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19 de Setembro, 2006 Carlos Esperança

O Papa e o Islão

O Papa Rätzinger, mentor ideológico do seu antecessor, é ainda mais conservador, com um pensamento mais estruturado e uma agenda mais apressada.

Frio, inteligente e calculista não podia ignorar o imenso alarido que provocariam as suas palavras, descontadas as proporções, impossíveis de quantificar previamente.

Bento XVI é a réplica católica do protestantismo evangélico neoconservador dos EUA e, salvas as devidas proporções, o expoente máximo da postura homóloga dos próceres do Islão. Não foi por acaso que chamou Constantinopla à actual cidade de Istambul.

Condena o relativismo, não se conformando com o pluralismo. Combate a laicidade e interfere de forma vigorosa nos países de tradição católica para obstar às leis que regulam o aborto, o divórcio, a eutanásia, a contracepção ou o planeamento familiar.

O Papa não é apenas o ideólogo do teoconservadorismo, é agente do combate obstinado à modernidade e arauto do regresso ao concílio de Trento. Críticas acerbas ao budismo e ao hinduísmo, a cruzada contra o laicismo e o combate ao evolucionismo, que considera uma ideologia, fazem de B16 o mais obsoleto hierarca do cristianismo. Da teologia à política, da moral à economia e da ciência à religião, Bento XVI situa-se sempre no campo conservador mais duro, aliando um proselitismo exacerbado e uma inflexibilidade teológica.

A expansão do islamismo na sua forma mais arcaica, com laivos de demência fascista, assusta este Papa que vê os feudos tradicionais em rápida secularização numa Europa que deixou de acreditar em verdades únicas e que mais facilmente se envolve na luta de classes do que em querelas da fé.

Foi a inquietação que, na minha opinião, o precipitou para o confronto. Do outro lado disseram-lhe que o Islão era pacífico, assassinando uma freira, perseguindo cristãos e incendiando igrejas. A intolerância não é monopólio de uma religião, é a tradição ancestral das três irmãs abraâmicas.

O seu grande objectivo foi colocar-se na vanguarda do combate ao terrorismo, urgente e necessário, para reivindicar para o Vaticano os louros de uma vitória sabendo que, em caso de derrota, a democracia e a liberdade morreriam e o cristianismo não sobreviveria.

O conflito entre o Papa e o Islão não nasceu das divergências, surgiu das afinidades.

Publicado também no Ponte Europa.

19 de Setembro, 2006 Ricardo Alves

A asneira de Ratzinger (telegraficamente)

  1. Por princípio, defendo a liberdade de expressão até para os que não me reconhecem esse direito, como é o caso de Joseph Ratzinger.
  2. Não sei se a já famosa passagem bizantina sobre o Islão foi inserida como uma provocação calculada, ou se foi uma amostra da insensibilidade papal. Inclino-me para a segunda hipótese.
  3. As reacções violentas das organizações islamistas legais (Irmandade Muçulmana, Jamaat-e-islami) indiciaram aquilo mesmo que pretendiam desmentir: que o Islão não inculca a contenção e a tolerância pelos erros e pelas provocações.
  4. Nada disto aconteceria com Karol Wojtyla, que era um diplomata prudente e um entusiasta do diálogo inter-religioso.
  5. A violência actual poderia ter sido evitada se B16 tivesse mencionado a violência pretérita da sua igreja.
  6. Provocação ou erro, Ratzinger recuou. Não haverá ninguém, entre os que o imaginam líder de cruzada, que lhe chame «islamófilo» ou «Chamberlain»?
19 de Setembro, 2006 Palmira Silva

Bento XVI e a modernidade II

O mundo islâmico continua inflamado com as palavras do Papa – que Silvio Berlusconi classificou como «uma provocação positiva» – não só com as proferidas na palestra em Regensburg como com o suposto pedido de desculpas.

