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12 de Julho, 2006 Palmira Silva

O verdadeiro ecumenismo

O grande Rabi de Israel, Shlomo Amar (sefardita), enviou uma carta a Bento XVI pedindo a condenação da Parada Internacional do Orgulho Gay, programada para 10 de Agosto, em Jerusalém. Segundo diversas fontes, na carta Amar pede ao Papa que «condene de forma inequívoca e enérgica este terrível fenómeno, com a esperança de despertar um protesto geral por parte de diferentes dignitários religiosos». O Rabi pede ainda a Bento XVI: «Ajude-nos a impedir a Parada Mundial Gay, programada para o mês de Agosto, em Jerusalém, pois ela ‘viola e humilha’ a Cidade Santa».

Na realidade os dignitários de todas as religiões do livro e suas variantes são uníssonos na condenação do evento, como seria apenas expectável. Os muçulmanos de Israel esqueceram o conflito israelo-árabe e juntaram as suas às vozes judaicas e cristãs de diferentes denominações -incluindo a Igreja Ortodoxa – que exigem do Parlamento a proibição do desfile.

O núncio apostólico em Jerusalém, monsenhor Pietro Sambi, advertiu que a Parada Gay «não seria apenas uma ofensa, mas uma provocação para os judeus, cristãos e muçulmanos de Jerusalém e do mundo inteiro».

Já o sheik Abed Al Salam Menasra, adjunto do mufti de Jerusalém, pediu para que não provoquem «a cólera com uma celebração ímpia e profanadora», que pode levar «à perda da cidade santa».

A «imundície», nas palavras de Nissim Zeev, deputado do Partido ultra-ortodoxo Shas, conseguiu algo inaudito na história do Knesset: representantes muçulmanos e das alas judaicas mais à direita (isto é, religiosas) uniram-se em torno de uma causa comum: a imposição a todos dos preconceitos neolíticos sobre sexualidade do «livro».

Até de Moscovo vieram vozes de protesto: Yona Metzger, o Rabi-chefe aschenazi, que participa do encontro inter-religioso promovido pelo Patriarcado Ortodoxo, pede que se «cancele a parada gay na Cidade Santa de Jerusalém» justificando:

«Como todos sabem Jerusalém é o berço no qual nasceram as três religiões monoteístas. Devemos estar unidos para preservar sua histórica santidade, e os valores de pureza e moralidade que a caracterizam».

No encontro, que inclui representantes de 40 países, incluindo a Síria, Irão e Arábia Saudita, Metzger afirmou que se deviam esquecer as disputas políticas e que «todos os países dever-se-iam unir em torno da sua crença num Deus único».

Ou seja, para o rabi os fundamentalistas das respectivas religiões dever-se-iam unir contra não só os que não acreditam em resquícios neolíticos da evolução humana, mantidos anacronicamente pela imiscuição religião-estado que obriga ou permite a doutrinação religiosa desde o berço, como contra os que não seguem os ditames, muito semelhantes, das religiões do Livro. De facto, todas elas são contra a abominação que constituem os direitos do homem, principalmente a liberdade de opinião e expressão, e especialmente são contra a abominação mor que é a igualdade de direitos para as mulheres. Todas elas reclamam que o Direito dos países respectivos deve ser regido por esses ditames!

As últimas notícias indicam que esta união inédita de políticos e dignitários de todas as religiões do livro já deu resultados: é quase certo que a Parada Mundial Gay se realizará não em Jerusalém mas sim em Tel Aviv, por razões de segurança.

De facto, considerando que os fundamentalistas das religiões do livro não são exactamente conhecidos pela tolerância mas mais pela violência «veemência» com que protestam os insultos à sua fé – dos quais o insulto máximo é o facto de o Direito não obrigar todos a seguirem os seus ditames anacrónicos – a Polícia de Jerusalém, que tem de lidar com a possibilidade de atentados bombistas suicidas numa base diária, considera difícil garantir a segurança dos participantes no evento!

Acho deveras significativo que todos estes piedosos dignitários religiosos, que rapidamente se uniram nesta «causa» comum – como se uniram no passado para condenar o reconhecimento dos direitos da mulher – sejam incapazes de se unir numa causa essa sim meritória: um apelo à paz, emitido com a mesma veemência com que debitaram este, apelo à paz que na nossa época é equivalente a um apelo ao fim da violência em nome de Deus!

