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Categoria: Não categorizado

19 de Outubro, 2010 Luís Grave Rodrigues

A diferença entre um estadista e um badameco

 

É sabido que Francisco Sá Carneiro estava em processo de divórcio mas que vivia maritalmente com Snu Abecassis.
Mesmo enquanto primeiro-ministro, e até em cerimónias oficiais, sempre assumiu frontalmente a relação com a mulher que considerava então como sua família, e que com ele morreu no trágico acidente de Camarate.
Ninguém nunca se atreveu a questionar sequer essa relação!

Também é sabido que quando Jorge Sampaio era Presidente da República lhe foi discretamente sugerido por ocasião de uma projectada visita oficial ao Vaticano que não se fizesse acompanhar de sua mulher, porque não era com ela casado pela Igreja, mas tão só civilmente.
A resposta de Jorge Sampaio só podia de facto ser uma: preferia então cancelar a visita a ceder a tão ignóbil sugestão.
E o Papa não teve outro remédio que não engolir em seco e recebê-los oficialmente a ambos.

Agora chegou a vez do Presidente francês Nicolas Sarkozy.
Fontes oficiais do Vaticano confirmaram o envio de uma mensagem relacionada com a visita do Sarkozy ao Papa Bento XVI, dizendo que a primeira-dama, Carla Bruni, “não é bem-vinda no Vaticano”, porque nos seus tempos de modelo chegou a posar nua.
Nicolas Sarkozy obedeceu à proibição do Papa e no início de Outubro deslocou-se sozinho ao Vaticano para conversar com Bento XVI deixando a sua mulher sozinha no Eliseu.

Não há dúvida:
Não há mesmo nada melhor do que a religião para transformar um homem num monte de merda.

 

17 de Outubro, 2010 Ludwig Krippahl

Treta da semana: esperteza vegetal

Um artigo na Science, em Agosto, explica como as lagartas da traça Manduca sexta traem aos seus predadores a sua presença na planta do tabaco. Um composto na saliva da lagarta, ainda não identificado, catalisa a isomerização de compostos voláteis libertos pela planta danificada. O odor característico resultante desta reacção química atrai insectos do género Geocoris, que se alimentam destas lagartas.

Apesar do título do artigo ser descritivo e rigoroso, «Insectos traem-se na natureza aos predadores pela isomerização rápida de compostos voláteis de folha verde»(1), a notícia no DN Ciência baralha uma data de coisas. Além de omitir a referência ao original, por alguma razão prática corrente neste tipo de notícia*, e escrever mal o nome do segundo autor, dificultando a pesquisa, descreve que «as folhas das plantas do tabaco produzem um químico capaz de atrair insectos predadores que se alimentam dos seus atacantes – as lagartas.»(2)

O Mats, provavelmente lendo só a notícia no DN, deturpa ainda mais o artigo: «Impressionante como a planta descobriu por si só qual o químico certo para atrair os predadores certos para matar este tipo específico de lagarta.» E, com a típica humildade com que costuma abordar estas coisas, diz ser «Mais um sistema biológico que não pode ser explicado como o resultado de um lento acumular de mutações favoráveis.»(3) Na verdade, trata-se apenas de mais um de muitos sistemas e processos que o Mats não compreende.

Como os autores descrevem no seu artigo, é normal que as plantas libertem compostos voláteis quando são danificadas, compostos esses que frequentemente atraem predadores. Mas é errado ver isto como esperteza da planta. Devemos começar pela perspectiva do predador. Se os Geocoris fossem completamente azelhas, não sofriam muito com isso. O resultado seria uma proliferação tal de lagartas que, mesmo às cegas, haviam de encontrar que comer. Mas as variantes genéticas dos Geocoris competem entre si por um lugar na geração seguinte, e um insecto mais eficiente a procurar presas terá mais tempo e energia disponíveis para se reproduzir. Assim, a selecção natural favorece as variantes mais capazes de detectar as lagartas, desde que essa capacidade não seja demasiado dispendiosa.