De facto, muitos consideram-no ainda mais ofensivo que a citação que o motivou, já que Ratzinger não pediu desculpas pelo que disse nem lamentou tê-lo dito, apenas declarou lamentar as reacções dos muçulmanos que não perceberam o seu discurso, isto é, subentende condescendentemente que os muçulmanos são demasiado burros para perceberem uma alocução erudita.

O Papa conseguiu ainda insultar os judeus, não só com a homilia em Castel Gandalfo em que citou Paulo de Tarso sobre a crucificação do mítico Cristo, mas igualmente com o que o rabi-chefe sefardita Shlomo Amar considera uma tentativa de transformar conflitos entre nações ou entre nações e terroristas numa «guerra de religiões».

E enquanto os protestos contra o Papa continuam no mundo islâmico, muitos analistas do Vaticano – e muitos católicos – interrogam-se, tal como eu, se este homem tão inteligente e tão experiente em questões de fé pode ter cometido um erro tão crasso sem ter previsto as consequências. Para além disso, como notam alguns analistas, não há qualquer inconsistência entre as palavras do Papa na referida palestra e a sua visão negativa do Islão, expressa em palavras, por exemplo nos seus livros já referidos, e em acções, como a sua oposição à entrada da Turquia na União Europeia.

Aliás, ontem Bento XVI voltou a defender a importância das raízes cristãs da Europa, ressaltando que «a história e a cultura da Europa têm o selo do Cristianismo», dizendo ser fundamental no alargamento da UE perceber as questões da identidade e dos fundamentos espirituais em que se apoiam os Estados e os povos europeus. «Sem uma verdadeira comunhão de valores, não poderá ser realizada nenhuma segura comunhão de direito». Voltando a enfatizar a necessidade do ensino da religião católica no ensino oficial europeu, necessidade que os dirigentes políticos têm de reconhecer para a inculcação dos valores europeus (só faltou acrescentar face à ameaça islâmica) que para Ratzinger são os valores(?) cristãos.

Isto é, desta vez indirectamente Ratzinger não só voltou a mostrar a sua objecção à entrada da Turquia, país laico (por enquanto) de maioria islâmica, como demonstrou claramente o seu desejo de unir a Europa sob o estandarte do Vaticano (ou pelo menos do cristianismo), isto é, firmar a ideia na concorrência islâmica que a Europa é cristã e que quem não partilha esta religião não é bem-vindo.

Por outro lado, Ratzinger demonstrou mais uma vez que não comunga de facto dos valores europeus, que segundo Ratzinger são assentes no cristianismo. Na realidade, os valores em que assenta a nossa sociedade democrática, tolerante e pluralista foram construídos contra a Igreja católica – sempre com muita oposição pela Igreja – e são de factos valores que Ratzinger nunca aceitou e contra os quais está em cruzada.

Este Papa, que quer redefinir razão de forma a ser apenas coincidente com catolicismo, isto é que se arroga a ser apenas ele o detentor do pensamento racional – e apenas ele porque, como indicam fontes próximas do Vaticano, este Papa absolutista que escreve os seus próximos discursos, não admite críticas e despede ou exila quem não partilha a sua «racionalidade» – que confunde os nossos valores civilizacionais com relativismo, que os continua histrionicamente a condenar como loucura e erro não é o defensor da civilização ocidental contra o «perigo muçulmano» como muitos agora apregoam!

Nós não vivemos um choque de civilizações no sentido de Huntington, vivemos um choque de civilizações em que de um lado estão os fundamentalistas de todas as religiões, unidos numa causa comum contra a modernidade e suas «imoralidades». O choque de civilizações é o choque da civilização moderna com a civilização medieval que o obscurantismo das religiões do livro quer impor. Como bem o demonstram os seus protestos uníssonos contra essa modernidade, seja o reconhecimento da mulher como um ser humano de plenos direitos seja o reconhecimento dos direitos dos homossexuais!