11 de Julho, 2006 Carlos Esperança

Ainda o protocolo de Estado

PS e PSD acertaram lista do protocolo – D.N. ontem, pág. 7 (sítio indisponível)

O que está em causa, na discussão do protocolo de Estado, é mais o lugar das Igrejas na democracia do que a dimensão e o sítio em que se arruma um cadeirão para o cardeal da Igreja católica.

A relevância dos dignitários católicos é apenas um pretexto para justificar a manutenção de privilégios ancestrais e uma manobra para caçar votos à custa da influência religiosa nas opções políticas dos portugueses, discriminando as outras religiões.

O que incomoda alguns fundamentalistas é a incompetência do Estado laico em matéria religiosa, a sua incapacidade para se pronunciar sobre verdades divinas e o impedimento para decidir sobre a vontade de Deus. De resto, a separação Igreja/Estado só favorece as duas instituições e evita a promiscuidade que foi apanágio da ditadura.

Ninguém duvida da liberdade religiosa em Portugal a menos que entenda por liberdade o direito hegemónico de uma religião particular, incompatível com a Constituição e a sociedade plural em que vivemos.

Um cadeirão destinado a um prelado numa cerimónia de Estado é tão aberrante como a reciprocidade nas cerimónias litúrgicas para os detentores de altos cargos da República.

Já a exótica manifestação da vontade de incluir um descendente da família de Bragança nas cerimónias oficiais (um delírio do CDS) é ignorar que a República se ergueu contra a Monarquia e que semelhante privilégio não é concedido a nenhum descendente dos presidentes da República.

No fundo é pôr em causa o fundamento do poder e a sua origem, aceitar ou não o voto secreto e universal para cargos transitórios ou regressar ao direito divino para funções vitalícias e hereditárias.

11 de Julho, 2006 lrodrigues

Como um ateu vê um crente

Acho que uma pessoa que crê em Deus, chame-lhe Jesus Cristo, Alá ou qualquer outra coisa parecida, ou o sinta somente como uma «força superior inexplicável», não se apercebe verdadeiramente do que pensa um ateu sobre a crença numa qualquer divindade.

Ainda há poucos dias um piedoso seguidor das virtudes místicas do Papa Bento XVI me declarou, e muito convictamente, que não acreditava que nenhum ser humano poderia, por natureza, ser verdadeira e inteiramente ateu.
Vai para o Céu, coitado…

Mas talvez o consiga explicar através desta singela história:

Durante a 2ª Guerra Mundial os americanos ocuparam uma pequena ilha do Pacífico para ali instalarem uma base militar de abastecimentos.
A ilha era habitada por uma pequena tribo que vivia praticamente ainda na Idade da Pedra.

Mal chegaram, os americanos construíram uma pista de aviação, uma torre de controle, alojamentos, e instalaram toda a parafernália de equipamentos que é possível imaginar.
Como é de calcular, os habitantes da ilha conheceram com os americanos uma inesperada época de prosperidade e abundância.

Quando terminou a guerra, os americanos embalaram a trouxa e foram-se embora.
E lá terminou a Coca-cola e a abundância para aquela gente, novamente isolada do resto do mundo.

Meia dúzia de anos mais tarde, alguém regressou à ilha e constatou uma realidade curiosíssima:

Os nativos da ilha tinham desenvolvido um culto religioso a um Deus a que chamavam «Cágau» uma corruptela de «Cargo» ou carga, em inglês.
Mantinham a velha pista de aviação limpa, construíram uma espécie de torre de controle em canas e tinham criado uma casta de sacerdotes e uma complexa mitologia que explicava que um dia haveriam de descer dos céus uns messias, uns deuses de pele branca que viriam novamente trazer grande prosperidade ao povo.
E diariamente realizavam cerimónias religiosas conduzidas por sacerdotes na pista de aviação, em que apelavam à descida à terra daqueles entes misteriosos, supremos e omnipotentes.

