Loading

A Igreja católica abandona a Europa

É fácil perceber que o grande inimigo da religião, para além da concorrência, não é o ateísmo mas a liberdade. Quando o aparelho repressivo se desmantela ou deixa de estar ao seu serviço, pelo sucesso das armas ou força das ideias, desagrega-se a fé e o clero.

Na Europa, o último século foi desastroso para o cristianismo e, especialmente, para o catolicismo. O nazismo, sendo um fenómeno secular, nunca poderia ter levado tão longe a demência se o anti-semitismo não fosse apanágio do Novo Testamento e da formação de tantos prelados.

Durante e após a II Guerra Mundial, a Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) excomungou todos os comunistas e nunca excomungou um único nazi. Entende-se, pois, como a derrota do nazismo e do fascismo abalou o seu prestígio.

A moral separou-se da religião e os valores já não estão reféns da vontade divina nem de quem reclama alvará para a interpretar. Para desespero do Vaticano, a crença, a descrença e a anti-crença fazem hoje parte dos direitos e liberdades que as democracias garantem.

Mas surpreende a forma como o Vaticano, sempre prudente, vai desistindo da Europa para apostar noutros continentes. Admira que um Papa romano, europeu, prefira as crucificações na Indonésia, o protectorado de Timor e o catolicismo do Opus Dei, na América do Sul, ao cristianismo saído do Vaticano II. Na Europa, de que Bento 16 parece desistir, restam a Polónia, Malta, Irlanda, Croácia e Eslovénia a praticar um catolicismo ao gosto do Vaticano e dos bispos de monsenhor Lefebvre. Resta a opção por África onde a diferença entre a feitiçaria e a transubstanciação do pão e do vinho será difícil de explicar.

A Igreja Católica sabia que, ao excomungar os médicos brasileiros que salvaram a vida de uma criança de nove anos, grávida de gémeos, violada pelo padrasto, desencadearia a ira do mundo civilizado; que a homofobia, comum às religiões do livro, é anacrónica; que a rejeição do preservativo, o meio mais eficaz de prevenir as doenças sexualmente transmissíveis, é moralmente injusta e cientificamente insustentável.

Ao defender dogmas religiosos, sem ponderar a tragédia humana que daí resulta, Bento 16 tornou-se responsável pelo agravamento da epidemia e pela sabotagem dos esforços dos organismos de combate à SIDA, inquietos com a perda do controlo epidemiológico.

A Igreja católica, refém da teologia do látex, é incapaz de abdicar da herança de Paulo VI. Este, contrariando a opinião da vasta comissão de peritos constituída pelo Vaticano e que recomendava que o uso de contraceptivos devia ser uma opção livre dos casais, preferiu avançar com a publicação da encíclica Humanae Vitae. E, assim, enquanto a Igreja acrescenta santos, bulas, encíclicas, excomunhões e dogmas, perde a capacidade de contribuir para o progresso, especialmente em África, onde poderia dar uma ajuda inestimável na luta contra o tribalismo, a corrupção, a fome e as epidemias.

O Papa deixou de ser referência moral e passou a motivo de troça. O que não augura nada de bom porque, no mercado da fé, há pior.