Ao alterar os compostos voláteis libertados pela planta, as lagartas criam uma pressão selectiva nos Geocoris, favorecendo o aumento de sensibilidade a essa alteração. Isto não exige inteligência de nenhum dos intervenientes, e nem sequer é mérito da planta.

É claro que, se os predadores forem especialmente sensíveis a uma certa mistura de substâncias, isto cria uma pressão selectiva nas plantas. As variantes genéticas que levarem a planta a libertar mais dessas substâncias e, portanto, a atrair mais predadores, serão favorecidas com o passar das gerações. Por isso algumas plantas libertam odores específicos em resposta aos insectos herbívoros, atraindo outros que deles se alimentam. Isto também consequência da evolução por selecção natural. Mas, neste caso, nem sequer era esse o ponto do artigo. A ideia principal, como estava claro no título, é que são as próprias lagartas que se tramam pela alteração química dos compostos voláteis libertados pela planta. Se tivesse sido de propósito, tinha sido uma argolada das lagartas e não uma esperteza da planta.

Pior ainda, segundo a doutrina do Mats este sistema foi criado por um deus inteligente. O que não faz sentido nenhum. Criar uma lagarta que só come folhas e, ao mesmo tempo, um insecto que come a lagarta guiado pelo cheiro que ela liberta ao comer folhas não sugere inteligência. Se propositado, sugere apenas o ócio cruel da criança que se entretém a arrancar as asas às moscas. Mas, é claro, o Mats não sugere esta explicação. Nem esta, nem nenhuma. Alega apenas que é impossível explicar, como se a sua ignorância fosse a medida de todas as coisas. Porque esclarecer seria contrário ao seu objectivo.

O criacionismo, e a religião em geral, é uma ferramenta política. Serve para controlar as pessoas. E é mais fácil manipular quem anda espantado, às escuras e só com a fé para o guiar do que quem compreende as coisas, pensa por si e tem ideias claras. Por isso, o objectivo das doutrinas religiosas não é esclarecer. É tapar os horizontes com mistérios insondáveis, obscurecer ideias com conceitos confusos e convencer que as verdades profundas são contraditórias e impossíveis de compreender. Deus é bom e castiga, é transcendente e imanente, é três e é um, é divino e humano, age sem intervir. E é inteligente e bondoso mas faz as lagartas serem comidas pelo cheiro que deitam quando comem.

* O que é uma falta de consideração pelos autores originais e de uma chatice para quem quiser desembrulhar a confusão do jornalista.

1- Silke Allmann and Ian T. Baldwin, Insects Betray Themselves in Nature to Predators by Rapid Isomerization of Green Leaf Volatiles
2- DN Ciência, Planta do tabaco liberta químico que atrai predadores de lagartas
3- Mats, Planta do tabaco liberta químico que atrai predadores de lagartas

Também no Que Treta!

15 de Outubro, 2010 Ludwig Krippahl

O Pai Natal não existe.

Numa conversa que é pena ficar escondida nos comentários, o Alfredo Dinis escreveu que «O Pai Natal não é um ser sobrenatural, é uma fantasia. Todos nós sabemos isso. Não vale a pena baralhar mais o que de si já se presta a confusões.»(1) Concordo que o Pai Natal não existe. Mas é precisamente por isso que é um bom ponto de partida. Este exemplo dá-nos uma base consensual para avaliar a hipótese de um ser sobrenatural existir. Mas, primeiro, um aparte.

