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Categoria: Superstição

23 de Novembro, 2025 Eva Monteiro

Terceira Carta a Um Crente

A primeira carta está aqui, e a segunda carta está aqui. Sem esse contexto será complicado entender o texto que se segue.

Este crente é resiliente e tem genuíno interesse no debate. São qualidades que respeito mais do que ele próprio talvez reconheça. Confesso que debater com ateus tem pouco apelo. Naquilo que me interessa debater, concordamos. Naquilo em que discordamos raramente me interessa debater. É uma espécie de desabafo, mais do que debate. Nesse sentido, a troca de ideias com um crente tem para mim mais valor intelectual do que qualquer sessão de concordância com amigos que partilham a minha visão do mundo. Tanto quanto possível, procuro estes debates e sinto que encontrei neste crente alguém que, partilhando do interesse no tema, se coloca do outro lado da mesa com profunda mas respeitosa discordância. Há quem me pergunte como tenho paciência – ao que respondo que, se pudesse, era o que fazia da vida. Não há esforço em manter esta conversa, apenas satisfação em poder fazê-lo com alguém que ainda não desistiu, quanto tantos outros nem sabem por onde começar.

Assim sendo, é com prazer que vos disponibilizo a resposta deste crente anónimo, no seguimento das anteriores já publicadas e respondidas.

Agradeço sinceramente a tua mensagem — não apenas pela forma como estruturaste os teus argumentos, mas pela honestidade intelectual que demonstras ao expor aquilo em que acreditas e aquilo que rejeitas.
Acredito que o diálogo só é verdadeiramente frutífero quando existe abertura de parte a parte. E é nesse espírito — sem pretensão de evangelizar ou converter — que te respondo, ponto a ponto.

“Tu não sabes, acreditas. É matéria de fé e não de facto.”

Começo por concordar contigo num ponto essencial: o verbo saber tem, no campo do conhecimento empírico, um significado que exige demonstração e verificabilidade. Quando alguém diz “sei” sem apresentar provas, é natural que surja ceticismo.

Mas há diferentes camadas de saber.
Há o saber científico (observável e replicável), o lógico (demonstrável pela razão) e o experiencial — aquele que nasce da vivência, da repetição de fenómenos, da coerência entre aquilo que se experiencia e aquilo que se compreende.
Quando um espírita diz “sei que o espírito sobrevive à morte”, não o diz no sentido de uma prova laboratorial, mas no de um conhecimento íntimo e acumulado pela observação reiterada de manifestações semelhantes, por mediunidades diferentes, e pelo impacto moral e intelectual que tais comunicações produzem.

Portanto, sim: é um tipo de saber vivencial e reflexivo, não empírico-laboratorial.
E é importante ser honesto sobre isso — não é ciência no sentido estrito, mas também não é crença cega. É um saber construído a partir da experiência e da razão aplicada a ela.

“Muitos dizem ‘sei’ — o muçulmano, o hindu, o cristão — e não podem ter todos razão.”

Tens razão: a multiplicidade de certezas religiosas é uma das maiores evidências de que o “saber” teológico raramente é factual.
Mas o Espiritismo não se apresenta como revelação exclusiva nem como religião que pretende ter o monopólio da verdade. Kardec partiu precisamente do princípio de convergência — ao comparar mensagens mediúnicas de diferentes locais, culturas e médiuns, procurou extrair princípios universais: a imortalidade da alma, a reencarnação, a lei de causa e efeito, o progresso moral do espírito.

Esses princípios não exigem adesão a um dogma particular ou a uma figura divina específica. São hipóteses filosóficas sobre a natureza da consciência e da moral, e são apresentadas como tal — suscetíveis de reflexão e revisão, nunca como verdades absolutas.

“As experiências subjetivas são universais e explicáveis pela neurociência.”

Também aqui o teu ponto é forte.
A ciência já demonstrou que o cérebro é capaz de produzir estados alterados de consciência, alucinações e sensações de presença. Isso é inegável.
Mas reconhecer que o cérebro pode gerar tais experiências não significa automaticamente que todas elas o sejam.
Do ponto de vista espírita, a mente usa o cérebro como instrumento — o que significa que há interações entre ambos. O que a neurociência observa é a correlação, não necessariamente a causa única.

Por isso, em vez de negar a explicação neurológica, o Espiritismo propõe ampliá-la: o fenómeno mediúnico seria uma coabitação entre planos de consciência, onde o cérebro é o tradutor físico da experiência espiritual. É uma hipótese que a ciência ainda não pode confirmar — mas também não consegue, até hoje, eliminar completamente.

“Kardec não aplicou o método científico.”

Tens toda a razão.
Kardec não realizou experiências controladas no sentido moderno — não havia grupo de controlo, protocolo replicável nem revisão por pares.
O seu método foi comparativo, baseado em observação e coerência das comunicações. Foi uma tentativa de aplicar rigor onde antes só havia superstição. Para o século XIX, foi ousado. Para os padrões científicos atuais, é insuficiente.

Reconhecer isso não é desmerecer Kardec, mas situá-lo historicamente. Ele fez o que pôde com as ferramentas intelectuais e sociais do seu tempo.
A tarefa das gerações seguintes é continuar — aproximando cada vez mais o estudo espiritual das exigências metodológicas modernas.

“O Espiritismo procura confirmar, não refutar.”

Aceito a crítica — e, em muitos casos, é justa.
Muitos grupos espíritas caíram na armadilha do verificacionismo, isto é, aceitar apenas aquilo que confirma a crença prévia e descartar o que a contradiz.
Mas o verdadeiro espírito da obra de Kardec não é esse. Ele próprio dizia: “A fé inabalável é apenas a que pode encarar a razão, face a face, em todas as épocas da humanidade.”
Portanto, a busca por refutação deveria ser parte do movimento espírita — e, quando não é, estamos a falhar com Kardec.

“É o argumento do Deus das lacunas — usar o sobrenatural onde não há explicação.”

Concordo contigo no essencial: ausência de explicação não é prova de explicação sobrenatural.
O Espiritismo, quando é fiel ao seu princípio filosófico, não usa o sobrenatural para tapar buracos, mas como hipótese para explicar certos fenómenos observáveis, como as comunicações mediúnicas e as lembranças espontâneas de vidas passadas.
Não digo que sejam provas definitivas — mas são dados interessantes que desafiam o modelo materialista estrito.

Além disso, o Espiritismo não nega a ciência. Ele apenas propõe que há dimensões da existência que o método científico ainda não consegue medir.
Não porque sejam mágicas, mas porque estão fora do alcance instrumental atual — como tantas coisas estiveram antes da física quântica ou da biologia molecular.

“Darwin usou método; Kardec não.”

Certo.
Darwin partiu da observação empírica e construiu hipóteses testáveis. Kardec partiu da observação subjetiva e construiu um sistema moral e filosófico.
São naturezas de trabalho diferentes. Darwin criou uma teoria científica. Kardec, uma filosofia espiritualista.
Seria intelectualmente desonesto colocar ambos no mesmo patamar. Mas também seria injusto desconsiderar que ambos procuraram sentido num mundo que se abria à razão.
Kardec quis tirar o espiritualismo da superstição; não o conseguiu transformar em ciência, mas deu-lhe uma lógica e uma ética.

“Não há provas de consciência fora do cérebro.”

Concordo — não há provas aceites pela comunidade científica.
Mas há casos documentados de experiências de quase morte (EQMs), percepções verídicas durante estados de inconsciência cerebral, e mediunidades estudadas sob condições controladas (como as de Leonora Piper ou Chico Xavier).
Nenhum desses casos é prova absoluta — mas são indícios que pedem estudo, não ridicularização.

Aceito, portanto, o princípio científico: afirmações extraordinárias exigem provas extraordinárias.
Até lá, mantenho a hipótese aberta e o espírito de investigação — porque negar o inexplorado com a mesma certeza com que se afirma o conhecido também é, em si, um dogma.

“O Espiritismo usa apelos à ignorância e wishful thinking.”

Em muitos casos, sim — e é importante admiti-lo.
Mas há espíritas que, como eu, tentam viver a fé sem abdicar da lucidez.
O Espiritismo não deve servir como anestesia da razão. Deve servir como estímulo ao questionamento, à pesquisa e à melhoria moral.
Se a fé serve para fugir da dúvida, é frágil.
Mas se a fé te leva a estudar mais, a servir melhor e a compreender o outro, então cumpre a sua função espiritual.

“Ciência e fé não se complementam; misturá-las é erro.”

Depende do que chamamos “complementar”.
Não defendo que fé e ciência expliquem o mesmo — a ciência responde ao como, e a espiritualidade ao porquê.
Uma estuda os mecanismos; a outra, o sentido.
O erro está em confundir as fronteiras: quando a fé tenta substituir a investigação, erra. Quando a ciência tenta negar o valor da experiência espiritual, erra também.
Ambas são expressões da mesma busca humana por compreensão. Só diferem nas ferramentas.

“O Espiritismo é autoritário porque tem postulados inquestionáveis.”

Infelizmente, parte da prática espírita contemporânea confirma isso.
Há grupos que transformaram princípios em dogmas e médiuns em oráculos. Mas isso não é o Espiritismo de Kardec — é o seu desvio humano.
O verdadeiro Espiritismo é livre-pensador, experimental, questionador.
O seu lema é “fora da caridade não há salvação” — não “fora do Espiritismo não há verdade”.
Se há autoritarismo, é sinal de que nos afastámos da essência.

“A fé é conforto; a verdade é desconfortável — devemos escolher a verdade.”

Concordo plenamente.
O conforto é uma consequência possível da fé, mas não deve ser o seu propósito.
Prefiro uma fé inquieta, que questiona, que aceita a dúvida como parte do caminho, do que uma fé adormecida que teme pensar.
A verdade é o objetivo — e, se um dia a ciência provar que o espírito não sobrevive, aceitarei com serenidade.
Mas até lá, as minhas experiências, os testemunhos que observei, as transformações morais que vi em pessoas através da prática espírita — tudo isso me indica que há mais para descobrir.
E enquanto essa hipótese resistir à razão e à ética, continuarei a estudá-la.

✦ Conclusão ✦

Eva, agradeço sinceramente a tua mensagem.
Sei que a tua intenção não foi ofender, mas propor um debate com rigor — e é exatamente isso que o Espiritismo genuíno deve acolher.
Não te escrevo para te convencer; escrevo para partilhar a minha forma de compreender a realidade, consciente das suas limitações e aberta à crítica.

Creio que a busca pela verdade não pertence a nenhum campo em exclusivo.
A ciência investiga o universo externo; a espiritualidade investiga o universo interno.
Quando ambas caminham com honestidade, complementam-se — não em autoridade, mas em propósito.

No fim, o que realmente importa é evoluir moralmente — aprender a amar, compreender e servir melhor.
E nisso, quer se seja ateu, espírita, cristão ou nada disso, todos estamos na mesma estrada.

Segue-se a minha resposta:

Agradecimentos à parte, porque já ambos expressamos gratidão pela disponibilidade um do outro, acho que te devo apenas dizer que as tuas respostas me dão sempre prazer em ler e igual prazer em contra-argumentar. Não nego que continuo a discordar das tuas posições e que dificilmente isso mudará (apesar de reconhecer que a possibilidade existe), como não tenho qualquer pretensão de mudar a tua. Contudo, explicar as nossas ideias a outros expõe-nos à crítica. De que outra forma posso encontrar falhas no meu pensamento? Por isso, enquanto tiveres paciência e o tema não se esgotar, eu mantenho a minha disponibilidade para continuar este debate.