Existem islâmicos que lutam nos seus países pela laicidade e reconhecimento dos direitos humanos, se opõem à sharia e restantes barbaridades. Isto é, existem muitos muçulmanos que lutam pelo mesmo que nós lutamos! Mas as vozes desses muçulmanos racionais serão abafadas se embarcarmos no objectivo deste Papa: unir toda a Europa sob o cristianismo numa espécie de nova Cruzada contra o Islão.

Os prenúncios desta Cruzada surgiram no rescaldo da guerra dos cartoons em que o Vaticano advertiu que se o Islão exige respeito pela sua religião então tem de respeitar as restantes. E, especialmente avisou que «Nós devemos frisar sempre a nossa exigência de reciprocidade» segundo declarações do ministro dos Negócios Estrangeiros do Vaticano, o arcebispo Giovanni Lajolo, ao Corriere della Sera, em uníssono com Bento XVI que numa conversa com o embaixador de Marrocos frisou que a paz só pode ser assegurada pelo «respeito pelas convicções religiosas e práticas dos outros, de forma recíproca em todas as sociedades».

Isto é, Bento XVI pretendia que se o mundo islâmico não desse liberdade religiosa aos cristãos então o mundo cristão em retaliação não deveria igualmente dar liberdade religiosa aos muçulmanos.

Como é óbvio, as pretensões de Ratzinger são incompatíveis com os valores da nossa sociedade e como tal devotadas ao insucesso se este exigisse semelhante disparate aos governos europeus! E o próprio Ratzinger deveria saber perfeitamente que essas pretensões seriam acolhidas da mesma forma que as suas constantes exortações contra os avanços civilizacionais ocidentais: o reconhecimento à saúde reprodutiva das mulheres, da liberdade de expressão, da laicidade, dos direitos dos homossexuais, da independência da ciência dos ditames absurdos do Vaticano, etc..

(continua)
18 de Setembro, 2006 jvasco

Manás

Palavras para quê?
A crença acrítica torna isto possível.

18 de Setembro, 2006 Carlos Esperança

Bento XVI – terrorista tímido

O Papa Rätzinger, que teve o apoio do Espírito Santo no conclave que o fez papa, o entusiasmo do Opus Dei que temia a despromoção da prelatura e as orações dos beatos para quem um papa qualquer é sempre santo, não teve quem lhe revisse o discurso, o avisasse das consequências e o prevenisse dos seus próprios demónios.

Todos os que não estão toldados pela hóstia ou em estado cataléptico com incenso e orações, sabem que os livros sagrados são manuais de ódio ao serviço das rivalidades étnicas e velhas convulsões tribais, guardados e aproveitados pela clericanalha para uma vida de fausto e ociosidade.

Não há fanatismo maior nem violência mais truculenta do que a que brota dos livros sagrados e dos santos doutores que os interpretam e promovem como bons.

A Irmã Lúcia, tão chegada a JP2, abandonou B16. Surpreende que quem previu o fim da guerra e o tiro na batina do papa polaco, não tenha reparado, nas suas premonições, no tiro no pé do pastor alemão.

Santo Escrivá a quem a ICAR esqueceu o mau feitio, o apoio a Franco e a irascibilidade a troco dos fartos cabedais que o taumaturgo canalizou em vida para o Vaticano, não fez o milagre de desligar o microfone da universidade onde o Papa bolçou o ódio de um imperador cristão à mourama como os mullahs soem fazer com o rancor do pastor de camelos.

Em vez da laicidade que nos salve do belicismo religioso, é o proselitismo que renasce numa espiral de ódio de um tira-teimas sobre qual é o Deus melhor.

Sob o cadáver de um mito, milhões de seres humanos estão em risco de se transformarem precocemente em cadáveres.