Escreve também o Alfredo que «Se a ciência se pronunciar sobre a existência histórica da figura humana de Cristo, não está a pronunciar-se sobre o sobrenatural. […] A ciência permanece no seu domínio.» No entanto, todo o edifício conceptual e dogmático do cristianismo depende de certos acontecimentos históricos. Muitos historiadores pensam hoje que Jesus existiu e foi mesmo crucificado pelos romanos mas, como qualquer conclusão científica, este resultado é provisório. Talvez se descubra que Jesus morreu de morte natural e a crucificação é só crucificção. Ou que o crucificado foi Judas e contaram mal a história. Não defendo que tenha sido assim, mas é possível que um resultado científico venha contradizer o fundamento do cristianismo. Por isso, mesmo sem o problema do sobrenatural, é errado dizer que o cristianismo está num domínio separado da ciência.

Voltando ao Pai Natal, consideremos esta pequena amostra de infinitas hipóteses que poderíamos considerar:

A: O Pai Natal é um ser sobrenatural, transcendente e imanente, cuja existência não pode ser nem comprovada nem refutada por qualquer observação.

B: O Pai Natal é um personagem fictício.

A hipótese A não pode ser testada. Saliento que não escrevo “não pode ser testada pela ciência”, porque o problema não é da ciência. É da hipótese. É impossível testar essa hipótese. Ainda assim, a ciência não se abstém de a avaliar. Sendo impossível de testar, tanto faz se é verdadeira ou falsa. Então, a ciência rejeita-a por ser uma hipótese inútil. Mais importante ainda, a ciência avalia hipóteses confrontando várias alternativas com os dados. É assim que se determina a mais plausível. Que, neste caso, é a hipótese B. É testável. Dela prevê-se que alguém tenha a capacidade de criar personagens fictícios e que haverá outros exemplos disso, e são ambas previsões bem suportadas pelas evidências.

Se alguém não gostar do Pai Natal não faz mal. Podemos substitui-lo pelo que quisermos que a hipótese A nunca será a mais plausível. Porque se tivermos evidências da existência do ser em causa, como temos de árvores ou cangurus, então a hipótese A claramente não serve. Teremos de optar por uma terceira hipótese que melhor corresponda às evidências. E sempre que se trate de algo para o qual não haja quaisquer evidências, a hipótese B será a mais plausível. Nunca haverá um caso em que vamos preferir uma hipótese como a hipótese A, porque uma hipótese que não se pode pôr à prova é uma hipótese que nunca dará razões para a considerar verdadeira.

É compreensível que queiram proteger esta religião do exame científico. A ciência é exímia a detectar erros e a corrigi-los, e isso só dá jeito se o rei levar alguma coisa vestida. Mas é um desejo fútil. O cristianismo foi inventado num tempo mais ingénuo, antes de começarem a evitar tudo o que fosse refutável, e assenta em hipóteses históricas susceptíveis de se revelarem falsas. Além disso, a ciência rejeita as hipóteses que sejam impossíveis de testar. Não as ignora calada. Por um lado, porque esse é o defeito mais grave que uma hipótese pode ter. Uma hipótese errada sempre nos ensina alguma coisa; uma que nem se pode pôr à prova não serve para nada. Por outro lado, porque a ciência avalia hipóteses considerando alternativas, e nenhuma hipótese impossível de testar pode ser mais plausível que as alternativas. Por exemplo, que a alternativa de considerar que essa hipótese é treta.

1-Que Treta!, Equívocos, parte 10. Agora mais radical

Em simultâneo no Que Treta!

14 de Outubro, 2010 Ludwig Krippahl

Conhecimento, parte 1. Origens.

O Jairo Entrecosto pediu-me que respondesse a este alegado dilema: «se um conhecimento falha por não ser testado cientificamente, o método cientifico seria inválido, já que ele não se valida cientificamente a si próprio.» Ou seja, o conhecimento não pode ser só científico porque tem de haver algo fora da ciência que a valide. Esta ideia faz parte da receita para defender que é a crença no deus cristão que justifica a ciência, por ser um deus racional criador de um universo compreensível, e que foi o cristianismo que criou a ciência moderna. Junta-se umas pitadas de transcendente, um metafísico ou dois, fé e revelação que baste, e marina-se tudo em verdades absolutas e outras tretas. Para resolver um problema que nem sequer existe. O que valida a ciência é o mesmo método que a ciência segue. Experimenta-se e, se funciona, está validado. Mas para desfazer esta confusão tenho de começar do início.