Confesso que a expressão “tentar dar a volta ao texto” surge-me com alguma facilidade à medida que leio os teu comentários. Em relação ao verbo saber, usas o termo “conhecimento empírico”. Espero que não te importes que eu prefira “epistemologia”. Acho sinceramente que a distinção importa. É que a epistemologia investiga os critérios, fundamentos e limites do “saber”: o que justifica uma crença, como distinguimos verdade de erro, que métodos são fiáveis e porquê. O conhecimento empírico, por sua vez, nasce da fricção direta com a realidade, daquilo que podemos ver, medir e testar. A diferença entre ambos é simples: a epistemologia é a reflexão sobre o conhecimento; o conhecimento empírico é o próprio conteúdo observado no mundo.

É importante fazer esta distinção porque primeiro há que estabelecer o que significa “saber”, e depois então partimos para a descoberta da realidade, para os dados concretos. Partindo da epistemologia, saber é aquilo que resta depois de termos removido a fé, a superstição, o autoengano e o sentimentalismo. Ou seja, aquilo que se aguenta em pé mesmo quando alguém está ativamente a tentar derrubá-lo. Saber é o que resta do empirismo quando lhe apontas uma bazuca e tentas dar cabo de tudo o que achas que aprendeste com os dados que obtiveste. O saber é para abalar, porque só a fé pode ser inabalável.

Percebes certamente porque é que não posso aceitar a tua posição à luz da epistemologia. Não há camadas de saber, há factos e há hipóteses. Há diferentes tipos de hipóteses, no sentido em que umas são mais plausíveis e bem sustentadas que outras. Contudo, a factualidade não se presta a graus. O meu maior problema, se calhar onde vamos sempre encalhar a conversa, está aqui: “experiencial — aquele que nasce da vivência, da repetição de fenómenos, da coerência entre aquilo que se experiencia e aquilo que se compreende”. Ora, a vivência pessoal, por mais intensa, repetida ou emocionalmente marcante que seja, não é, em si, critério de verdade. A epistemologia moderna é clara neste ponto: uma crença verdadeira por acidente ou por impressão não constitui conhecimento. Centenas de pessoas podem ter visões religiosas, encontros com antepassados, presenças espirituais ou sensação de sair do próprio corpo. A repetição dessas vivências não as torna mais verdadeiras; torna-as apenas mais humanas. A subjetividade não se valida a si mesma.

A repetição de fenómenos subjetivos não tem o mesmo estatuto que a replicação experimental, pelo que não concordo que os coloques no mesmo patamar. Repetir a experiência de alguém não é repetir um fenómeno observável e controlável. Uma alucinação recorrente continua a ser uma alucinação. Uma interpretação errada que se torna rotina não deixa de ser errada. Nos vários campos da ciência, repetir significa recriar condições, controlar variáveis, medir resultados, comparar com hipóteses formuladas anteriormente e permitir que outros obtenham os mesmos resultados. Não só permitir como garantir, no sentido em que, se for avançada uma hipótese que só pode ser repetida pelo próprio, simplesmente não passa no escrutínio de pares e cai por terra com um estrondo vergonhoso. Nada disto se aplica à experiência íntima, que é, por definição, privada, não controlável e não partilhável enquanto dado bruto.

A “coerência entre o que se experiencia e o que se compreende” é um critério circular, sem valor epistemológico. Uma crença aparenta ser coerente quando encaixa nas expectativas e no sistema previamente aceite pelo próprio. Mas coerência interna não é prova de verdade. Um astrólogo encontra coerência entre os mapas astrais e as personalidades que interpreta. O conspiracionista encontra coerência entre os seus medos e os sinais que recolhe, em padrões que lhe parecem inegavelmente relacionados. O místico encontra coerência entre estados mentais e explicações espirituais. Em todos estes casos, a coerência é produto do sistema de crenças, não prova da realidade. Alguém encomenda um bruxedo para fazer mal ao Trump. Por sua vez, o presidente dos EUA, de 79 anos vividos à base de excessos e big macs parece ter a sua saúde afetada repentinamente. A bruxa convence-se que o seu feitiço resultou e nós todos aplaudimos?

Portanto, quando afirmas que o conhecimento experiencial “nasce da vivência, da repetição de fenómenos e da coerência entre experiência e compreensão”, estás, sem te aperceberes, a oferecer uma definição de crença subjetiva, não de conhecimento. O que se quer é a coerência entre conclusões e a realidade, os malditos dados que o espiritismo teima em não avançar ou deixar recolher. A tua definição ignora os pilares básicos do conhecimento: justificação adequada, possibilidade de erro identificável, correspondência com a realidade e métodos que eliminem vieses cognitivos, ilusões internas, distorções emocionais e interpretações à base do desejo, o tal do wishful thinking.

A ciência não rejeita a experiência; rejeita apenas a elevação da experiência a critério de verdade. A experiência é o ponto de partida, nunca pode ser o ponto de chegada. O rigor epistemológico exige que se pergunte: “o que é que, na minha vivência, pode ser explicado por mecanismos naturais, psicológicos, neurológicos ou culturais antes de recorrer a hipóteses sobrenaturais?” Se esta pergunta for evitada (e é apenas isso que o espiritismo faz), o resultado deixa automaticamente de ser conhecimento e passa a ser convicção sentimental(ista). O critério do espiritismo, levado a sério, destrói-se a si mesmo: se tudo pode ser “sabido” pela experiência íntima, nada pode ser verdadeiramente sabido. O verbo saber é de uma austeridade que nega qualquer subjetividade. É um binário: ou sabes ou não sabes. Se sabes, consegues demonstrar, se não sabes, bom… não sabes.

Não querendo ser aborrecida, eu tenho mesmo de fincar o pé. Tanto quanto consigo entender os teus comentários, parece-me que apresentas como método aquilo que, analisado friamente, não passa de filtragem seletiva de dados. Dizes que se recolhem (suponho) largos números de comunicações e que se encontram as convergentes. Mas esse processo, se descrito com precisão epistemológica, é simplesmente isto: sistematização de testemunhos subjetivos mediante critérios arbitrários de coerência. É precisamente o oposto do método científico, cujo valor reside não na confirmação, mas no teste destrutivo, vulgo, na tentativa sistemática de refutar as próprias hipóteses.

Tenho que discordar quando dizes que não há dogmas envolvidos neste processo. Claro que há. Se questionares precisamente “a imortalidade da alma, a reencarnação, a lei de causa e efeito, o progresso moral do espírito” que resta do teu espiritismo? Não tens de acreditar em espíritos para seres espiritista? Então isso é um dogma. Parece-me, e corrige-me se estiver errada, que poderás estar a confundir dogma com pecado ou proibição. Essas crenças que partilhas com os outros espíritas e das quais depende a vossa adesão a essa doutrina (ou a uma das muitas doutrinas espíritas) não têm que informar as vossas decisões no dia a dia. Uma coisa é aquilo em que se acredita outra é aquilo que se faz com o que se acredita. Tem de ser dogmática a crença, no mínimo, em espíritos, senão até eu posso dizer que sou espírita:

– Mas Eva, acreditas na imortalidade da alma?

– Não, eu nem na alma acredito quanto mais.

– Mas então és espírita?

– Pois claro que sou, acreditar em espíritos não é um dogma do espiritismo, eu sou o que me apetecer ser, deixa-me estar cá com as minhas “verdades pessoais”.

Acho que não preciso de te dar mais exemplos do quão incoerente é dizer que não há dogma no espiritismo. Se há uma crença que é condição sine qua non para a tua identificação com o espiritismo, isso é precisamente o dogma do qual dependes para o seres.

Impõe-se-me aqui uma pergunta: em que te baseias para dizeres que “O que a neurociência observa é a correlação, não necessariamente a causa única”? A tua frase distorce o que a investigação científica realmente demonstra. A neurociência não se limita a observar paralelismos entre atividade cerebral e experiência mental. Pelo contrário, observa relações causais diretas, repetidamente testadas e manipuláveis. Qual correlação? Causalidade, se faz favor. Repara: estimular certas áreas do cérebro produz pensamentos e emoções específicos, lesões em regiões definidas eliminam funções cognitivas particulares, há fármacos que alteram neurotransmissores e que por isso modificam o humor, a personalidade e até, imagina, convicções religiosas. A anestesia geral suspende a consciência ao desligar circuitos neurais específicos. Estes factos não são apenas correlações: são provas de dependência causal. Parece-me que estás a tentar insinuar a possibilidade de uma “causa oculta” como um espírito a operar por trás do cérebro. Só que essa hipótese não produz previsões, não é necessária para explicar os dados existentes, não melhora o modelo neurobiológico e não é testável. É, portanto, uma adição metafísica ad hoc, introduzida apenas para preservar uma crença prévia, e não uma inferência razoável baseada em evidência. Lá vamos nós ao dogma.

Ao insinuares que a explicação neurobiológica pode não ser suficiente por não ser “a causa única”, confundes complexidade causal normal (genética, ambiente e história pessoal, entre outros) com a necessidade de introduzir entidades sobrenaturais não demonstradas. A alegação de que “correlação não implica causalidade” torna-se, assim, um pretexto para proteger uma hipótese espiritual, ao ignorares que a ciência, neste caso, já demonstra causalidade. Invocar causas invisíveis que não acrescentam poder explicativo e que não podem ser refutadas é um exemplo clássico do argumento da ignorância, do “espírito das lacunas” e da inversão do ónus da prova. A neurociência não pode provar o que não está lá. A hipótese neurobiológica é simples, preditiva, testável e suficiente; a hipótese espiritual não explica nada que o modelo científico não explique e só subsiste quando se abdica do rigor científico. Incomoda-me esta frase porque me parece apenas um mecanismo retórico para manter intacta uma crença metafísica.

Na ciência, a posição padrão é metodologicamente naturalista: postulam-se explicações que fazem uso de causas dentro do reino observável e testável até que surjam razões muito fortes que justifiquem o recurso a entidades não-falíveis e não-observáveis. Isso nunca aconteceu. E isto não é dogma, é a regra prática que torna possível o progresso científico.

A apreciação histórica de Kardec, que fazes é sensata num plano historiográfico: para o seu tempo, comparativo e sistemático, o método de Kardec revelou um esforço por organização intelectual de fenómenos que muitos consideravam superstição. Cabe aos historiadores das ideias reconhecer isso. No entanto, o facto de um método ter sido útil ou inovador para um contexto social passado não converte automaticamente o seu resultado em ciência moderna. Os critérios de cientificidade evoluíram: controlo experimental, cegamento quando possível, grupos de controlo, documentação replicável, análise estatística e revisão por pares são exigiências que surgiram precisamente porque reduzem o erro humano. A ausência desses elementos em investigações do século XIX não é um erro moral de Kardec, é uma limitação metodológica. Quanto a mim, isto significa que as conclusões por ele retiradas não gozam do estatuto de teorias científicas no sentido contemporâneo. Na verdade, mal se consequem qualificar para os mínimos olímpicos da hipótese.