18 de Setembro, 2006 Ricardo Alves

Jónatas Machado e a Paleontologia

«A terceira parte desta homenagem ao criacionismo, exemplificado pelas críticas de Jónatas Machado (JM) publicadas no passado dia 8 no jornal «O Público». Desta vez, sobre o registo fóssil:

«[…] a grande quantidade de “fósseis vivos” e a existência de biliões de fósseis nos cinco continentes testemunham a ocorrência de um dilúvio global, descrito na Bíblia e em muitas narrativas da antiguidade. Se milhões de espécies animais tivessem evoluído ao longo de milhões de anos, deveríamos encontrar biliões de fósseis intermédios e não apenas a mão-cheia de exemplos altamente controversos (v.g. Archaeopteryx) com que nos deparamos.»

Aqui vemos condensados dois grandes favoritos do criacionismo: um dilúvio como a origem do registo fóssil, e a ausência de fósseis de formas intermédias. Mais uma vez, argumentos que dependem duma análise superficial dos problemas, e duma ignorância profunda dos detalhes.

O primeiro argumento é essencialmente que um grande dilúvio matou os animais e plantas, enterrando-os a níveis diferentes conforme o sítio onde viviam, a capacidade que tinham para fugir da água, o seu tamanho e forma, e assim por diante. Assim as baleias e os golfinhos ficaram em camadas superiores, os dinossáurios não conseguiram escapar tão bem e ficaram mais abaixo, e os desgraçados dos trilobites ficaram enterrados lá no fundo.

Mas agora os detalhes. Os trilobites são abundantes no registo fóssil em estratos inferiores. Os peixes teleósteos são muito comuns em estratos superiores (cerca de metade das espécies de vertebrados hoje em dia são peixes teleósteos). Mas nunca se misturam. Não há uma única sardinha fossilizada ao pé de um trilobite. Os criacionistas dirão que os peixes fugiram e os trilobites acabaram por ficar enterrados na lama ou o que seja, mas todos todos todos? Incrível, especialmente quando consideramos que fósseis de corais são frequentes tanto nos estratos contém trilobites como nos que contém peixes teleósteos. Ou que os fósseis das toupeiras estão mais acima que a maioria dos fósseis de peixes. É estranho que num dilúvio as toupeiras tenham sido entre as últimas a afogar-se e a ficar enterradas.

Pior ainda é que os fósseis não são apenas aqueles esqueletos enormes que vemos nos museus. São dentes, escamas, pólen, folhas, patas de insecto, pedaços de casca de ovo, e até fezes (coprólitos). O que JM propõe é que um dilúvio separou todos os fragmentos, fezes, e até pegadas de todos os animais e plantas de acordo com a sua espécie, sem uma única excepção.

JM também afirma que «deveríamos encontrar biliões de fósseis intermédios», mas não explica o que quer dizer com «intermédios». A evolução opera sobre populações, mas os fósseis são vestígios de indivíduos. Com indivíduos, um será intermédio entre outros dois se for descendente directo de um, e antepassado do outro, como o meu pai é intermédio entre mim e o meu avô.

Se escolhermos ao acaso três membros de uma família, com tios, primos, avós, tios-avós, e assim por diante, muito raramente vamos ter um avô, o pai, e o filho. O mais provável é encontrar primos, sobrinhos, e relações mais afastadas, pois essas são muito mais numerosas que relações de descendência directa. Se em vez de uma família tivermos milhões de indivíduos de inúmeras espécies, e em vez de meia dúzia de gerações considerarmos dezenas de milhões de anos, a probabilidade de encontrar ao acaso verdadeiros intermédios é praticamente nula.

Por outro lado, talvez JM queira dizer que são intermédios num sentido mais lato, de estarem em gerações intermédias e relativamente próximos de um descendente directo que tenha vivido nessa altura, mas sem ser necessariamente esse descendente directo em particular. Mas se é isso que quer dizer, então temos muitos casos de fósseis intermédios.