Há dois milénios e meio, uns gregos perceberam que contar histórias com deuses e ninfas tem piada mas não esclarece nada. Então desataram a filosofar. Que é como quem diz, a pensar para encontrar respostas em vez de julgar que é tudo um mistério insondável da vontade divina. Foi uma ideia brilhante. Mostrou que, pensando, conseguimos abrir caminho em problemas tão diversos como o que é o bem, de que são feitas as estrelas, que deduções são válidas ou o que faz crescer os dentes. E filosofaram sobre tudo; dos átomos à virtude e da geometria à política. O que mostra que o conhecimento é um todo coerente e não é um molho de crenças disjuntas. À maior parte do que filosofaram já nem chamamos filosofia. Chamamos matemática, lógica, biologia, astronomia. Mas é tudo conhecimento. Ou, em latim, scientia.

É verdade que, no geral, o sucesso da filosofia grega foi modesto. Focavam demais o raciocínio sem procurar dados onde o fundamentar. Aristóteles, um dos melhores, chegou até a explicar porque é que os homens têm mais dentes do que as mulheres. Além da explicação ser pouco convincente, «os homens têm mais sangue e calor»(2), se tivesse contado primeiro veria que o número de dentes é o mesmo. Talvez tenha sido um problema cultural. Talvez tenha sido a falta de tecnologia; sem instrumentos de detecção, medição e registo, sem sequer um relógio decente, é difícil obter dados fiáveis. Ou talvez o enorme sucesso dos sistemas formais, como a matemática e a lógica, lhes fizesse julgar que era só preciso pensar. É uma ilusão que ainda hoje engana muitos.

Mas essa fica para outro post. Neste, salto já o império de Alexandre, os romanos, a China, e a conquista muçulmana, apontando só que havia mais progresso quando se conseguia organizar uma data de gente em sociedades dinâmicas. E boa parte do progresso se perdia quando se fragmentava tudo em comunidades estagnadas. Na Europa, o colapso do império romano levou à pasmaceira da Idade Média. Mil e tal anos praticamente sem nada de jeito.

Há quem diga que não foi assim tão mau mas, sinceramente, mesmo que não tenha sido tão, foi bastante. Enaltecendo o progresso medieval, o Alfredo Dinis e o João Paiva escrevem que «São impressionantes, por exemplo, os desenvolvimentos a nível de linguagem. A língua portuguesa (e muitas outras europeias) nasceu e cresceu, no seu essencial, durante a Idade Média»(3). Mas isto não foi “desenvolvimento” nenhum. Ninguém se pôs a inventar o português, o castelhano e o francês porque achou que dariam jeito. Pelo contrário. A fragmentação do latim foi consequência da perda de contacto entre estas populações depois da queda do Império Romano. Vê-se bem como terá sido a Idade Média, se é este o exemplo de inovação

Além do isolamento e do provincialismo, agravados pelo sistema feudal, e do conservadorismo da religião dominante, que guardava a “ordem divina” num universo prestes a acabar quando Cristo regressasse, a Idade Média sofreu também do problema de quem estava no poder ter todo o interesse em manter o status quo. O povo fica em baixo, o clero e a nobreza em cima, e ninguém abana o barco.

A ciência moderna deflagrou só com os descobrimentos e toda a revolução dessa época. A tecnologia que permitia a navegação dava também instrumentos para testar hipóteses. Os barcos fizeram mais ainda que as estradas dos romanos, trazendo ideias, cultura e informação de todo o mundo. Surgiu a burguesia, cujo poder dependia de inovar em vez de manter tudo na mesma. E a teoria começou a ter aplicação prática. Para fazer lentes, canhões, barcos e fortalezas. Mapas, planos de construção, e até tabelas de logaritmos, passaram a ser segredos de Estado. Foi esse conjunto de factores sociais, tecnológicos, económicos, e também o próprio conhecimento acumulado, que criou a ciência como conhecemos hoje.