Eis o que me incomoda: que os espiritistas ou kardecistas (qualquer que seja a nomemclatura com que te identifiques) tenham dado a mão a Kardec no século XIX e prefiram manter o braço esticado no tempo em vez de reverem a hipótese postulada à luz de uma metodologia científica atual. Porquê?

Que aconteceria se em vez de retirar só o que lhe interessa, Kardec tivesse analisado os dados todos? Esquece Kardec, porque é que os espíritas não o fazem agora? Que vos impede de utilizar o método científico agora? Se consegues demonstrar “a imortalidade da alma, a reencarnação, a lei de causa e efeito, o progresso moral do espírito”, eu ofereço-me como tributo. Em vez dos Jogos da Fome, fazemos os Jogos do Espiritismo. Deixa-me reunir uma equipa de céticos e vamos ter contigo (e com a equipa de espíritas que quiseres reunir), de mente aberta. Desde que nos deixes estabelecer os critérios de investigação (que serão inequivocamente científicos), nada nos deixaria mais felizes. Recolhemos todos os dados que nos forem possível recolher, apresentamos as descobertas que houver a apresentar e submetemo-las ao escrutínio de pares. A mim soa-me incrível. Perdoa-me o humor mas: Nobel Prizes galore.

Continua?

7 de Novembro, 2025 Eva Monteiro

Segunda Carta a Um Crente

A primeira Carta a Um Crente está aqui. Poderá dar maior contexto à troca que se segue.

E não é que obtive resposta? Contra todas as minhas expectativas, o kardecista que anteriormente me abordou e que após insistência minha disse que eventualmente responderia… respondeu mesmo. Não é costume, pelo que lhe reconheço muito valor pelo respeito e esforço. Decidi partilhar aqui porque poderá ter interesse para os que apreciaram a primeira troca.

Segue a resposta do crente:

Boa noite Eva. Por mais que queira, não está a ser fácil dar-te a devida atenção e por isso peço desculpa pela resposta tardia.

Agradeço-te o cuidado e a profundidade da tua mensagem. É raro encontrar um diálogo que não se limite a slogans e que procura ir à raiz das ideias. É nesse espírito de respeito e reflexão que te respondo.

Quando digo “eu sei que existe”, não me refiro a um saber de laboratório, mas a uma certeza construída pela experiência íntima, pelo raciocínio e pela observação dos efeitos espirituais ao longo do tempo. No Espiritismo, essa certeza não é cega nem dogmática, é resultado de estudo, comparação e repetição de fenómenos mediúnicos que, analisados em conjunto, apontam para a sobrevivência da consciência após a morte.

Kardec nunca afirmou possuir provas absolutas, mas propôs algo que considero de uma lucidez rara para o seu tempo:

“Fé inabalável é somente aquela que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da humanidade.”
(O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XIX)

Ou seja, no Espiritismo, crer não é o oposto de pensar. É crer porque se pensa.

É verdade que Kardec não aplicou o método científico no sentido estrito moderno, mas também é verdade que a ciência do século XIX ainda não tinha instrumentos para abordar a consciência como hoje começa a tentar fazê-lo. O que ele fez foi usar o método da observação comparada e recolher milhares de comunicações, eliminar as incoerentes, comparar mensagens de origens diferentes e sistematizar princípios. Não é ciência de laboratório, mas é um método de verificação empírica dentro dos limites possíveis quando o objeto de estudo é o espírito e não a matéria.

Quanto à ideia de que as experiências mediúnicas são meras ilusões neurológicas: o Espiritismo não as exclui. Kardec alertou inúmeras vezes para o autoengano, a influência do subconsciente e dos espíritos inferiores. A verdadeira investigação espírita começa justamente pela dúvida e pela necessidade de confirmação. A diferença é que, depois de filtradas e repetidas, muitas experiências deixam de poder ser explicadas apenas pela imaginação e é nesse ponto que nasce a convicção pessoal, fruto de observação e de coerência interior.

O teu apelo ao questionamento é algo que também defendo. A diferença é que, para mim, o verdadeiro questionamento inclui não excluir à partida a hipótese de que a consciência não se limite ao cérebro. A postura espírita não é de negação da ciência, mas de complementaridade, a ciência explica o mundo físico e o Espiritismo tenta compreender o mundo moral e espiritual que o completa.

Não vejo no Espiritismo uma instituição que pretenda impor autoridade sobre o pensamento humano, vejo, antes, uma doutrina que liberta da autoridade ao incentivar o estudo, o livre-arbítrio e a responsabilidade individual. O anticlericalismo, nesse sentido, não é uma ameaça ao Espiritismo, porque este não tem clero, dogma, nem intermediários entre o homem e Deus.

Por fim, não te escrevo por evangelização, nem para arrancar ninguém de lado algum. Escrevo porque acredito que o diálogo sereno entre a razão e a espiritualidade é a via mais digna de evolução que podemos trilhar.
Como bem disseste:

“Evoluímos melhor quando a verdade, e não o conforto, é o nosso objetivo.”
Nisso, estamos de pleno acordo. 🙏

Ora, como é evidente, eu respondi:

Boa noite,

Antes de mais, quero agradecer-te por teres dedicado o teu tempo a responderes-me.

Acho que quando falas em saber que algo existe por convicção pessoal, estás a cair na falácia da ambiguidade. Dizes que “sabes que Deus existe”, mas que não te referes a um saber de laboratório, e sim a uma certeza interior construída pela experiência. É nisto que precisamos de rigor: o verbo “saber” não muda de significado conforme a conveniência de quem o usa. O conhecimento, em qualquer domínio, requer justificação e correspondência com a realidade. Se falta a justificação verificável, não é saber, é crença. A sinceridade da crença não é um selo de verdade. Pelo contrário: faz-se hoje em dia uma apologia da crença como se fosse uma coisa boa e desejável, como se fosse um marco de integridade e bondade, quando no fundo, só significa ter grande convicção na ausência de provas. Um muçulmano, um hindu ou um cristão místico podem todos afirmar “eu sei que o meu deus existe”, e no entanto as certezas deles são mutuamente exclusivas. Para o teu deus existir, o deus dos outros tem de ser falso. Todas as crenças podem ser (e não duvido que sejam) sentidas como verdadeiras, mas não podem sê-lo simultaneamente. A emoção, por mais intensa que seja, não é critério de realidade. Só deste um palavreado mais intelectual à expressão “mas eu acredito”.

Referes que o Espiritismo chega a essa certeza pela repetição de fenómenos mediúnicos e pela observação comparada. Contudo, a repetição de experiências subjetivas, sem controlo e sem exclusão de hipóteses alternativas, não é ciência, é circularidade na melhor das hipóteses. A tua descrição do método kardecista não passa de um processo de confirmação seletiva. Ou seja, eliminam-se as comunicações incoerentes, sistematizam-se as que parecem convergir e conclui-se que há coerência. No entanto, isso só pode acontecer precisamente porque as incoerências foram descartadas. Não é o método científico a ser aplicado. Esse pode ser aplicado por qualquer pessoa, pelo que se o Espiritismo estivesse em posição de ser confirmado pela ciência, já não pertenceria ao campo da crença. É, aliás, um caso clássico de viés de confirmação. Se um cientista aplicasse este procedimento a um fenómeno físico, seria descredibilizado à primeira revisão por pares. Por falar nisso, onde está a revisão por pares do Kardecismo? Ou os pares têm de ser kardecistas? A grande diferença aqui é que a ciência não elimina as anomalias: investiga-as. No Espiritismo, pelo contrário, as anomalias são descartadas para que a hipótese original se mantenha intacta. Ou seja, o que o kardecista faz é o mesmo tipo de “cherry picking” de todas as outras religiões, tradições místicas, ocultismos e afins, mas com uma roupagem científica. Lembra-te que também os Cientologistas o fazem, e com o mesmo resultado: uma mão cheia de coisa alguma (e a outra cheia de dinheiro).

A frase “Fé inabalável é somente aquela que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da humanidade” não diz rigorosamente nada. É um chavão conceptualmente autofágico. Se a fé espírita tem de encarar a razão, então também tem de se submeter ao critério racional. Ora isto significa que deve poder ser provada, testada e, se falhar, abandonada. Mas o Espiritismo não permite esse exame. Nenhuma das suas afirmações centrais (existência de espíritos, reencarnação, mediunidade, ação dos “fluidos”) resiste ao método científico. Portanto, a própria citação, se levada a sério, aniquila a doutrina que pretende enobrecer. É o mesmo que um astrólogo dizer: “A astrologia é válida apenas se passar pelos testes da astronomia”. Pois claro, só que não passa. E o Espiritismo muito menos. Aceito a ideia de que o Espiritismo possa ser “crer porque se pensa”. Contudo, quando as pessoas pensam mal, acabam a acreditar em falsidades. Daí a necessidade do método científico que, não sendo infalível, é a melhor ferramenta de que dispomos para evitar pensar muito e chegar na mesma a conclusões falsas. A fé que encara a razão não é fé: é hipótese. Se resiste à razão, não precisa de se proteger com metáforas. Se depende da intuição interior, não é conhecimento, não é ciência, não é nada senão aquilo que acontece em todas as religiões do mundo: crença infundada e infundável.

O argumento de que “a ciência do século XIX não tinha instrumentos para estudar a consciência” é um equívoco histórico. O método científico não depende de tecnologia, depende da lógica e do controlo experimental. Em 1859, Darwin publicou “A Origem das Espécies” com base em observação e dedução. Não tinha, nessa altura, um único microscópio eletrónico ou um décimo da tecnologia de que hoje dispomos. O que faltou a Kardec não foram instrumentos, foi precisamente o método. E, mais grave que isso, o que ele propôs não se tornou mais plausível com os instrumentos que a ciência desenvolveu desde então. Se estivesse correto e apenas não tivesse na altura a tecnologia para o provar, o que está a impedir os kardecistas hoje? Não há confirmação da hipótese espírita da sobrevivência da consciência em nenhuma investigação em neurociência, psicologia ou física moderna. Nem sequer há indícios de que a mente exista fora do cérebro, de todo, em nenhum estudo que tenha sido levado ao escrutínio de pares.

Fonte: Britannica

Afirmas que, depois de filtradas e repetidas, certas experiências deixam de poder ser explicadas “apenas pela imaginação”. Essa frase é um exemplo típico da falácia do apelo à ignorância. O facto de não sabermos explicar algo não significa que a explicação espírita esteja correta. Só porque ainda não explicámos algo, não significa que seja inexplicável, é apenas para já inexplicado. E só porque a ciência ainda não explicou determinado fenómeno (sublinho que esse fenómeno deve pertencer ao campo da realidade e não da imaginação), não significa que possas apontar uma explicação sobrenatural só porque te apetece. Se fosse assim, cada lacuna da ciência seria prova do sobrenatural. Essa é precisamente a armadilha do “deus das falhas”, que podemos até apelidar, neste caso, de “espíritos das falhas”: sempre que a explicação natural ainda não está disponível, o sobrenatural preenche o vazio. O problema é que, à medida que o conhecimento avança, as lacunas encolhem e o espiritual recua. A história da ciência é, em grande parte, a história do recuo dos deuses, dos espíritos, das fadas, dos unicórnios, das sereias e restantes criaturas do plano da fantasia. O grande problema está onde dizes “A verdadeira investigação espírita começa justamente pela dúvida e pela necessidade de confirmação”. O método científico não procura confirmação, procura refutação. Quem procura confirmação é o crente, que precisa muito de acreditar e vai em busca de padrões que justifiquem a crença. Parte da resposta, não parte da pergunta. Não é racional, é emocional, é fé.