Posto isto,
Que pensa desta história um qualquer cristão, muçulmano ou judeu?
Que pensará desta história, por exemplo, um católico?

Presumo, em primeiro lugar, que não lhe passará pela cabeça proibir os nativos da ilha de praticarem livremente o seu culto ao Deus «Cágau».
Aqui há uns anos atava-os a uns postes e deitava-lhes fogo. Mas (Deus o livre) agora não.
Quanto muito, pensará em enviar para o local meia dúzia de missionários para os evangelizar, mas isso é outra história.

Decerto olhará para aqueles nativos, antes de mais, simplesmente como uma interessante curiosidade antropológica.
Decerto os olhará, não com sobranceria ou superioridade, mas com um sensação mista de “diferenciação” intelectual e pessoal pelo curioso primitivismo daquela “pobre gente” da Idade da Pedra.
Terá até alguma pena pelo desperdício de tempo gasto com o culto a um Deus inexistente, como é o Deus «Cágau» (que toda a gente sabe que não existe).
E terá também pena pela certeza absoluta da inutilidade dos ritos religiosos que, por mais sentidos que sejam, que por muita fé e fervor que revelem por parte dos «fiéis», não trarão nunca de volta a prosperidade dos deuses de pele branca.
E terá também assim uma espécie, e sem qualquer conotação pejorativa, de sensação de quase… ridículo.
Estou até convencido que quando pensa na infantilidade daquela “pobre gente” esboça até um sorriso…

Pois bem:
Façam-me o favor de considerar que é precisamente assim que um ateu vê um cristão, um muçulmano, um judeu ou qualquer outro teísta, tenha ou não a sua fé uma designação atribuída, chame-lhe ou não «uma força superior inexplicável».

Vê-o exactamente, não com superioridade ou sobranceria, mas como uma mera e simples curiosidade antropológica, tão primitiva que é até oriunda da Idade da Pedra.
Vê os ritos e os cultos que o crente pratica como um lamentável desperdício de tempo e tem até pena daquela “pobre gente” pela infantilidade e completa inutilidade dessa prática.
Lamenta até as vidas humanas completamente perdidas e desperdiçadas em oração, em contemplação, em auto-amesquinhamento e em louvor do “Senhor” quando, de facto, não há “Senhor”, não há Deus «Cágau» nenhum.

É assim, tão simples como isso!

Nem sequer são necessárias quaisquer considerações filosóficas ou explicações muito elaboradas.
Como nem sequer são precisas teologias, teosofias, teodiceias e outras coisas começadas por “teo”, ao fim e ao cabo completamente inúteis, porque sob a capa de grandes lucubrações intelectuais, e até com alguma graça, diga-se, procuram unicamente justificar e explicar a existência de algo… que não existe.

Simplesmente porque o ateu vê a religião que o crente pratica, a «fé» que orgulhosamente exibe e os ensinamentos de Deus que apregoa, assim como uma espécie (e sem qualquer conotação pejorativa) de sensação de quase… ridículo.

E quando pensa nisso, e na infantilidade daquela “pobre gente”, o ateu muitas vezes esboça até um sorriso.

Mas não por muito tempo:
Porque pensar nos milhões de pessoas que ao longo dos tempos foram mortas em nome desse patético conto de fadas, desse culto ao nada, dessa mera curiosidade antropológica, inútil, mesmo infantil e até um pouco ridícula, não dá vontade de rir realmente nenhuma…

(Publicado simultaneamente no «Random Precision»)

11 de Julho, 2006 jvasco

Agnosticismo e Ateísmo: o esclarecimento impõe-se

A definição de ateísmo e agnosticismo não é consensual. Diferentes autores usam diferentes topologias para descrever as possíveis crenças pessoais, muitas delas contraditórias entre si.
Embora seja comum as pesoas pensarem que o agnosticismo e o ateísmo são posições incompatíveis entre si, muita literatura sobre o assunto não considera essas posições como sendo mutuamente exclusivas.

Para que não existam mal-entendidos de futuro, explico neste artigo qual a terminologia que geralmente uso quando me refiro a estes termos.

O ateísmo e a crença:
Vários indivíduos acreditam num Deus particular (ou em vários Deuses), pelo que são crentes. Chamo ateu a qualquer indivíduo que não seja crente.