Mas o grande truque deste argumento é que o criacionista pode sempre aplicá-lo. Se tivermos dois fósseis, um mais antigo e outro mais recente na evolução de uma espécie, o criacionista pode dizer que falta um fóssil intermédio. Se encontrarmos um terceiro fóssil com características intermédias, o criacionista agora diz que faltam dois, pois agora há duas «lacunas» onde antes havia apenas uma. Esta característica pode tornar o argumento persuasivo num debate, mas torna-o completamente inútil na procura de explicações.

Em suma, o que JM propõe em substituição da paleontologia, tal como as suas propostas para revolucionar a biologia molecular e a genética, fica aquém duma explicação para o grande número de detalhes importantes que conhecemos, e que são explicados pela ciência moderna.»

18 de Setembro, 2006 Palmira Silva

Bento XVI e a modernidade

O cerne das preocupações de Ratzinger, expressas nos dois livros que já referi, Without Roots: The West, Relativism, Christianity, Islam e «Values in Times of Upheaval», é o facto de que na Europa não só o catolicismo está em remissão como a religião mais dinâmica é o islamismo. Crescimento que ele atribui ao « relativismo» europeu que permite a construção de mesquitas, sinagogas e templos sortidos e a proselitização aberta de outras religiões – o que, não obstante os constantes protestos do Vaticano, não se verifica em países islâmicos, nalguns dos quais a mera conversão a outra religião dita uma pena de morte.

Assim, a Europa está «surda a Deus» – que para Ratzinger é equivalente a ignorar os dislates debitados pelo Vaticano, o único intérprete autorizado do «livro sagrado» que contém tantas ou mais barbaridades que o livro sagrado da maior religião da concorrência- e o propósito prioritário do Vaticano é a re-evangelização da Europa, objectivo a que Ratzinger se devota desde a sua eleição, denunciando estridentemente o suposto «relativismo» que assolou a Europa, o secularismo, a laicidade e a causa última de todas estas «blasfémias», aquela em que tem assestado baterias, a ciência «que tornou Deus supérfluo».

O Papa, que, como exprime em outro livro, Fé, verdade, tolerância, considera a sua como a única religião «verdadeira» e todas as outras erradas, aflige-se com o pluralismo, tolerância e liberdade de religião – que iguala a relativismo – que «infectam» o outrora bastião da cristandade. Assim, a actual cultura herdeira do iluminismo e não da cristandade, ateisticamente assente nos direitos humanos e na tolerância e não na «vontade» divina (interpretada e debitada pelo Vaticano), que explica cientificamente o mundo sem necessitar de Deus e que desenvolve uma ética e uma moral humanistas à revelia do emanado de Roma, é o inimigo da fé cristã que urge combater.

John Wilkins, o ex-editor do periódico católico londrino The Tablet, resume magistralmente o que acabei de dizer:

«Este Papa não aceitou de facto o pluralismo. Ele confunde-o com relativismo».

Apesar das suas ululantes e constantes exortações aos católicos europeus para seguirem estritamente os ditames do Vaticano, da afirmação de que não é um maçador insuportável quem o faz e da advertência de que o catolicismo não é uma «religião faça você mesmo», as suas constantes homilias condenando os erros da modernidade, a tal «ditadura do relativismo» que tanto esgrime, não surtem qualquer efeito e os católicos europeus são na sua maioria «católicos de café» ou católicos light, que não ligam aos anacronismos que este Papa quer impor, isto é, um regresso aos gloriosos tempos da cristandade medieval.

Imposições claramente expressas na sua primeira encíclica que, como alertei na altura, depois de arrumar na primeira parte a ortodoxia da res privada, explicita na segunda parte o que tem sido tema do seu papado, a denúncia da laicidade e das dissidências «sociais» dos católicos. Segunda parte da encíclica que versa sobre como deve ser ordenada a res publica, a polis, mais concretamente, quais devem ser os papéis do Estado e da Igreja na sociedade.