Dizes também que o verdadeiro questionamento não deve excluir à partida a hipótese de que a consciência não se limita ao cérebro. Concordo, não se deve excluir nenhuma hipótese a priori. Mas uma hipótese que não apresenta qualquer evidência positiva é, por definição, descartável a posteriori. Nas palavras de Christopher Hitchens: “O que pode ser afirmado sem evidências pode ser rejeitado sem evidências”. É esta a navalha que corta, a posteriori, as afirmações de Allan Kardec que, por melhores intenções que tivesse, falhou redondamente a missão. Não é uma questão de recusar à partida uma hipótese, é não me ser dado a encontrar nenhum mérito racional na hipótese colocada. O ceticismo não é o dogma da negação: é a recusa em aceitar como verdadeiro o que não foi demonstrado. A diferença pode ser subtil, mas é mesmo essencial. A dúvida é uma virtude precisamente porque nos protege da tentação de confundir desejo com realidade. O tal “wishful thinking” de que tanto falam os americanos.

Quanto à “complementaridade” entre ciência e espiritismo, o termo é sedutor mas intelectualmente falso e muito enganador. Ciência e fé não se complementam, porque operam em planos distintos e com métodos incompatíveis. Aliás, sempre que se tentam misturar, acaba a fé a querer encurtar a ciência. A ciência, por sua vez, não se preocupa com a fé, deixa-a à porta do laboratório porque não cabe lá dentro. A ciência exige prova e refutabilidade. Já o Espiritismo aceita convicção e intuição, como se o valor fosse o mesmo quando definitivamente não é. A complementaridade só é possível se uma abdicar da sua natureza. Historicamente, é sempre a fé que acaba por abdicar (entre birras e pontapés), ajustando-se a contragosto à medida que a ciência avança. Quando o Espiritismo se afirma “em harmonia com a ciência”, é porque se adapta retroativamente aos seus resultados, nunca porque os antecipa ou os demonstra. Caso contrário não se chamava Espiritismo, chamava-se Neurofísica Post-Mortem ou coisa que o valha.

Dizes ainda que o Espiritismo liberta da autoridade. Mas toda a doutrina que parte de postulados inquestionáveis, como a existência de espíritos, a reencarnação, a evolução moral das almas, entre outros, é uma estrutura de autoridade dogmática, ainda que possa não depender de um clero. A ausência de sotainas e chapéus esquisitos não é sinónimo de liberdade intelectual. Um sistema de crenças que não admite a possibilidade de estar errado é, por definição, autoritário. Mesmo que o autoritarismo se disfarce de serenidade. Ora, se o Espiritismo estivesse disposto a reconhecer efetivamente as suas falhas, já não teria adeptos, já teria concluído que não há razão para manter estas crenças, porque não passam no escrutínio do método científico. Eu sou de facto anticlerical. No entanto, só porque um determinado corpo de crenças não é clerical não me faz ter por ele mais consideração intelectual. O que ganha a minha aceitação são os factos, não o que alguém escreveu num livro, ou em muitos, com roupagens pseudocientificas.

Por fim, afirmas que o diálogo entre razão e espiritualidade é a via mais digna de evolução. Eu diria antes que o diálogo entre razão e espiritualidade só é fértil quando a espiritualidade aceita o crivo da razão e se deixa expirar como o iogurte estragado que é. A espiritualidade que resiste à verificação é apenas uma forma de poesia existencial. Pode ser muito bonita, muito afável ao ego, mas revela-se impotente perante a realidade. A verdade não se mede pela paz interior que nos oferece, mas pela correspondência com os factos. Daí que a utilidade da fé para efeitos de conforto emocional não justifique nada.

Fico contente por concordares que evoluímos melhor quando a verdade, e não o conforto, é o nosso objetivo. Mas a verdade exige disciplina intelectual: a disposição constante de dizer “posso estar enganado”. Essa é precisamente a diferença entre o método científico e qualquer doutrina espiritual: uma pode falhar e corrigir-se, a outra precisa de permanecer certa para continuar a consolar. E entre a necessidade de consolo e o dever de lucidez, hei-de escolher sempre a lucidez.

5 de Outubro, 2025 Eva Monteiro

Carta a um Crente

(Quase) todas as quartas-feiras sou anfitriã de um debate online em que convido crentes a discutirem temas que me parecem relevantes à luz das suas crenças. Faço-o através da plataforma TikTok e vou lá deixando também, em formato de vídeo, algum conteúdo. Foi com alguma surpresa que encontrei na minha caixa de entrada desta plataforma uma mensagem mais educada e razoável que as do costume (normalmente são insultos). Sou detalhada nas minhas respostas, pelo que no fim, achei que o texto poderia ser útil e decidi publicá-lo aqui. O que se segue é a mensagem inicial desta pessoa:

Ponderei bastante antes de enviar mensagem. Era bem mais fácil não dizer nada e pronto, vida que segue. Mas não consigo concordar contigo em relação às religiões. As religiões têm um papel fundamental na sociedade e esta é somente a minha opinião. E esta é a minha verdade. Tu tens a tua e outra pessoa qualquer poderá ter a dela e está tudo certo. Sem julgamentos, até porque a meu ver cada um tem o seu caminho e trajeto a seguir. Que me digas que houve e há uma instrumentalização por parte dos homens em relação a essas mesmas religiões, sem dúvida alguma, 100% de acordo. No entanto, as religiões na sua essência são apenas e só uma maneira de mostrar valores e distinguir o certo do errado. Percebo que me digas que isso faz parte da educação de cada ser, mas na minha opinião não é a mesma coisa. Pois uma coisa é o pai, ou a mãe, ou mesmo a professora, outra é supostamente uma entidade superior a demonstrar o bem ou o mal.

Atenção que à medida que crescemos todos nós optamos por diversos caminhos e começamos a questionar esses mesmos ensinamentos. O que é normal pois são apenas histórias que passaram de pessoas para pessoas e que quem as passa age como se fossem verdades absolutas.

Como é lógico, devemos questionar sempre e não acreditarmos em algo só porque sim. Devemos tirar as nossas próprias conclusões, pelas nossas próprias experiências e também pelas nossas pesquisas se assim o desejarmos e quisermos saber mais. Por exemplo, se me perguntares se eu acredito em Deus, eu vou responder o que respondo sempre. Eu não acredito, eu sei que Existe.

Não me identifico com nenhuma religião. Fui educado sim na igreja católica cristã (é cultural) e tive passagens pelo budismo. No entanto, desde os meus 5 anos de idade que tenho contato com outros planos, que não aquele que estamos no momento presente. Estudo o espiritismo segundo Allan Kardec, sempre baseado no método científico.

Como eu costumo dizer, o espiritismo não é uma religião, é um modo de vida. É apenas a maneira como vemos o mundo e que não há certos nem errados, há apenas experiências e modos de fazer e ver as coisas de maneira diferente. Lá porque dizes que algo é assim e eu digo que é assado é tudo uma questão de perspectivas. Estamos sempre a aprender e a evoluir.

Peço desculpa pela intromissão e pelo testamento. Bom fim de semana.

A minha resposta:

É a tua vez de me perdoares a extensão da resposta. Quando acabei de a escrever dei conta que talvez tenha sido detalhada demais. Ainda assim, acho que devo escrever o que tenho a dizer e tu decidirás se tens o tempo e a paciência de fazeres a leitura e até, se eu tiver alguma sorte, responderes aos pontos em que discordo contigo.

Prometi que te respondia mal pudesse dar atenção completa à tua mensagem e tive algum tempo para ponderar. É sempre um sinal de integridade intelectual quando alguém que me manda mensagem privada numa rede social se dispõe a refletir, questionar e dialogar, mesmo quando o tema é sensível; e poucas coisas o são mais do que as crenças religiosas. Por isso, antes de mais, quero agradecer-te novamente pela mensagem.

O facto de não concordares comigo quanto às religiões é válido, temos direito a portar diferentes opiniões e a defendermos diferentes posições. Contudo, eu acredito em fundamentar as minhas posições e a questionar o fundamento das posições contrárias à minha. Desta forma, posso entender se a minha posição está afinal, errada. Hoje não foi o dia. Parece-me que confundes, antes de mais, opinião com verdade. Esta ideia de que dada coisa é “a minha verdade” é completamente descabida. É a tua opinião, faz parte da tua mundividência, é o que tu achas. A verdade é outra coisa. Não depende da opinião nem da perspectiva de quem afirma que algo é verdadeiro, mas da coerência entre a afirmação e a realidade. Isto é, uma afirmação é verdadeira se corresponder aos factos ou ao estado de coisas que a pessoa afirma.

Quanto a opiniões, cada um tem a sua, é verdade. Por outro lado, não devo aceitar tudo o que me dizem só porque as pessoas têm direito a terem opiniões. Podemos certamente concordar que nem todas as opiniões fazem sentido. Há quem acredite que a terra é plana. Têm direito a acreditar numa coisa falsa, mas eu não tenho que aceitar que a terra é plana só porque essa é a opinião de uma pessoa que está muito claramente errada mas que decidiu ser essa “a sua verdade”. Há opiniões sobre tudo e para todos os gostos. Algumas opiniões são inócuas, outras têm consequências. Quando a consequência só atinge o próprio, está tudo bem. Quanto a consequência atinge outros ou a sociedade em geral, creio que opor-me é imperativo.

Do ponto de vista histórico, é verdade que as religiões moldaram civilizações, inspiraram arte, música e literatura, e serviram de estrutura moral e social durante séculos. Mas a questão crucial é: a que custo e com que fundamentos. A religião, de uma forma geral, foi a primeira explicação que a humanidade conseguiu dar a grandes questões, mas não foi a última nem foi a melhor. Pelo contrário, é a mais imperfeita das explicações do mundo e a que provocou piores danos. Contudo, ainda que não tivesse provocado danos e não fosse hoje uma visão obsoleta, o facto de em tempos ter tido utilidade não significa que seja verdade. São dois conceitos diferentes. Um vidente pode ser útil a um cliente que lá vai desabafar, mas não deixa de ser charlatanice. Naturalmente, não concordo contigo que as religiões ainda têm esse papel social, pelo menos no ocidente secularizado em que as leis, feitas por pessoas para pessoas, moldam a nossa vida diária. Por outro lado, a religião mantém esse poder em países onde a teocracia é a regra. Acho que basta olhar para os países que não fazem a separação entre o estado e as organizações religiosas para vermos o quanto a religião corrompe e destrói sociedades inteiras.

Quando alguém me diz que as pessoas é que instrumentalizam a religião, sinto que estamos a cair numa tautologia. A religião não é petróleo. Não é uma coisa que a humanidade descobriu e que não soube usar corretamente. A religião é uma construção humana cujo objetivo é o controlo. Parece-me por isso evidente que um instrumento seja… instrumentalizado. Basta olharmos para as sociedades para entendermos que tipo de deuses é que as pessoas criam. Uma sociedade de pequenas tribos, onde toda a gente se conhece e em que a violência e o crime são situações pontuais e aberrantes tende a ser animista. Já uma sociedade que desenvolve grandes cidades tende a criar deuses que vigiam, que estão em todo o lado, que castigam pecados. A religião é o que as pessoas criam antes de desenvolverem sistemas legais e modos mais seculares de regulação social.