A ciência não vem do cristianismo nem do menino Jesus. Já desde os filósofos gregos que sabemos que especular sobre deuses não esclarece nada. O que nos deu a ciência foi o mesmo processo que nos deu todo o conhecimento. Testar o que julgamos com aquilo que observamos. O que custou foi perceber que era isso que fazíamos sempre que aprendíamos algo novo. Foi preciso aprender muita coisa até perceber que mais nada serve para obter conhecimento. Não adianta pensar sem observar, nem esperar por revelações divinas, nem perder tempo com misticismos, transcendências e outros disparates. Até a lógica e a matemática, que pareciam dar vitória à razão pura, precisam de um fundamento empírico. Mas isso fica para o próximo episódio.

1- Jairo Entrecosto, Ludwig Krippahl e Ciência
2- The Ex-Classics Web Site, Aristóteles, Of the Teeth
3- Alfredo Dinis e João Paiva. Educação, Ciência e Religião. Gradiva, 2010 (p. 58)

Originalmente no Que Treta!

12 de Outubro, 2010 Ludwig Krippahl

Equívocos, parte 10. Agora mais radical.

Neste episódio, o Alfredo Dinis dirige a sua crítica ao “ateísmo radical”, mas não explica porque será este mais radical do que das outras nove vezes. O décimo equívoco é «A existência de Deus é uma hipótese cientifica e pode, por conseguinte, ser objecto da investigação dos cientistas, a qual poderá chegar a uma posição conclusiva sobre a existência ou não de Deus.» (1)

Realmente, há aqui vários equívocos. Primeiro, não se trata de uma hipótese acerca da existência de Deus. São muitas. Segundo, nem todas são científicas, porque uma hipótese é científica se, e só se, houver possibilidade de determinar se é verdadeira ou falsa. Muitas nem isso permitem. Terceiro, só uma hipótese que seja científica é que vale a pena considerar porque, se não o for, então não faz diferença se é verdadeira ou falsa. Se fizesse diferença podia ser testada e seria científica. Finalmente, e por isso, os crentes acabam por defender hipóteses científicas acerca dos seus deuses. Porque não interessa ter deuses irrelevantes, têm de propor deuses que façam alguma coisa que se veja.

Para apoiar a sua alegação, o Alfredo cita a Academia Nacional de Ciências dos EUA (NAS). «A ciência nada tem a dizer acerca do sobrenatural. A ciência mantém-se neutra acerca da existência ou não de Deus.» É pouco persuasivo. O financiamento da NAS depende da opinião pública, e 90% dos eleitores nos EUA acredita num deus pessoal. A maioria até acredita que a Terra tem dez mil anos, que foi criada numa semana e que descendemos todos de Adão e Eva. Cá em Portugal podemos dar-nos ao luxo, eu e o Alfredo, de dizer que isso são disparates. Mas num país que elege o Bush (duas vezes!) é preciso muito mais cuidado. Mais revelador do conflito entre ciência e religião é que, nesse país onde só um décimo das pessoas não acredita num deus pessoal, entre os membros da NAS – os cientistas mais conceituados dos EUA – 72% são ateus, 20% agnósticos e apenas 8% acreditam que existe um deus (2). Esta discrepância sugere fortemente que a ciência não é neutra acerca das religiões.

Mas não é preciso apelar à opinião popular para compreender que «A ciência nada tem a dizer acerca do sobrenatural» é um erro. Basta ver que, se assim fosse, a ciência nada poderia dizer acerca da fada Sininho, da astrologia, da cura por regressão às vidas passadas, dos videntes, dos fantasmas e de qualquer outra treta que se rotulasse “sobrenatural”. Esta ideia, obviamente falsa, resulta de um equívoco. Quando se diz que uma hipótese que não seja testável não é científica não se quer dizer que a ciência tem de ficar calada. Quer-se dizer que a ciência não a pode aceitar. Mas pode, e deve, rejeitá-la pelo disparate que é.