Assim sendo, esquematicamente, a sociedade pode ser dividida da seguinte forma:

Vários ateísmos:
Muitas das pessoas que se dizem agnósticas, fazem-no para efectuar uma distinção entre diferentes formas possíveis de ateísmo. Existem duas distinções essenciais: ateísmo implícito e explícito; e ateísmo forte e fraco.

A diferença entre ateísmo implícito e explícito é a seguinte: enquanto que o ateu explícito acredita positivamente que Deus não existe, o ateu implícito, embora não acredite em Deus, também não acredita necessariamente na sua inexistência.

A diferença entre ateísmo fraco e forte é outra: enquanto que o ateu fraco admite a possibilidade de, perante certos indícios ou provas, deixar de ser ateu, o ateu forte acredita que tais provas ou indícios são simplesmente impossíveis de surgir.

Naturalmente um ateu forte só poderá ser um ateu explícito, embora muitos ateus explícitos possam ser ateus fracos.

Completando o esquema anterior vamos obter:

O agnosticismo:
É agnóstico aquele que afirma não saber se Deus existe.

Assim sendo, um crente pode ser agnóstico se não tiver a certeza que Deus existe. Qualquer ateu fraco (que inclui todos os ateus implícitos e muitos ateus explícitos) será também agnóstico. Ser agnóstico e ateu é portanto compatível.

O esquema que se segue divide a sociedade entre os que são agnósticos e os que não são. A cinzento escuro estão os agnósticos:



Agnosticismo fraco e forte:

Enquanto que o agnóstico fraco, não tendo actualmente a certeza acerca da existência de Deus, encara a possibilidade de vir a conhecer a resposta frente às provas ou indícios apropriados, o agnóstico forte crê que a existência de Deus é um problema intrinsecamente impossível de resolver, e que nunca se poderá saber se Deus existe ou não.

O esquema pode portanto ser completado, representando a cinzento escuro os agnósticos fracos, e a preto os agnósticos fortes:

Neste caso, o pontinho amarelo representa a minha posição pessoal. Em última análise não acredito que se possa saber nada com certeza (a não ser que existo enquanto ser pensante, já dizia o outro), embora enquanto empirista considere que os indícios tornam certas hipóteses mais plausíveis que outras, e é mero bom senso acreditar nas hipóteses mais plausíveis.

Assim sendo, da mesma forma que não sei se a força da gravidade existe, mas acho mais plausível que exista do que uma gigantesca coincidência ter feito biliões de partículas movendo-se ao acaso terem-se portado até agora, por coincidência, como se existisse – e então acredito na força da gravidade – sou um agnóstico forte, mas acredito positivamente que Deus não existe. É a mera escolha da hipótese mais plausível dados os indícios e provas a que tenho acesso.

10 de Julho, 2006 Carlos Esperança

B16 – O inveterado celibatário

O jurássico pastor alemão é um apóstolo da violência. Impõe o celibato indissolúvel ao clero e exige a indissolubilidade do matrimónio aos leigos, embora nunca fosse difícil dissolver um matrimónio canónico para quem tivesse dinheiro e influência.

O Vaticano não é um tribunal, é a casa de alterne onde se negoceia o direito canónico.

Quando o arcebispo Emmanuel Milingo se casou, sob os auspícios do reverendo Moon, o Vaticano envidou esforços para que o prelado zambiano rompesse o matrimónio com a esposa, María Sung, e regressasse ao múnus e à obediência a Roma. E conseguiu.

A coerência não é uma virtude apostólica mas a intolerância e a violência são apanágio da fé e o paradigma das religiões.

B16, na pouco gloriosa ofensiva prosélita em Espanha, que ainda julgava protectorado da ICAR, fingiu que foi proteger «a maravilhosa realidade do matrimónio indissolúvel entre homem e mulher, a origem da família», mas foi defender os interesses do Vaticano e o poder do clero espanhol, cooperando com a missa em comícios conjuntos do PP e do Opus Dei.

Este ataque à liberdade individual, em especial ao divórcio, é uma obsessão demente que o actual Papa interiorizou do seu predecessor. Os fanáticos das penas perpétuas não compreendem que a liberdade é um bem superior aos seus preconceitos.