Na sua essência, as religiões não te dão um sistema de valores. Pelo contrário, és tu que imprimes moralidade à religião que professas. Por isso é que tantos cristãos não são racistas, misóginos e violentos, apesar de o seu livro sagrado estabelecer um sistema de “valores” absurdo e impensável. Se decidisses agora seguir à letra o sistema de valores que o cristianismo, o judaísmo ou o islamismo oferecem nos seus escritos sagrados, só não ias parar à cadeia se te rebentasses juntamente com uma bomba, ou te suicidasses após desatares a matar infiéis, pecadores, bruxas, ateus e outros. Se seguisses à letra esse sistema de “valores”, não distinguirias o certo do errado. É porque consegues distinguir o certo do errado que tens a capacidade de ignorar as partes imorais de uma religião e selecionar ou reinterpretar as partes que se coadunam com o teu sistema moral.

Para mim, distinguir o que é bom e o que é mau também não faz inteiramente parte da educação de cada pessoa. Faz também parte do processo de seleção e da sobrevivência da espécie. Somos uma espécie cooperativa e se não tivéssemos a capacidade de coexistir, de saber que não se faz mal aos outros, que devemos ser bons uns para os outros, não sobreviveríamos enquanto espécie. Com todos os defeitos que temos, temos tendência a não sermos violentos, a não sermos destruidores da nossa própria espécie. É coisa comum a muitas espécies, especialmente entre os mamíferos e especificamente entre os primatas que nos são, do ponto de vista da evolução, mais próximos. A mãe e o pai, ou a mãe e a mãe, ou o pai e o pai, ou a avó, o avô, o tio, a tia, ou seja quem for que educa uma criança tem um papel essencial na sua vida através da educação e isso eu não nego. Uma criança bem educada terá um futuro mais feliz e útil, para si e para os outros. Contudo, falas de uma entidade superior que demonstra o bem e o mal. Suponho no entanto que o teu deus, seja ele qual for, nunca te respondeu às preces de forma audível e verificável. Não temos quaisquer provas de que uma entidade sobrenatural alguma vez tenha falado ou aparecido a alguém. Temos é padres, pastores, bispos, apóstolos, profetas, gurus e restantes líderes espirituais que dizem saber o que está certo e o que está errado, e que afirmam o que é ou deixa de ser a vontade do respetivo deus. Ora, cada líder religioso tem a sua opinião sobre o que está certo ou errado, pelo que não existe nessa suposta comunicação divina objetividade suficiente, nem nos dias de hoje nem ao longo da História, para suportar a tua afirmação. Eu creio que entendes isto, pela forma como escreves, mas não me parece que entendas que o que dizes num parágrafo contradiz o que dizes no parágrafo anterior.

Concordo que devemos questionar, tirar as nossas próprias conclusões, como dizes. Mas então em que momento desse processo é que entra deus?

Dizes uma frase que já ouvi centenas se não milhares de vezes em debates, especialmente com cristãos e muçulmanos: “Eu não acredito, eu sei que Existe.” Na verdade é o oposto, tu não sabes, tu acreditas. É matéria de fé e não de facto. Se soubesses efetivamente que o teu deus existe, terias como prová-lo. Se fosse esse o caso, não estaríamos a debater via mensagem no TikTok, terias mostrado esse facto à humanidade, não existiriam ateus e terias ganho meia dúzia de prémios Nobel e pelo menos uma beatificação. É apenas, e lamento ter que to dizer de forma tão direta, uma frase feita daquelas que os padres e os pastores gostam de atirar ao ar mas que carecem de qualquer tipo de sentido. É aquela jogada de dizer “eu sei no meu coração que deus existe” – se sabes no teu coração, não sabes na tua cabeça. Estou interessada naquilo que é verificável, não em “verdades pessoais” que é uma forma de dizer crenças infundadas.

Quando alguém me diz que não se identifica com nenhuma religião chego sempre à conclusão que é porque não se querem comprometer à partida com determinados dogmas, com os quais podem não concordar ou não saber como sustentar. No entanto, quando faço perguntas a quem diz que não se identifica com nenhuma religião, chego sempre à conclusão que o deus em que acreditam é aquele que lhes foi imposto na infância e que as suas crenças religiosas vão de encontro às crenças da instituição religiosa correspondente, ainda que não na sua totalidade. Resumindo, posso dizer que apesar de tu não te identificares com nenhuma religião, bastariam 10 minutos de conversa honesta para eu fazer essa identificação por ti. Aliás, esse diálogo, a ser feito internamente e de forma honesta, provavelmente também faria com que te identificasses com alguma religião. Vou apostar, sem muita base, porque essa conversa não aconteceu, que acreditas no deus da Igreja Católica (omnisciente, omnipotente, omnipresente e bom), mas que gostas de práticas mais místicas pelo que em vez de ires à missa preferes meditar e que não te identificas com a Igreja Católica porque o Kardecismo te conferiu a crença de que o mundo dos espíritos está ao teu alcance, quando a Igreja o nega. Isto é, descaradamente, um pré-conceito da minha parte. Não o nego e até peço desculpas se estiver errada. No entanto, apostaria uns euros nesta opinião se fosse forçada a isso.

Quanto ao espiritismo e à ideia de contacto com outros planos, o que posso dizer é que a sinceridade da experiência não garante a veracidade da interpretação. As experiências subjetivas (visões, intuições, sentimentos de presença) são universais e explicáveis em termos neurológicos e psicológicos. A mente humana é extraordinariamente criativa, e o cérebro é capaz de gerar experiências intensamente reais que, no entanto, não têm correspondência objetiva. O método científico serve precisamente para proteger-nos dessas ilusões, inclusive das mais agradáveis.

Embora Allan Kardec afirmasse seguir o “método científico” na elaboração da doutrina espírita, na realidade ele nunca aplicou qualquer procedimento científico reconhecível. Não houve observação controlada, hipóteses testáveis, experimentação reproduzível nem revisão por pares. O que Kardec fez foi recolher relatos mediúnicos e interpretá-los à luz das suas próprias convicções, apresentando-os como factos. Esse processo pode ter sido feito com sinceridade, mas não é ciência, é especulação metafísica. A ciência baseia-se em evidências verificáveis e na possibilidade de refutação. Já o espiritismo baseia-se em testemunhos subjetivos e fenómenos não demonstráveis. Portanto, apesar de Kardec desejar dar ao espiritismo uma aparência racional, os seus escritos pertencem ao domínio da crença, não ao da investigação científica. Que seja esse o teu modo de vida é uma escolha pessoal que não tenho que questionar. Contudo, é só isso, uma escolha de vida que em nada demonstra a veracidade dos ensinamentos que escolheste seguir e que em nada se baseia no método científico.

Concordo inteiramente contigo num ponto essencial: devemos sempre questionar e continuar a aprender. O problema é que o verdadeiro questionamento exige que também coloquemos em dúvida as nossas certezas mais íntimas, inclusive as espirituais. E é aqui que a postura ateísta não é uma negação da espiritualidade humana, mas uma exigência de honestidade intelectual. Por fim, suspeito que o que te incomoda no meu conteúdo é sobretudo o anticlericalismo. Deixa-me só referir que o anticlericalismo não é ódio à religião, mas defesa da liberdade de consciência contra qualquer instituição que pretenda ter autoridade sobre o pensamento humano. É uma oposição ao poder clerical. As igrejas e demais instituições religiosas e espirituais, todas elas, devem ser submetidas ao mesmo escrutínio que qualquer outra forma de poder. Isso não é intolerância; é maturidade intelectual.

Ao ler e reler a tua mensagem fico na dúvida: seria uma forma de evangelização? Tens como objetivo arrancar-me do ateísmo herege e pecaminoso? Tiveste necessidade de partilhar as tuas crenças porque sentes que o meu conteúdo as invalida de alguma forma? Ou só quiseste iniciar um debate? Não sei, mas agradeço na mesma a tua mensagem. O diálogo é o que nos permite evoluir.

Evoluímos melhor quando a verdade, e não o conforto, é o nosso objetivo.

24 de Junho, 2025 Onofre Varela

Aborto ainda condena mulheres portuguesas

Leio no jornal Público de 17 de Junho último, que “entre 2007 e 2024 houve 159 crimes de aborto registados em Portugal e 33 condenações em 1ª Instância relacionadas com estes casos”. A notícia é, no mínimo, estranha e assombrosa… já que a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) em Portugal está legalizada desde 2007 pela lei nº 16, de 17 de Abril, segundo fonte fidedigna da Direcção Geral da Saúde e da Sociedade Portuguesa da Contracepção. Quem agora veio revelar este assombroso número de “crimes” relacionados com a prática do aborto no país (que eu presumia legal) foi a Amnistia Internacional (AI) que regista tão elevado número no seu relatório sobre IVG em Portugal. Entre as recomendações que a AI deixa ao governo Português consta a retirada da prática abortiva do Código Penal… (eu nem imaginava que constava dele, depois da lei de 2007!).

A mesma notícia dá conta de que quem se governa muito bem com esta “titubeante legalização da IVG em Portugal” são as clínicas espanholas. Em seis anos (de 2019 até 2025), 3352 grávidas portuguesas recorreram a clínicas espanholas para interromperem a gravidez. Não é novidade: em Junho de 1999 (quando ainda era proibido abortar em Portugal) a imprensa noticiou que nos três anos anteriores cerca de nove mil mulheres portuguesas tinham recorrido a clínicas espanholas para abortarem. Há, por cá, um movimento de “famílias bem” apoiado pela Igreja (não sei se alguns elementos destas famílias têm interesses económicos nas clínicas espanholas) que quer um retrocesso na lei que regulamenta a prática do aborto em Portugal, inscrevendo-o na mesma lista onde colocaram a eutanásia que não querem ver legalizada. 

É uma atitude que me parece muito estranha… porque aquilo que, de imediato, sobressai dela é a falta de respeito pela vontade do outro, o que mostra haver quem queira impor a sua própria vontade a todos os cidadãos do país! Para quem viveu, como eu vivi (em 1974 eu tinha 30 anos) a realidade do Portugal ditatorial sob o regime de Salazar e da Igreja Católica medieval (contra quem, e contra o que, eu estava) é que sente o bem que é ter a Liberdade de escolher que todos conquistamos em Abril!… 

Aos meus leitores mais novos lembro que as leis de Salazar proibiam o aborto e o divórcio, obrigando a que cada homem desse o seu apelido de família aos filhos da sua esposa, mesmo quando os bebés eram, garantidamente, filhos de outro homem! Quanto ao aborto, a tragédia multiplicava-se. Sob o falso e dogmático manto da defesa da vida, a petrificada posição religiosa contribuía para situações que se saldavam em elevado número de mortes, que seriam evitáveis através de políticas realistas, livres de religiosas e nefastas vontades. 