Devo mencionar duas objecções que os crentes levantam à rejeição científica das suas hipóteses. Uma é que as suas hipóteses acerca do sobrenatural são excepção, mesmo sendo impossíveis de testar como as outras que o crente rejeita. Parece-me seguro ignorar esta alegação porque, além de nunca ser devidamente justificada, nem os crentes conseguem decidir entre si quais as hipóteses que são excepção e quais a ciência pode rejeitar. Quando o Alfredo Dinis e o Jónatas Machado encontrarem um método para concordar nisto, logo vejo se há aí algo que mereça consideração. A outra é alegar, também do nada, que os objectos da sua crença são diferentes dos objectos de estudo da ciência. É falso. Os objectos em causa são, em todos os casos, as hipóteses. Seja na filosofia, na teologia, na ciência ou na fé, aquilo que se faz é decidir se acreditamos ou não na verdade de hipóteses.

Além disso, muitas das hipóteses que os crentes defendem são testáveis. Este é outro equívoco do Alfredo, assumindo que não é uma omissão propositada. Ele próprio defende, por crença religiosa, hipóteses científicas. Defende que Maria nunca teve relações sexuais, que Jesus esteve morto e ressuscitou, que há partes do nosso ser que sobrevivem à destruição do corpo, que o seu deus criou o universo, cura pessoas, e assim por diante. E como estas hipóteses são contrárias ao que os dados sugerem, o mais razoável é assumir que são falsas enquanto não houver evidências concretas que as apoiem.

O Alfredo gostaria que a ciência não levantasse dificuldades às religiões. Ou, pelo menos, que não as levantasse à sua; se refutar as outras, tanto melhor. Mas a ciência avança pela inferência à melhor explicação. E a melhor explicação para as religiões, incluindo a do Alfredo, é que são fenómenos sociais e psicológicos. Parafraseando Laplace, não precisamos da hipótese de existir algum deus, seja o do Alfredo, seja outro qualquer. É por isso que há uma correlação inversa entre a educação científica e a religiosidade. É por isso que a fracção de ateus é maior entre os cientistas, e tanto maior quanto mais conceituados são. E é por isso que, ao fim de séculos a apregoar a teologia como a rainha das ciências, hoje só querem é separá-las. Não porque a ciência não tenha nada a dizer acerca destas hipóteses mas porque não gostam do que ela diz.

1- Alfredo Dinis, Grandes equívocos do ateísmo radical contemporâneo
2- Wikipedia, Relationship between religion and science
Em simultâneo no Que Treta!

7 de Outubro, 2010 Luís Grave Rodrigues

A Moral da Idade do Bronze

  

O Prof. Robert Edwards foi galardoado com o Prémio Nobel da Medicina pelos seus trabalhos no domínio das Ciências da Reprodução.

No ano de 1978 Robert Edwards (juntamente com Patrick Steptoe, que morreu em 1988) realizou a sua primeira fertilização in vitro e assim nasceu Louise Brown, que se tornou um símbolo do combate científico ao fenómeno da infertilidade.

Desde então, através desta técnica já nasceram mais de 4 milhões de seres humanos.

Não poderia ser mais merecido este prémio Nobel.

E, se pensarmos nos milhões de famílias e de casais inférteis que de outra maneira não poderiam viver a alegria e a felicidade de ter um filho, dir-se-ia até que ninguém ousaria discordar desta distinção.

Mas não!

A Igreja Católica já criticou a atribuição deste prémio Nobel, que considerou “despropositado”.

De facto, desde logo o Catecismo da Igreja Católica considera (§2377) que as técnicas de inseminação e fecundação artificial são “moralmente inaceitáveis”.