10 de Julho, 2006 Ricardo Alves

Religião e terrorismo

Fez na sexta-feira um ano que quatro bombistas suicidas mataram 52 pessoas em Londres. Nesse 7 de Julho de 2005, foi divulgado um comunicado de proveniência pouco clara em que uma «Organização Secreta da Al-Qaeda na Europa» se vangloriava pela «vingança contra o governo cruzado e sionista britânico em retaliação contra os massacres que a Grã-Bretanha está a cometer no Iraque e no Afeganistão». Esse comunicado começava «Em nome de Deus…» e terminava com uma citação do Corão.

Posteriormente, foi divulgado em Setembro um vídeo em que Sidique Khan (o líder dos bombistas do 7 de Julho), clarificava que «a nossa motivação principal não vem das comodidades tangíveis que este mundo tem para oferecer. A nossa religião é o Islão, obediência ao único Deus verdadeiro, Alá, e seguir no caminho do profeta final e seu mensageiro, Maomé».

Mais recentemente, a Al-Qaeda reclamou explicitamente a autoria dos atentados de 7 de Julho, num vídeo em que Al-Zawahiri afirma que Shehzad Tanweer e Sadique Khan receberam treino com explosivos em campos da Al-Qaeda. Os objectivos da Al-Qaeda são globalmente religiosos: conseguir que os EUA retirem da Arábia Saudita (por causa dos «lugares santos» de Meca e Medina), esmagar Israel (por ser um Estado judaico mantido «com apoio de Cruzados») e derrubar os regimes árabes que não sejam suficientemente islâmicos.

E no entanto, apesar de toda a evidência de que os terroristas do 7 de Julho, como anteriormente os do 11 de Março e os do 11 de Setembro, como outros islamistas que partilham da ideologia integrista da Irmandade Muçulmana, são todos homens profundamente religiosos que dificilmente matariam se não estivessem convencidos de que existe justificação religiosa para os seus actos, a maior parte da opinião pública persiste em negar a dimensão religiosa quer dessa ideologia integrista quer desses actos terroristas. Essa visão angélica da religião, que resiste a aceitar que se mate acreditando cumprir um dever religioso, é incongruente com uma Europa que sofreu séculos de guerras religiosas, contou milhões de mortos nas inquisições, iniciou Cruzadas e também teve os seus terroristas religiosamente justificados.

A utilização de uma ideologia religiosa para fomentar o ódio de grupo e convencer a matar é, porém, uma constante da história da humanidade. Compreende-se que assim seja: as religiões reveladas autorizam os crentes a imaginarem-se num plano ético superior aos seus semelhantes, e criam a ilusão de que estão integrados numa «ordem cósmica» unindo o natural e o sobrenatural, a vida e a morte, o passado e o futuro. Quando vividas em comunidade, podem até tornar «glorioso» o sacrifício do indivíduo a favor do grupo. A religião pode assim desculpabilizar aquilo que a maioria das pessoas, e até a maioria dos crentes, consideraria, noutras circunstâncias, repulsivo.
10 de Julho, 2006 Palmira Silva

Mais leituras de Verão

The Popes Against the Jews: The Vatican’s Role in the Rise of Modern Anti-Semitism , do historiador David I. Kertzer, duas vezes galardoado com o Prémio Marraro da Sociedade para Estudos Históricos Italianos.

Depois do The Catholic Church and the Holocaust, 1930-1965, de Michael Phayer, um livro de outro historiador mundialmente reconhecido que analisa a acção da Igreja durante e após o Holocausto, este livro é essencial para se perceber como ele foi possível. Ambos especialmente recomendados como antídoto para os revisionismos históricos da ICAR. Uma análise isenta dos acontecimentos por um dos poucos historiadores não ligados à Igreja Católica a quem foi concedida autorização para consultar os arquivos da Inquisição.