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Em 1997, quando na Assembleia da República se discutia a lei da IVG, houve um caso noticiado pelo jornal Diário de Leiria como notícia local. Uma senhora tinha uma filha bebé de poucos meses e engravidou sem o querer. Por muito que ela quisesse dar um irmão ao primeiro filho, havia uma realidade económica e social que lhe dizia não ser possível fazê-lo naquele momento. Ela e o marido trabalhavam. As despesas da casa recém-adquirida levavam quase o vencimento do casal, deixando pouco para os restantes gastos familiares. Um outro filho naquela altura era impensável. Decidiu-se pelo aborto clandestino por ser o único modo que tinha de abortar naquele tempo. Mesmo assim, teve o bom senso de não confiar o seu corpo a uma habilidosa, e procurou uma profissional credenciada. Uma enfermeira que lhe foi recomendada por alguém. Teria de pagar 50 contos (parte para a enfermeira e outra parte para a pessoa que fez a mediação). Conseguido o dinheiro por empréstimo, a enfermeira provocou-lhe o aborto em sua própria casa. Dois dias depois a senhora não aguentava as dores e chamou a enfermeira que, vendo o caso de difícil solução, chamou uma ambulância e levou-a para o hospital. Foi-lhe diagnosticada uma “infecção generalizada”… e morreu no dia seguinte. 

São estes desfechos, impensáveis numa sociedade moderna, que os contrários à IVG querem ver nos telejornais da desgraça dos seus encantos?!…

29 de Janeiro, 2025 Eva Monteiro

Nem só de religião vive o ateu

O ateísmo, por si só e nos tempos que correm, não é nada de excitante. A ausência de alguma coisa não significa que haja um vazio a preencher. Ser-se ateu é apenas uma recusa em acreditar em deuses. Ora, posto isto a discussão acaba aqui. Não há uma mundividência ateia, um sistema ético ateu ou um modo de vida ateu. Este último no sentido em que o ateísmo não acrescenta, apenas retira. Não significa que o modo de vida de um ateu não seja rico e preenchido – por outros meios. Em suma, o ateísmo não é uma religião e não pretende oferecer nada além dessa ausência.

Para que eu seja ateia é necessário que exista religião e que ela seja prevalente. O ateísmo existe apenas como reação ao mundo infetado em que vivemos, tomado conta por um vírus existencial que recusa emancipar-se de um pai ultrapassado e senil que há muito devia ter deixado de ditar as regras lá em casa. Neste sentido, o ateísmo vive da religião porque na sua ausência seríamos apenas normais.

Não obstante esta luta entre acreditar e não acreditar numa ideia sobrenatural que pertence à infância da humanidade, nem só de religião vive esta ateia e, creio, outros ateus. Necessito de uma mundividência, de estabelecer valores éticos e um modo de vida. É o Humanismo Secular que preenche esse lugar onde recuso deixar entrar o dogma religioso e os sistemas arbitrários de falsa moralidade que as religiões oferecem. Se abraço assim a razão humana, a ética, a justiça social e o naturalismo, esta ateia vive também de política. Aliás, como ativista ateia, haverá pouco do que faço e vivo que não esteja imbuído desta coisa que se refere à vida em sociedade e a relação com o poder.

Neste sentido, é como humanista secular que hoje escrevo, além de enquanto ateia. Li ontem um artigo do Vatican News em que se dá conta de uma nota dos Dicastérios para a Doutrina da Fé (anteriormente chamados de Inquisição – sim essa) e para a Cultura e Educação em que “são destacadas as potencialidades e os desafios nos campos da educação, economia, trabalho, saúde, relações humanas e internacionais, bem como em contextos de guerra.”. À primeira vista não posso deixar de concordar que existem desafios. No entanto, basta continuar a ler para entender que o Sr. Jorge Mário tem umas ideias pouco originais sobre a IA, fruto de uma longa tradição católica de combater tudo o que é novo e que retire protagonismo ao seu modo de vida dogmático e redutor.

Nem tudo o que se diz na “Antiqua et Nova” é de deitar fora. Nem tudo, mas muito. Refiro-me à pressa em advertir os crentes que não endeusem a IA. Não que eu a queira endeusar, mas eu, pelo menos, não invento deuses para controlar grupos de pessoas. O Papa, vulgo Sr. Jorge Mário, tem receio do “Poder nas mãos de poucos”. A piada faz-se sozinha, claro.  Preocupa-o (além da guerra que também me preocupa), a “antropomorfização da IA” gerando relações fraudulentas. Mais uma oportunidade perdida de um gracejo pouco simpático. No seu costumeiro ímpeto de controlar a sexualidade humana, o documento avança que “usar a IA para enganar em outros contextos – como na educação ou nas relações humanas, incluindo a esfera da sexualidade – é profundamente imoral e exige vigilância rigorosa”. Mas quem vigia a igreja que há séculos o faz?

O texto fala de preconceito e discriminação, de perdas no desenvolvimento do pensamento crítico, de fake news e deep fakes, de manipulação, informações falsas, enganos, de alimentar o ódio e a intolerância, da desvalorização da beleza e intimidade da sexualidade humana e da exploração dos fracos e indefesos. O Sr. Jorge Mário vai mais longe e critica o controlo da consciência humana pela IA, a vigilância do cidadão comum para proveito de outros, a exploração de recursos naturais para alimentar a IA, mas acima de tudo, alerta que a “presunção de substituir Deus por uma obra de suas próprias mãos é idolatria”.

Em suma, depois de listar tudo aquilo que tem feito nos últimos 2000 anos e que sente ser apanágio da ICAR, o Sr. Jorge Mário identifica o busílis da questão: a Igreja sente-se gradualmente substituída por uma imaginada IA maldosa (quiçá competitiva também neste campo com as atrocidades que a ICAR cometeu ao longo de séculos) e isso não dá jeito nenhum.

Por fim, um campo em que eu e o Sr. Jorge Mário concordamos:

Em particular, no âmbito do trabalho, destaca-se que, se por um lado a IA tem “potencial” para aumentar competências e produtividade ou criar novos empregos, por outro, pode “desqualificar os trabalhadores, submetê-los a uma vigilância automatizada e relegá-los a funções rígidas e repetitivas”, a ponto de “sufocar” toda capacidade inovadora. “Não se deve buscar substituir cada vez mais o trabalho humano pelo progresso tecnológico: ao fazê-lo, a humanidade prejudicaria a si mesma”.

Dizia eu há pouco que nem só de religião vive o ateu. Eu vivo deste Humanismo Secular que me auxilia a identificar-me como pessoa que luta pelo bem estar de todos, em sociedades dignas e dignificantes sem recurso a falsas promessas de castigo ou recompensa após a morte. Eu concordo com o Sr. Jorge Mário no que diz respeito à IA no campo do trabalho ainda que não corra o risco de a endeusar e a enfiar na ausência de religião a que o meu ateísmo obriga.

Ao contrário do Sr. Jorge Mário, a minha solução proposta não é a fuga para um passado medieval de bruxas, demónios e fogueiras. Sugiro que todas as empresas que utilizem inteligência artificial ou outras tecnologias para substituir o trabalho humano sejam obrigadas a pagar impostos proporcionais aos encargos fiscais que teriam caso essas tarefas, funções ou postos de trabalho fossem ocupados por pessoas. Os valores arrecadados com este imposto teriam de ser direcionados para a criação de um rendimento básico universal, garantindo que os trabalhadores, em vez de serem simplesmente descartados, pudessem beneficiar dos avanços tecnológicos. Dessa forma, a automação não serviria apenas para maximizar os lucros dos CEOs à custa do desemprego em massa, mas sim para promover uma distribuição mais equitativa da riqueza gerada pela inovação. Ou seja, mais tempo para viver, com os meios para aproveitar esse tempo. Talvez o Sr. Jorge Mário devesse estar menos preocupado com a manutenção da imagem de infalibilidade da ICAR e da perda crescente de crentes (por consequência, do dinheiro que geram), e mais preocupado em realmente encontrar soluções para a sociedade em que vivemos. Nem só de pão vive o homem – dizem eles. É verdade, pessoalmente gosto de um bom Alvarinho e um queijo a acompanhar. E preferia ter como os pagar.

3 de Novembro, 2024 Onofre Varela

Halloween, o dia das Bruxas

As pessoas da minha idade que celebram o dia 1 de Novembro, atribuem à data duas recordações, sendo uma histórica e outra religiosa: a primeira, é o dia do terramoto que destruiu Lisboa no ano de 1755, e a outra é o “dia de todos os santos”, no qual a tradição manda lembrar os mortos da família numa romagem de saudade ao cemitério onde estão sepultados, dando uma ajuda ao negócio das flores que nesse dia triplicam ou quadruplicam o preço, de acordo com a regra económico-capitalista “da oferta e da procura”.

A estes dois eventos soma-se mais um que não era atendido na cultura portuguesa do meu meio social no tempo da minha meninice e primeira juventude, tendo sido importado de países ocidentais anglófonos. Refiro-me ao “Halloween”.

Celebrado na noite de 31 de Outubro para 1 de Novembro, o Halloween é uma festa americana das crianças que escolhem guarda-roupa de fantasia fantasmagórica para, assim trajadas, baterem à porta de vizinhos, amigos e familiares, pedindo guloseimas (gostosuras) e fazendo travessuras se não forem atendidas.

A origem desta tradição, que pede uma decoração das casas usando abóboras-lanterna, o acender de fogueiras e o contar histórias de assombração, pode ser encontrada em rituais celtas ligados ao fim do Verão e às colheitas agrícolas, e remonta ao século XVIII nos territórios pagãos da Irlanda e da Escócia, cujos rituais foram exportados para o território norte-americano pelos colonos imigrantes que se fixaram na terra dos “peles-vermelhas” (que são os históricos, legítimos e verdadeiros donos daquelas paragens geográficas).

Imagem gerada por IA da Stockcake

Mas a história do Halloween tem uma origem mais alongada no tempo se lhe juntarmos as tradições semelhantes dos povos celtas que habitaram a Gália (França) entre os anos 600 aC e 800 dC. A par do folclore, misto de religioso e pagão, há uma história bem mais dramática ligada à data do “Dia das Bruxas”. Isto dito assim até parece comédia ligeira e faz sorrir… mas vivido no seu tempo constituiu intenso drama sentido pelas mulheres perseguidas por superstição, estupidez e vingança torpe.

Numa sociedade dirigida por homens, tradicionalmente as mulheres nunca foram consideradas na exacta medida da igualdade que naturalmente têm perante os homens. Remetidas para uma escala menor, as mulheres ainda hoje (na nossa sociedade ocidental considerada tão “avançada”), auferem vencimento inferior aos homens que executam a mesma tarefa. (“Desigualdade salarial entre homens e mulheres voltou a aumentar”. Notícia de 9 de Julho de 2024, no jornal Público).

Tempos houve em que qualquer mulher que fugisse do padrão comportamental estabelecido pelos machos da sociedade, passava a ser considerada “bruxa” e, como tal, era perseguida, insultada, presa, torturada e morta violentamente, incluindo ser queimada viva.

Para que uma mulher fosse considerada bruxa bastava que ela mostrasse ser mais inteligente do que os homens que lhe eram próximos. Mulheres que exerciam actividades sociais de relevo, como prestar ajuda a parturientes e preparar medicamentos tradicionais, como hoje se encontram nas ervanárias, podiam ser designadas como bruxas por terem conhecimentos importantes para a época… e no extremo seriam perseguidas pelo complexo de inferioridade dos homens que, na convicção de mostrarem a sua “grandeza enquanto machos”, só sublinhavam a sua extrema pequenez perante as mulheres.

A sociedade machista não tinha estereotipado tais características para as mulheres… por isso, qualquer uma que saísse do padrão subserviente e temente ao homem, estava sujeita à perseguição porque, acreditavam eles, ela “teria feito um pacto com o diabo”. A partir daí podia ser humilhada, torturada e morta.