A guerra anti-modernidade do Vaticano não encontra assim eco nos católicos europeus, para grande consternação de Ratzinger. Mas é partilhada por todos os dignitários da concorrência, inclusive a islâmica, que tentam manter os seus fiéis longe das tentações da modernidade e elegem igualmente a laicidade e a ciência como os grandes inimigos da fé. Mas os dignitários islâmicos têm mais sucesso nesta guerra porque associam a modernidade ao execrado Ocidente e conseguem disfarçar o seu receio de perderem clientela com a suposta luta contra a «ocidentalização».

Ou seja, Ratzinger tem poucas hipóteses de arregimentar soldados para esta guerra anti-modernidade, de encontrar uma causa para unir os europeus sob o estandarte do Vaticano. Resta-lhe apenas a fórmula clássica, inventar um inimigo da civilização ocidental, o ideólogo do mal, desumanizá-lo e exponenciar o ódio contra esse inimigo, transformando-o num sentimento europeísta que deixe em segundo plano tudo o resto e esconda o seu real propósito obscurantista.

(continua)
17 de Setembro, 2006 Palmira Silva

Bento XVI lamenta reacções islâmicas

Na oração do Angelus de há duas horas em Castel Gandolfo, Bento XVI disse lamentar a reacção dos muçulmanos à palestra que proferiu na semana passada em Regensburg, e frisou que o texto que citou não reflecte a sua opinião pessoal:

«Nesta altura, gostaria de acrescentar que lamento profundamente as reacções em alguns países em relação a algumas passagens do meu discurso na universidade de Regensburg, que foram consideradas ofensivas à sensibilidade dos muçulmanos.

Na verdade, tratava-se de uma citação de um texto medieval, que não expressa de forma alguma o meu pensamento pessoal.

Ontem, o cardeal secretário de Estado publicou um comunicado neste sentido no qual explicou o verdadeiro significado das minhas palavras.

Espero que isto sirva para apaziguar os corações e para esclarecer o verdadeiro significado da minha apresentação, que na sua totalidade foi e é um convite ao diálogo franco e sincero, com grande respeito mútuo».

Ratzinger não pediu desculpas pela palestra, como foi exigido pelos líderes e dignitários islâmicos, mas aparentemente este discurso é suficiente para apaziguar pelo menos alguns ânimos islâmicos…

17 de Setembro, 2006 Palmira Silva

Bento XVI e a palestra de Regensburg III

Os posts anteriores sobre a polémica palestra de Raztinger só abordaram três parágrafos em que este fala do Islão. Três parágrafos que, mais uma vez, comprovaram o oposto do que pretendem os dignitários e dirigentes islâmicos, como o porta-voz do Governo iraquiano, Ali Al Dabagh, que afirma mostrar o discurso de Ratzinger que este «não entende bem as doutrinas do Islão, que defendem a tolerância e a paz» . Na realidade, é insustentável afirmar que o Islão é uma religião de tolerância e paz no mesmo discurso em que se apela para que cesse a violência contra cristãos, represália «pacífica» às palavras de Bento XVI!

As reacções da comunidade islâmica, mais uma vez negando que o Islão é uma religião de tolerância e paz – que subiram de tom, apesar das declarações do papa, a tal ponto que a segurança no Vaticano foi reforçada – e a solidariedade que Ratzinger nos merece por mais esta confirmação da barbaridade do fundamentalismo islâmico, nomeadamente a ameaça de ataque ao Vaticano e a Roma pelo grupo armado iraquiano, Jaiech al-Moudjahidine, e pela al Qaeda, não podem, no entanto, fazer esquecer o ataque à laicidade, que ocupou a maior parte do tempo da dita palestra. Ataque resumido no seguinte excerto:

«No Ocidente predomina a opinião de que só o positivismo e as filosofias derivadas dele são universais. As culturas profundamente religiosas vêem nessa exclusão de Deus um ataque a suas convicções mais íntimas. Uma razão que, diante do Divino, se torna surda e rejeita a religião, é incapaz de se integrar ao diálogo das culturas».