Ao que parece porque «dissociam o acto sexual do acto procriador».

Nem é preciso imaginar qual seria a reacção da Igreja Católica e de tantos e indignados “bons católicos” se de repente a Comissão Nobel desatasse a criticar e a considerar despropositados e imorais os critérios a que o Vaticano recorre para canonizar tanto facínora que andou por aí ou a comentar a protecção que das mais altas instâncias têm merecido tantos padres pedófilos.

Mas o que é absolutamente lamentável é que esta Igreja Católica do século XXI continue a ser regida por meia dúzia de lorpas fanáticos, desde logo a começar pelo facínora do próprio Papa Bento XVI, que persistem em querer determinar a vida das pessoas através de critérios de moralidade estabelecidos por pastores analfabetos da Idade do Bronze.

6 de Outubro, 2010 Carlos Esperança

Quando era criança…

Por

Abraão Loureiro

Quando era criança vivia carregado de pesadelos e culpas. Pois a minha família, exceptuando o meu pai, era de formação cristã e era nesse contexto que se figuravam os valores morais e sociais.
Ora isto ensombrou a minha vida até cerca dos 10 anos de idade.
Frequentei a catequese, davam-me santinhos (gravuras tipo flyer) como recompensa de bom menino, aprendia as orações (com dificuldade) e não gostava nada de estar enfiado na igreja sempre ouvindo a mesma retórica cansativa.
Como sempre fui bom de ouvido, parecia-me que as coisas não batiam certinho. Não fomos nunca bombardeados com a leitura da bíblia mas sempre nos diziam coisas que lá estavam escritas do género “que deus disse isto, mais e mais que deus disse aquilo, o código de honra do bom cristão com o nome de OS DEZ MANDAMENTOS e mais aquele ror de coisas que qualquer português foi obrigado a ouvir.

Por achar que tudo aquilo era bastante deprimente, uma bela tarde resolvi sair para brincar no jardim que ladeava a igreja. Azar o meu. Meu pai que nem estava morando na minha vila, não sei porque carga de água apareceu a meio da semana, passou na rua e ao ver-me chamou-me. Fiquei feliz por ver o meu pai mas tive azar mesmo. Depois de me beijar perguntou-me: que andas aqui fora a fazer? Respondi que não gostava de assistir à catequese nem acreditava no que diziam e vim para o jardim brincar. Pois é! Levei uma palmada na cara e mandou-me entrar na igreja imediatamente alegando que na catequese estaria melhor do que na rua porque lá dentro não me ensinavam a ser mal educado nem a roubar. Que quando eu fosse grande e tivesse cabeça suficiente para saber o que está certo e errado então eu seria livre de fazer as minhas escolhas.
Bem, uma atitude tomada por um homem ateu, agora imaginem o que seria se ele fosse crente. Se tivesse acontecido com a minha avó era certo que quando chegasse em casa ela não se ficaria por um chapadinha.

Continuando. Eu não vivia junto com o meu pai por uma razão muito penosa. É que “deus” roubou-me a minha mãe quando eu tinha 6 anos de idade e durante algum tempo vivi com os meus avós maternos. Todos me diziam que ela estava no céu porque deus a chamou e que ela estava sempre a olhar por mim para me proteger de tudo. Infinitas vezes dirigi os olhos ao céu de dia e de noite em busca da minha tão saudosa mãe sem nunca vislumbrar um esboço da sua figura. Deus nunca compreendeu o quanto sofri nem nunca contou as lágrimas que chorei. Não era justo haver um ser sobrenatural tão bom roubar-me quem me amava.

A TUBERCULOSE, ainda não tinha cura e foram muito poucos os que conseguiram sobreviver. Se sobreviviam era MILAGRE se morriam era “deus” que chamava os justos. Os primatas das sotainas tinham resposta certeira para tudo, eram os SÁBIOS mas faltou-lhes sabedoria para raciocinar e a vontade de trabalhar para descobrir o remédio para a cura. Tempo não lhes faltou.