Um excerto do livro:

«Este argumento [referindo-se às mentiras descaradas constantes no «Nós lembramos – uma reflexão sobre o Shoah»] , infelizmente, não é o produto de uma Igreja que quer confrontar a sua história. Se os judeus adquiriram direitos iguais na Europa dos séculos XVIII e XIX tal foi conseguido contra os furiosos, estridentes e de facto indignados protestos da Igreja e do Vaticano. (…)

O Padre De Rosa nota com pena a campanha de um século contra os judeus do jornal Civilta cattolica observando que o jornal só alterou o rumo em 1965, na sequência do Concílio Vaticano II. (…) Ele então lista algumas das acusações feitas regularmente nas páginas do jornal: «que os judeus combatiam a Igreja, que praticavam o assassínio ritual de crianças cristãs, que tinham um poder político enorme nas mãos ao ponto de controlarem governos e, acima de tudo, que possuíam uma enorme riqueza, obtido por usura, e tinham assim uma inacreditavelmente forte influência económica, que usavam em detrimento do cristianismo e dos cristãos». O padre De Rosa acrescenta, com muita correcção, que o jornal jesuíta não estava sózinho na produção destas acusações porque elas enchiam as páginas de muitas das principais publicações católicas.

De forma a ilustrar o anti-judaísmo do Civilta cattolica (por oposição ao anti-semitismo [um sofisma da Igreja Católica, que pretende nunca ter sido anti-semita, apenas anti-judaica]) ele mostra algumas passagens de artigos do jornal da autoria dos padres Rondina e Ballerini nos anos 1890. Estes contam histórias da apetência dos judeus pelo domínio do mundo, a sua fome de ouro, e a sua crença de que os cristãos não eram melhores que animais. Onde quer que os judeus vivessem, nas palavras destes autores, elas ‘formam uma nação estrangeira e juram inimizade ao bem estar das pessoas’. O que deviam os bons católicos fazer a esta terrível ameaça à sua vida e felicidade? A resposta oferecida nas páginas do Civilta cattolica era clara: A igualdade civil dos judeus devia ser imediatamente revogada, porque ‘eles não tinham algum direito a ela’ permanecendo para sempre ‘estrangeiros em todos os países, inimigos do povo de qualquer país que condescenda em os albergar’».

Aliás, como nota o autor nesta introdução, forçar os judeus a usar tarjetas de identificação amarelas e mantê-los fechados em ghettos não é uma invenção dos nazis no século XX mas uma política advogada pelos Papas – e seguida religiosamente nos estados papais e em alguns países mais obedientes ao Papa – durante centenas de anos.

9 de Julho, 2006 Palmira Silva

O rapto de Edgardo Mortara

A recente preocupação da Igreja de Roma com a família, que se tornou a desculpa para as manobras jurássicas de recuperação do integrismo perdido, de que este Encontro das Famílias foi palco privilegiado, seria no mínimo bizarra não fora ser evidente qua a Cúria Romana se está nas tintas para a família e que este é apenas um tema populista com que podem acirrar as hostes ululantes de fundamentalistas católicos.

De facto, se olharmos mesmo para a história recente da ICAR não encontramos esta preocupação com a defesa da família. Assim de repente lembro-me da criança judaica de 6 anos, Edgardo Mortara, que foi removida à força pela polícia papal da tutela dos seus pais numa Bolonha à época – 1858 – integrante dos Estados Pontíficios.

Os inquisidores que ordenaram o rapto da criança usaram o pretexto de que esta tinha sido baptizada in extremis por uma criada. Segundo as leis estabelecidas pelos Papas, que governavam de facto metade da Itália, era proibido judeus criarem crianças baptizadas. Apesar de raptos de crianças judias supostamente baptizadas por graça de um qualquer católico anónimo ser uma prática recorrente da Igreja-Estado, desta vez o caso teve repercussões internacionais dada a atmosfera de rebelião contra o poder temporal ditatorial da Igreja em Itália.

Assim, cerca de 20 editoriais do The New York Times foram devotados ao tema e quer o imperador Franz Joseph da Áustria quer Napoleão III de França pediram a Pio IX, beatificado em 2000 por João Paulo II* e o tal que inventou o dogma da infalibilidade papal, que devolvesse a criança aos pais.

Todos os apelos, inclusive dos pais que protestavam ser impossível o seu filho ter sido baptizado, foram infrutíferos: Pio Nono enclausurou Edgardo num mosteiro onde, ao fim de anos de lavagem cerebral, acabou por ser ordenado padre.