Assim, o discurso explora os medos da actualidade europeia e passa a mensagem que a laicidade e a prevalência da razão em relação à fé deixa a Europa incapaz de responder à ameaça islâmica, ameaça bem evidente nesta resposta completamente acéfala da comunidade islâmica.

Resposta à ameaça islâmica que reside simplesmente em mostrar que o cristianismo é melhor que o islamismo. A incapacidade de resistir a um Islão, que segundo o Without Roots: The West, Relativism, Christianity, Islam declarou e conduz uma guerra ao Ocidente, é ditada pela abominável laicidade que impede os europeus de assumirem e afirmarem a superioridade do cristianismo!

Ou seja, este discurso foi apenas um mui hábil ataque à secularização e especialmente à ciência ateia – a razão que se ocupa apenas do mundo natural e para a qual a hipótese de consideração de qualquer factor «sobrenatural» é desnecessária e absurda – que o Papa considera ser a causa da secularização da Europa.

Ou seja ainda, o Papa pretende falaciosamente que são a secularização da Europa e a prevalência do pensamento científico as causas últimas do terrorismo islâmico, já que os muçulmanos teriam «mais respeito» pelos ocidentais se estes últimos deixassem a «fé» permear todos os aspectos da respectiva vida pública, nomeadamente do Direito, ou seja, se o Ocidente emulasse, noutro sistema operativo, o cristianismo flavour catolicismo, a promiscuidade religião-Estado dos países islâmicos.

Aliás a mesma posição do arcebispo de York, que num discurso recente exortou os cristãos britânicos a encararem os muçulmanos como aliados na guerra contra o secularismo, afirmando que os muçulmanos não se sentiam «ofendidos» pelo cristianismo mas sim por um estado secular, por uma «sociedade humanista sem Deus».

Afirmando ainda que:

«A violência dos que cometem actos de terror é alimentada não pelo choque de civilizações ou religiões mas sim pela falta de religião e pelo insulto a Deus que a descrença ocidental representa». Em linha com Ratzinger no ataque à ciência e à predominância da razão em relação à fé nas sociedades ocidentais o dignitário anglicano afirmou ainda que «O conhecimento por amor ao conhecimento tornou-se um poder de destruição».

Que tal não é verdade foi confirmado recentemente por uma sondagem da Gallup, realizada em 10 países muçulmanos – Marrocos, Egipto, Líbano, Jordânia, Turquia, Arábia Saudita, Irão, Paquistão, Bangladesh e Indonesia. E é igualmente confirmado se pensarmos que os Estados Unidos sob a administração Bush deixam de facto o cristianismo permear todos os aspectos da vida pública e no entanto não me parece que o respeito do mundo muçulmano em relação aos EUA tenha aumentado nos últimos tempos. Assim como não me parece respeito pelo Papa as recentes ameças de morte por parte de alguns fanáticos islâmicos ou a sua designação como «o macaco do Vaticano».

Na realidade, a única forma de ultrapassar a actual crise é a defesa intransigente da laicidade e dos direitos humanos! Não é o retorno à cristandade, a supremacia da religião sobre todos os aspectos da vida, isto é, ao fundamentalismo cristão, como pretende Ratzinger – que decretou a falência dos valores de tolerância e respeito pelos direitos do homem, que considera os responsáveis pela crise actual ! Combater o fundamentalismo islâmico com o fundamentalismo cristão não é opção se quisermos preservar a nossa sociedade democrática e livre!

O fundamentalismo islâmico é obviamente uma ameaça que urge combater mais eficazmente do que tem sido até agora e que não deve ser minimizada ou desculpada, e não é de forma alguma essa a minha intenção, bem pelo contrário, mas combatê-lo com o fundamentalismo cristão é receita certa para o desastre!