usa o poder do “crê e cala” para se impor, para se elevar acima da lei e para privar a maioria dos seus direitos mais básicos. Isto não aconteceu uma ou duas vezes. Aconteceu sempre e em qualquer sítio onde deixassem a religião mandar na vida das pessoas.

A religião dá às pessoas certezas acerca daquilo que não sabem. Ou afirmando proposições desligadas de quaisquer dados, como a transmutação da hóstia e os milagres, ou forçando ignorância sobre evidências contrárias, com virgens que dão à luz, homens que morrem e ressuscitam e a Terra ter dez mil anos de idade, por exemplo. E isto é mau.

Não é mau pela fé; cada pessoa ter confiança nas suas ideias não tem mal nenhum, desde que saibam dialogar e aceitem que outros discordem. O que é mau é a religião, essa alavanca que uns espetam na mente dos outros para ter uma autoridade falsa e um poder indecente de ditar o que se há de pensar e acreditar.

Ao contrário do que o Alfredo sugere eu não aponto os podres das religiões para refutar a existência de deuses. Essa questão morre na falta de evidências que suportem qualquer especulação sobre qual deus é suposto existir, como é e o que quer. Os “episódios negativos” são preocupantes porque manifestam um problema muito mais grave que a existência de deuses. O perigo de confiar a alguns homens a escolha dos disparates em que os outros vão acreditar. Não é algo que se possa erradicar e sou contra sequer que se tente. Há quem goste que lhe digam em que acreditar, e há quem goste de o dizer. Temos de respeitar esse direito.

Mas temos também de lutar para proteger o nosso direito de apontar o ridículo e criticar os abusos. Porque quando não conseguem convencer alguém a enfiar essa alavanca na cabeça tentam enfiá-la à força. E enfiam onde calhar…

* Confirmei mesmo agora no Google…

1- Companhia dos Filósofos, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo

Em simultâneo no Que Treta!