Na verdade o que acontecia tinha uma razão mais evidente e igualmente triste: a sociedade machista via nessas mulheres uma “ameaça à dominação masculina”, cujo sentimento de prepotência remonta à tradição judaico-cristã de o homem dominar a mulher, não permitindo que ela tenha vida própria para além daquilo que ele estipula “ser legal” para ela, tal como ainda hoje se observa na tradição religiosa de países islâmicos extremistas… e também em algumas famílias portuguesas… já agora!

(Por preguiça de aprender novas regras, o autor não obedece ao último Acordo Ortográfico. Basta-lhe o Português que lhe foi ensinado na Escola Primária por professores altamente qualificados)

15 de Agosto, 2024 João Nascimento

Da Premissa Filosófica de um Mundo sem Deuses

A Religião Envenena a Ética e a Moralidade

Criado no DALL-E

Sinto sempre um moderado incómodo quando alguém, um crente, um temente a Deus, me pergunta como é possível eu ter algum conceito de moralidade e ética sendo ateu. Pior ainda, insultam-me quando ficam incrédulos por eu não me levantar todos os dias com a magnífica ideia de deambular pelas ruas de Lisboa, a pisar grávidas, a matar idosos e a violar tudo o que me aparece pela frente.

Sem grande surpresa, parecem ficar mais tranquilos quando lhes digo que não, que não ando pelas ruas, seminu e a conduzir um jipe com cabeças humanas como bandeiras, a matar pessoas aleatoriamente numa busca eterna por mais gasolina. No fim, e se fizerem um esforço real para me conhecer, são sempre confrontados com a crua ironia das perguntas que me fizeram. E, provavelmente, perguntar-se-ão de onde veio essa ideia.

Esta genial proposição é uma falácia antiga que persiste. Um mito disseminado por mentes incautas ao longo dos milénios. Uma história que insiste em afirmar que o ser humano só não faz exatamente o que lhe apetece, quando lhe apetece — como torturar, matar, mentir, cobiçar, invejar ou semear o caos — porque um ou mais criadores, ou criadoras, decidiram dotar os seus brinquedos de carne preferidos com certos mecanismos de moralidade espiritual.

Agora, tu, se achas que a moralidade não pode existir sem fé num ou mais deuses, não estás apenas profundamente enganado; estás também a aproximar-te, e sorrateiramente, da ignorância.

Os crentes argumentam fervorosamente que, sem Deus, esse suposto modelo de bondade, justiça eterna e compaixão, não pode haver moralidade. Contudo, ignoram uma verdade simples e, arrisco a dizer, inegável: os seres humanos possuem um sentido inato de empatia e de humanidade partilhada. Imagino-o como uma bússola interna que nos guia, sem necessidade de divindades rancorosas a interferir de maneira suspeita nas nossas consciências.

Olhemos para os infiéis, os agnósticos, os ateus. Eles não precisam de mandamentos divinos gravados em pedra na Idade do Bronze para agir com bondade; fazem-no por genuíno altruísmo, não achas? Mesmo quando há uma agenda mais egoísta por detrás de um acto de compaixão, isso apenas reforça a ideia de que este é um mecanismo que evoluiu com a nossa espécie. Há vantagens em ser bom.

As boas acções não necessitam de recompensas divinas nem de promessas de uma vida após a morte repleta de prazeres celestiais; são valiosas por si mesmas. A moralidade e a ética não são reflexos das doutrinas religiosas, como alguns crentes podem tentar fazer-te acreditar. Estão profundamente enraizadas no nosso ADN, produtos de instintos sociais e intelectuais que evoluíram ao longo do tempo.

Assim como as árvores antigas têm raízes profundas, o Homo sapiens prosperou através da cooperação e do altruísmo — virtudes que existiam muito antes de a religião organizada surgir. Atribuir, portanto, a moralidade humana a uma fonte divina é, claramente, uma ideia não só perigosa, mas também incrivelmente estúpida.

Consideremos o conceito de Inferno, introduzido apenas no mais afável Novo Testamento. Este é um exemplo evidente de como a religião pode distorcer a moralidade de formas cada vez mais bizarras. A ideia de uma condenação eterna no pior lugar do cosmos por se desviar de uma crença, ainda que irrelevante para o mundo secular, não é apenas moralmente contraditória; é uma flagrante violação da razão e da justiça.

A ética humanista considera este conceito não só ridiculamente ultrapassado, mas também completamente absurdo. Indigno de ser levado a sério. Porém, os crentes continuam a agarrar-se a esta macabra fantasia medieval, ainda hoje defendida acerrimamente por grande parte do clero. 

Até alguns descrentes aceitam esta genial ideia, e acreditam que os seus filhos precisam de temer um demónio com cascos, chifres e um tridente para se comportarem adequadamente. A estes digo: pensem melhor.

Pondo de lado as verdadeiras teocracias que ainda existem no mundo, a maioria das religiões de hoje apresenta-se de forma mansa, amável e alegre, oferecendo, com floreados metafóricos, consolo e elevação espiritual. Mas não devemos esquecer o comportamento bárbaro que exibiram quando detinham verdadeiro poder, impondo as suas vis crenças das quais ninguém podia escapar — ainda há poucas décadas atrás, aliás.

A Bíblia, por exemplo — e apenas para evitar referir todos os manuais oficiais das diversas religiões que têm assolado a humanidade desde sempre, e continuam a fazê-lo — reflete práticas sociais e morais de tempos antigos, quando se sabia muito pouco sobre o mundo, quanto mais sobre o cosmos. Justificava acções como a escravatura e a limpeza étnica, que hoje são naturalmente consideradas profundamente imorais e criminosas.

À medida que o nosso entendimento do cosmos e de nós próprios evolui, também evolui o nosso sentido de moralidade e ética. Nunca foi tão claro que os ensinamentos religiosos procuram impedir este progresso, impondo dogmas rígidos, arcaicos e trancados pela inefável e austera palavra de Deus.

A fé, como nos ensina a história da humanidade, conduz à mesquinhez, ao egoísmo e à ignorância, promovendo a obediência cega em vez de uma verdadeira responsabilidade moral e intelectual.

A verdadeira moralidade não se encontra em textos sagrados, mas na nossa capacidade inata de empatizar com o nosso semelhante. Consiste, fundamentalmente, em respeitar e dignificar todos os seres vivos, guiados pelo nosso Daemon interno, como diria Sócrates

Esta é a ética de um mundo sem deuses, que abraça o humanismo secular e que se dedica ao máximo bem-estar de todos os seres vivos, através da ciência, da razão e da nossa própria humanidade.

12 de Agosto, 2024 João Nascimento

Da Religião e do Sequestro da Alma Humana

Gosto de pensar que fui aluno de Carl Sagan, embora isso seja algo que muitos outros como eu poderão também facilmente afirmar. Cresci a ler os seus livros, a ver os seus documentários — Cosmos, por exemplo —, e apaixonei-me, tal como tantos outros, pela beleza da ciência por causa dele.

Arrisco a dizer que Carl Sagan foi quem me mostrou pela primeira vez o que era o numinoso, o que significa, o que representa e quão importante é. Senti-o pela primeira vez com ele.

No seu livro Pale Blue Dot, o Carl Sagan oferece ao mundo uma reflexão profunda, inspirada por uma fotografia que ele mesmo propôs que fosse tirada pela sonda Voyager 1, em 1990.

À medida que a sonda se distanciava para além das gélidas fronteiras do nosso sistema solar, a câmara foi então ajustada para capturar uma imagem da Terra. O resultado foi uma fotografia que nos revelou não mais do que um minúsculo ponto azul claro na escuridão cósmica. Acredito que este gesto aparentemente simples tornou-se uma sinopse visivelmente crua da nossa fragilidade, e da nossa poética insignificância no panorama universal.

Olha novamente para aquele ponto. É aqui. É o nosso lar. Somos nós. Nele, todos aqueles que amas, todos os que conheces, todos aqueles de quem já ouviste falar, todos os seres humanos que alguma vez existiram, viveram as suas vidas. O agregado do nosso júbilo e sofrimento, milhares de religiões confiantes, ideologias e doutrinas económicas, todos os caçadores e recolectores, todos os heróis e cobardes, todos os criadores e destruidores de civilizações, todos os reis e camponeses, todos os jovens casais apaixonados, todas as mães e pais, crianças esperançosas, inventores e exploradores, todos os professores de moral, todos os políticos corruptos, todas as “superestrelas”, todos os “líderes supremos”, todos os santos e pecadores na história da nossa espécie viveram ali — num grão de pó suspenso num raio de sol.

A Terra é um palco muito pequeno numa vasta arena cósmica. Pensa nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores para que, em glória e triunfo, pudessem tornar-se os senhores momentâneos de uma fracção de um ponto. Pensa nas crueldades sem fim cometidas pelos habitantes de um canto deste píxel sobre os habitantes de algum outro canto, quão frequentes são os seus mal-entendidos, quão ávidos estão em matar-se uns aos outros, quão fervorosos são os seus ódios.

— Carl Sagan, Pale Blue Dot

Quando fui confrontado com esta incongruência entre o nosso solipsismo inato, e a ínfima impressão que deixamos no cosmos pela primeira vez, cresci.

Lembro-me do momento preciso, pois senti que esta discordância era um alerta valioso sobre a futilidade dos nossos conflitos terrenos, sobretudo quando ponderados à luz da escala incomensurável do universo. A revelação foi um momento de exaltação intelectual, um Eureka pessoal que potenciou e inspirou positivamente uma já irreversível e eterna viagem por mais conhecimento. 

Acredito não ser o único primata a ter sentido o mistério do transcendental, a ter experimentado algo maior que eu, mais importante e fantástico. Tenho a certeza disto.

Há mesmo momentos especiais nas nossas vidas em que o cosmos parece alinhar-se de forma quase mágica, e muitas vezes a nosso favor. Um breve instante em que a realidade deixa de ser o que parece e revela algo que ultrapassa o mundano e o habitual. Faz-nos sentir grandiosos, especiais, únicos, poderosos, extasiados, ansiosos, como tendo sido o melhor dia da nossa vida. O melhor evento, o quadro mais trágico, a canção mais lírica, o poema mais emocional, o livro mais bem escrito, etc.

Muitos, ao longo de milénios, têm interpretado estes vislumbres do transcendental como carícias divinas. Empurrões espirituais que levam muitos a percorrer caminhos ditos sagrados — seja pelo sacerdócio, pela conversão ao Islão, ao Hinduísmo, ao Judaísmo, ou por qualquer outra senda delineada pelo desonesto carimbo da religião.

E é precisamente aqui que a religião comete talvez a sua maior afronta: a audaciosa presunção de que apenas através dela, com os seus rituais, dogmas e insanidade em geral, é possível ao ser-humano experimentar o numinoso e sentir-se parte de algo maior e mais magnífico.

O transcendental, o numinoso, é aquela sensação que nos liga ao sublime, um grito trovadoresco que nos expõe a algo incrivelmente profundo. Desafia por vezes a lógica e leva-nos a confrontar uma realidade vasta em nuances e, por vezes, indescritível. E, ao contrário do que as religiões têm pregado há milénios, não são necessários mediadores, sacerdotes ou símbolos e rituais religiosos para o experienciar.