Para ser mais correcta os apelos dos pais tiveram alguma reacção do Vaticano: foi-lhes respondido que teriam o filho de volta no instante em que se convertessem ao catolicismo. Ao que os Mortara se recusaram e como tal o beato Pio Nono considerou que foram eles e a sua obstinação em «fechar o coração» à revelação e piedade cristãs os responsáveis por não terem recuperado o filho.

Ironicamente o rapto de Edgardo foi um factor não despiciendo no processo de unificação da Itália, o Risorgimento, que ditou o fim do poder temporal da Igreja de Roma. De facto, o destino desta criança, arrancada dos braços dos pais por uma Igreja anti-semita e déspota, simbolizou toda a campanha revolucionária de Mazzini e Garibaldi para acabar com o domínio da Igreja Católica, tirar a Itália das teias do obscurantismo e estabelecer um estado moderno, democrático e laico.

Mais recentemente, na altura em que João Paulo II, que já tinha beatificado um facínora do Holocausto, o cardeal Stepinac que ainda voltarei a abordar, pretendia beatificar Pio XII, foi divulgado – pelo historiador Alberto Melloni, professor de história religiosa da Universidade de Bolonha e um dos maiores especialistas mundiais em história cristã – que Pio XII terá ordenado à Igreja Católica francesa que não devolvesse aos seus pais ou a instituições judaicas as crianças judias baptizadas durante a ocupação nazi.

A história completa, assim como uma tradução do documento comprovativo das ordens de Pio XII pode ser encontrada no excelente Rua da Judiaria.

* O beato Pio IX é o fazedor de um dos santos mais representativos da Igreja de Roma: um dos inquisidores mais tristemente famosos de Espanha, Pedro Arbues de Epilae, apenas ultrapassado no zelo e na «eficácia» por Torquemada.

Um dos teólogos liberais da época, Johann von Dollinger, protestou aquilo que considerou a «exaltação de um homem que determinou o baptismo compulsório de judeus e depois os torturava para se convencer que as conversões eram sinceras».

Dollinger, que considerava ser a Inquisição a mola impulsionadora do domínio mundano da Igreja e do seu poder sem limites sobre as vidas e propriedades dos homens, associava o anti-semitismo da Igreja com o poder temporal coercivo do papado e com o pretensão da Igreja que apenas ela era a detentora da «verdade absoluta». O Sílabo dos Erros e o decreto da infalibilidade papal, que não aceitou e foi por isso excomungado, foram o corolário das suas teses.

9 de Julho, 2006 Carlos Esperança

Navarro-Valls uivou contra Zapatero

O porta-voz do último teocrata europeu, Navarro-Valls, membro do Opus Dei, ululou azedume e raiva contra o legítimo primeiro-ministro de Espanha.

A anunciada ausência de Zapatero à missa, desporto que não pratica, serviu de pretexto para a ameaça, intriga e denúncia do serventuário de B16 cuja ingerência num país que julgava protectorado seu é um acto de incivilidade, ódio e provocação.

B16 foi em viagem de negócios presidir a um comício organizado pelo Partido Popular, Opus Dei e outros grupos religiosos de extrema-direita – 5.º Encontro Mundial das Famílias -, um acto de proselitismo inventado por um dos seus antecessores.

Esqueceu-se que Zapatero é um homem digno que não se ajoelha e, muito menos, se põe de rastos. Não compreendeu o enraivecido pastor alemão que já não é a ditadura de Franco que governa Espanha, em idílio com o Vaticano e em guerra com a democracia.
Desta vez ficou claro que a Espanha não aceita intromissões beatas na sua política interna.

9 de Julho, 2006 Palmira Silva

Bento XVI : guerra aberta em Espanha

Poster retirado do blog de um dos nossos leitores galegos


Por definição, toda religião – toda fé – é intolerante, pois proclama uma verdade que não pode conviver pacificamente com outras que a negam.
Mario Vargas Llosa

A deslocação em massa das cúpulas do Vaticano – vários Cardeais da Cúria Romana e de muitos dos mais próximos colaboradores de Bento XVI – ao V Encontro Mundial das Famílias organizado pela ICAR confirma o que a imprensa católica pretende ser mentira: esta é uma visita política cuja fim último é aumentar a tensão entre Igreja e Estado e demonstrar claramente a oposição da Igreja ao estado de direito.

Aliás, o título de uma das notícias da Agência Ecclesia não deixa dúvidas sobre o objectivo desta visita papal: «Bispos espanhóis recebem apoio de Bento XVI na luta contra a secularização».

Desde a sua eleição que Zapatero deixou claro que pretende ser o líder de um país europeu do século XXI, cada vez mais secular e para tal é necessário que a Igreja abdique dos (muitos) privilégios na sociedade e na política espanhola que a ditadura fascista lhe concedeu. Como seria expectável, a Igreja Católica não quer abdicar desse privilégios anacrónicos e esta visita é uma demonstração de força que, como no passado, indica que a Igreja não olhará a meios para os manter.

De facto, pouco depois de se ter esboçado, em Julho de 1936, uma rebelião contra o governo democraticamente eleito da Frente Popular, Pio XI exortou os católicos espanhóis a lutarem lado a lado com Franco na «difícil e perigosa tarefa de defender e restaurar os direitos e a honra de Deus e da Religião».

A Igreja de Espanha declarou-se imediata e entusiasticamente do lado de Franco, nomeadamente através da pastoral «Las dos ciudades» do bispo de Salamanca, Enrique Pla y Deniel (nomeado cardeal por Pio XII em 1946, sem dúvida em reconhecimento pelos bons serviços prestados), datada de Setembro de 1936.

Uma rebelião sem pernas para andar, com o apoio da Igreja Católica e do Vaticano, de Mussolini e de Hitler, transformou-se na Guerra Civil Espanhola que causou um milhão de vítimas e o exílio de centenas de milhares de espanhóis.

As exortações do Arcebispo de Burgos, Francisco Gil Hellín, contra os «bezerros do poder», e o apelo às famílias cristãs para que não releguem «ao baú das memórias» a recomendação de João Paulo II para que «se for preciso ir às ruas em defesa do matrimônio e da família, teremos que ir» (ênfase da Agência Católica de Imprensa na América Latina) são um aviso para uma guerra aberta que não pode passar despercebido!

Assim como não são exactamente pacíficas as acusações do secretário da Conferência Episcopal Espanhola, Juan Antonio Martínez Camino, contra a disciplina de Educação para a Cidadania, que, contrariamente ao que se passa com a Educação e (I)moral Católicas, vai ser obrigatória para todos os níveis de educação. Ou as suas prelecções contra as iníquias leis espanholas que a ICAR considera «sectárias» e que «não favorecem a liberdade verdadeira nem o exercício da liberdade religiosa contemplada na Constituição» (aparentemente os dignitários espanhóis consideram que liberdade religiosa significa impôr a todos as barbaridades debitadas pelo Vaticano).

E as declarações do sucessor de Ratzinger à frente da ex-Inquisção, o cardeal Levada, são igualmente preocupantes. O prelado apela à desobediência civil, uma prática recorrente da ICAR, contra as leis humanas e as decisões judiciais que são contrárias «à lei de Deus». Este responsável lembrou que os cidadãos têm a obrigação de «não seguir as prescrições das autoridades civis» quando tal for contra os ditames do Vaticano.

As conclusões provisórias do Congresso -que entre outras pérolas perora contra as campanhas em favor da contracepção (!) – indicam que a guerra aberta do Vaticano contra a laicidade e modernidade não se vai circunscrever a Espanha, já que ululando contra «um laicismo de raiz niilista e relativista», o documento critica a «falsa (?) concepção da sexualidade humana e da laicidade do Estado» subjacente à resolução do Parlamento Europeu que pretende acabar no espaço europeu com a discriminação com base na opção sexual.

Os direitos humano, a tolerância, a pluralidade, a liberdade de expressão, opinião e religião, em suma os valores em que assentam a cultura democrática europeia, cultura, execrada por Bento XVI, que de facto «exalta a liberdade do indivíduo», estão sob ataque cerrado dos fundamentalistas católicos!