Este radar que temos para o detetar e sentir é intrínseco, uma parte essencial de todos nós, independentemente da fé — ou da ausência dela. Ao longo do tempo, a religião apoderou-se desta experiência profundamente humana da pior maneira possível. Ao sequestrar a nossa sensação de esplendor, a religião não só a conspurca continuamente e desde sempre, como também nos faz crer, de forma insidiosa, que apenas através das suas más ideias e práticas arcaicas poderíamos ter acesso a esta dimensão essencial da nossa existência.

Mas será que Michelangelo, o famoso pintor, ao criar as suas obras-primas sob a tutela financeira do Vaticano, estava realmente a expressar inspiração oriunda de fé fervorosa? Ou terá sido simplesmente a sua genialidade, a sua ligação natural ao numinoso, que brilhou apesar das imposições religiosas? Sabemos sequer se este artista era realmente devoto? Ou estaria ele apenas a tentar ganhar a vida?

A mente religiosa afirma ser impossível criar arte majestosa, música inspiradora ou escrever algo verdadeiramente belo e puro sem uma ligação íntima, e de forma altamente suspeita, com um ou mais deuses. Discordo.

Reivindicar algo tão humano como seu é nada menos que uma mentira, uma narrativa construída por homens prepotentes, cínicos, virgens e moralistas, para manter o seu domínio sobre as nossas vidas — aqui, no mundo real e mortal, onde conseguem verdadeiramente exercer o seu poder sobre as mentes mais incautas e controlá-las. Talvez seja esta a razão pela qual está tão profundamente enraizada na nossa psique colectiva, e tão difícil de erradicar ou domesticar.

Um ateu, um agnóstico, qualquer descrente, qualquer pessoa com cérebro e neurónios relativamente activos, tem tanta capacidade de sentir a beleza numinosa como qualquer devoto. A verdade é que esta manifesta-se de inúmeras formas que nada têm a ver com a institucionalização do sagrado.

Está presente na ciência que revela os mistérios do universo, na arte que expressa a profundidade e dificuldade da experiência humana, e nos actos de coragem e altruísmo que nos mostram o melhor da essência do ser humano.

A arte, a ciência, a exploração do desconhecido — todas estas são formas legítimas e poderosas de experienciar o numinoso, muitas vezes de forma mais pura e direta do que qualquer conjunto de regras ou dogma religioso permitiria. E, por conseguinte, com maior e melhor utilidade a curto e longo prazo.

Quando a religião — qualquer uma delas — afirma possuir o monopólio do transcendente, está apenas a tentar, de uma maneira extremamente venenosa, controlar a nossa relação com o mistério e a beleza do universo.

Acredito que chegou a hora de a resgatarmos, assim como a poesia da existência, das garras da religião, e de a reclamarmos como nossa, como parte da nossa herança humana universal.

O numinoso é livre.

13 de Março, 2024 Onofre Varela

Graças a Deus

As frases “Graças a Deus” e “se Deus quiser” são usadas no sentido de agradecimento e no desejo de que tudo corra bem sob a benesse da divindade. São frases tão enraizadas nas mentes e tão corriqueiras que quem as profere fá-lo de um modo automático sem ter a noção do que está a dizer. 

Os extremistas islâmicos também as usam no sentido de que tudo lhes corra bem, incluindo a eliminação de vidas nos seus atentados criminosos!… Deus é pau para toda a obra… é como a nódoa… que no bom pano cai! 

Para os crentes, Deus representa tudo quanto de bom se possa imaginar, mais a fé e a esperança de que tudo corra conforme o desejo da divindade (imaginamos que o seu desejo coincide com o nosso!). O crente tem, perante a ideia de Deus (mesmo sem saber o que é nem como é Deus) uma atitude de “respeito”, temendo-o e adorando-o concomitantemente.

Quando fazemos boa viagem agradecemos a Deus por termos chegado bem… mas se tivermos um acidente, não dizemos “graças a Deus espatifamos o carro contra uma árvore, e o tio Zé morreu com o volante enfiado no peito”. O que não se percebe!… Porque se Deus é o responsável pelo bom desfecho, também devia ser responsabilizado quando a viagem correu mal, já que se retirou do seu posto de vigia quando fazia mais falta!… 

A palavra Deus acaba por ser um código para referir o objecto sagrado da nossa adoração. Se em vez da palavra “Deus”, adoptassemos qualquer outro termo… por exemplo, “Birobé”, em vez de darmos “graças a Deus”, dávamos “graças a Birobé”!… 

Foto de Olivia Snow na Unsplash

Birobé seria o autor de todas as coisas. Passava a ser o criador e o dono do nosso destino. Birobé seria a explicação para tudo quanto desconhecemos, e o guardião da fonte de todos os nossos desejos. 

Birobé é, a partir de agora, o dono da nossa alma. E só por vontade de Birobé acordamos todas as manhãs para enfrentarmos o dia que temos para viver; e vivêmo-lo graças a Birobé. Birobé é a explicação para tudo quanto desconhecemos e queremos ver explicado. Mesmo que aquilo que não conhecemos seja sobejamente conhecido por todos, menos por nós, é Birobé que preenche o enorme buraco do nosso desconhecimento. E continuando a desconhecermos a verdadeira essência da coisa, cremos conhecê-la porque “sabemos” que a coisa… é Birobé! 

Quando procuramos uma explicação, não consultamos uma enciclopédia; recorremos a Birobé porque ele tudo sabe, é Grande e o seu Poder é indesmentível. Com Birobé, tudo; sem Birobé, nada. Birobé é aquele que designamos com letra maiúscula, que cremos ser Omnipotente, Omnisciente e Omnipresente, que tudo vê, sabe e domina. Birobé é O princípio, O meio e O fim. É Ele que nos ilumina o caminho e a Ele devemos incondicional adoração.

Acha ridículo dar graças a Birobé?…

Tem toda a razão. É tão ridículo como dar graças a Deus!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

29 de Fevereiro, 2024 Eva Monteiro

Mandar o Papa para o Céu

A publicação no X, acerca dos primeiros minutos da tertúlia, pode ser encontrada aqui.

Tempos houve em que mandar alguém para o inferno era mau. Agora, até mandar para o céu é insulto. Eu diria que é, porque a parte má está em morrer e não no que acontece depois, que é rigorosamente nada. E se isto não fosse claro e universal, não teria lido a notícia que li hoje no Observador – Programa Sacerdotal torna-se viral no YouTube depois de padres desejarem que Papa “possa ir para o céu o quanto antes”.

Não me chocou particularmente que estes padres desejassem a morte do Papa. Muitos não devem gostar dele, sejam católicos ou não. Se para um ateu a Igreja é uma coisa medievalista e retrógrada, para muitos dos seus membros, está a tornar-se um absurdo de modernidade. O contexto é simples: trata-se do episódio de dia 22 de fevereiro de uma terúlia sacerdotal – La Comunión en la mano: doctrina, mentira y desobediencia – La Sacristía de La Vendée: 22-02-2024 – que discute por sua vez um documentário (?) intitulado Comunhão na Mão, o Triunfo da Desobediência. O tema? Comungar na mão ou comungar na boca. Vamos pôr aqui um pin, que já cá voltamos.

Quando morre um Papa, o representante de deus na terra, outro é eleito, num conclave que reune o Colégio dos Cardeais no Vaticano. Não me vou alongar nos procedimentos através dos quais um Papa é eleito, porque já me bastou o tempo que dediquei aos vídeos acima, mas para quem realmente estiver interessado nos detalhes e rituais que compõem este momento da Sé Apostólica, pode ler mais aqui. Certo é que se entende, no mundo católico, que deus participa deste conclave inspirando o voto dos seus participantes. Assim, o cardeal eleito é escolhido por deus através do voto dos seus principais sacerdotes.

Seria de estranhar que sendo deus a escolher, ou a inspirar a escolha do seu representante na terra, do herdeiro do Apóstolo Pedro, a Igreja na sua representação humana, alguém então detestasse, odiasse, desejasse a morte deste ser tão santificado, especialmente no seio da própria organização sagrada que representa. Seria estranho se não soubéssemos que esta organização é inteiramente constituída por homens, sem intervenção divina, e que não representa na terra mais do que 2000 anos de patriarcado, crendice e atentados à inteligência humana. Vistas as coisas por esta perspetiva não me é assim tão estranho que sete padres católicos se juntem durante duas horas para cascar forte e feio no Papa que os rege.

É interessante que começam por rir de forma irónica quando um deles faz votos que o Papa vá depressa para o céu. Mas é mais interessante ainda que ir rapidamente para o céu seja negativo. Não é isso que se pretende? Quanto mais depressa se morre, mais depressa se acede à vida eterna de contemplação de deus. Aquele sorriso, no entanto, não engana. Ele que vá com os porcos, é o que leio ali. Que coisa tão… cristã de se dizer.

E tudo isto porque supostamente o Papa é muito progressista, é de esquerda. Sim, aparentemente o padre Charles Murr considera que se pode estar à esquerda, seja na política, seja na religião. E estes senhores, por essa ordem de ideias, estão mesmo à direita. Qualquer dia começam a celebrar a missa em latim, virados de costas para os crentes. Queixa-se de tudo, que há gente que não se confessa, mas vai comungar, que no funeral de uma pessoa trans, havia ateus e maçons e foram todos comungar. Isto é uma balbúrdia!

Então qual é a queixa central que lhes levou duas horas a discutir apesar de estarem todos à direita religiosa? Comungar com as mãos ou comungar com a boca, conforme aliás, é o tema do documentário supracitado. Esta vossa ateia muito riu com isto! Há fóruns onde fãs acérrimos de obras de ficção discutem teorias com este fervor, mas depois vão todos à livraria mais próxima comprar outros livros e tomar um café amigável. Isso eu entendo. Agora, se o crente leva a hóstia na mão ou se a toma na boca para mostrar reverência ao corpo de cristo, isso já me dá para a perplexidade.

Resumidamente, as pessoas começaram a pensar na porcalhice que é um padre enfiar os dedos nas bocas dos crentes todos. E passou a ser prática comum receber a hóstia na mão e levá-la à boca. Estes padres consideram que isso é desrespeitoso para com o corpo de cristo e acham que o Vaticano agora inventa liturgia. Caberia aqui dizer que tudo o resto que está para trás é igualmente inventado e que a hóstia é só um pedaço do alimento mais sem sabor que se conseguiu criar para o efeito. Foi como assistir a uma partida de Magic The Gathering, mas sem a emoção de saber quem vai ganhar. Só me ocorria que eram dezenas os participantes no chat do YouTube sem noção do quão ridícula é a questão.


Certo é que a piadola lhes correu mal e vieram depois desculpar-se num Tweet (Xweet?). Seriam mais corajosos se assumissem o que disseram. Alguém lhes explique que para alguém ir para o céu, tem que morrer antes. Basta ouvir o restante do conteúdo para entender que consideram que este pontificado é o pior de sempre, e que não gostam do chefe deles. Para um ateu, não seria problema. Faz-mequestionar se estes homens são mesmo crentes ou se são apenas adeptos dos jogos de poder, das fofoquices, do corta na casaca, enfim das cantigas de maldizer. Hei-de confessar-vos (mas não de joelhos), que gosto mais deles assim do que a pregar a palavrinha do senhor. Só não gosto é que ainda haja quem dê importância a isto e nos queira atirar para a Idade Média.