Na escola secundária éramos dois os que rejeitávamos as aulas de religião e moral, eu por não acreditar e o meu colega Marcelino por pertencer à religião Pentecostes. Tanto um como o outro, no horário dessa disciplina, saíamos para a rua mesmo correndo o risco de falta registada. Na verdade aquele padre era um gajo porreiro, mandava uns tantos à nossa procura para nos dizerem que ele não começava a aula sem nós estarmos presentes. Isso causava peso na nossa consciência e acabávamos por ir. Ele sempre nos dizia, vocês podem acreditar ou não mas eu tenho de dar a aula para a turma completa. Salvo raras intervenções nossas, cada um com a sua opinião bem diferente, esta aula era a chamada SECA. Há que dizer também que este padre era ainda jovem e brincalhão. Só ficou chateado uma vez comigo porque contei a anedota do milagre dos pães. Disse-me apenas que não me autorizava mais a contar anedotas contra deus.

Não foi por raiva que virei as costas à religião mas sim porque tive liberdade de pensamento e discernimento para interpretar o que ouvia daqui e dali. Fazia comparações e pensava nas histórias da bíblia. Achava absurdas as escrituras ditas sagradas. Fazia contas de cabeça e os resultados eram sempre os mesmos: Validade nula.

Para quem nasce e cresce no seio de uma família ateia e aprende a viver com a realidade em vez da irrealidade, a vida é simplesmente SIMPLES. Mas para quem tem de se libertar das garras de uma educação baseada em crença, para muitos a coisa é DIFÍCIL.

Caro crente, alguma vez se interrogou se o seu rebento está seguindo a mesma estrada que a sua?
Caso ele se interrogue sobre a existência de deus numa primeira fase, qual a atitude que vai ter com ele?
Se ele um dia lhe disser: Pai, desculpa mas preciso de te dizer que não acredito em deus e não quero frequentar cultos nem quero casar pela igreja.
Que atitude tomará em seguida?

Com respeito por todos, o meu abraço.

27 de Setembro, 2010 Carlos Esperança

Diário Ateísta

Acabou de acumular 1.500.000 visitas

Obrigado aos colaboradores e aos leitores. É um trabalho de anos em prol do livre-pensamento e na luta contra o obscurantismo.

Nem sempre terão sido melhores os caminhos mas o esforço continuará para que cada um possa ter a crença, descrença ou anti-crença que quiser.

É a pensar que aprendemos a viver de pé.

24 de Setembro, 2010 Carlos Esperança

A Procissão da Senhora da Conceição_1 (Crónica)

Para animar a fé e variar a liturgia eram frequentes as festas canónicas que esgotavam os ovos, o açúcar e a capacidade de endividamento na mercearia da aldeia.

A missa iniciava as festividades e prolongava-se com rituais e padres paramentados a rigor, vindos das paróquias vizinhas, e o sermão de um outro, contratado para enaltecer a santa e avivar a fé. O pregador subia ao púlpito e distinguia-se pela desenvoltura com que se exprimia, tanto mais apreciado quanto menos percebido, podendo confundir as virtudes e trocar os santos sem beliscar a fé nem pôr em risco os honorários.

Depois da missa a procissão percorria as ruas da aldeia com uma ou outra colcha nas janelas e mantas de farrapos garridas, que era pobre a gente e a intenção é que salvava.

À frente iam os pendões, empunhados por braços possantes que contrariavam o vento, seguidos de bandeiras com imagens pias e anjinhos, apeados, de asas derreadas. A seguir viajavam alinhados os andores do Sagrado Coração de Jesus e de alguns santos que aliviavam o mofo e o abandono na sacristia. Por último vinha a estrela da companhia, a Senhora da Conceição, de comprovada virtude e milagres ignorados.

Os padres viajavam sob o pálio, conduzindo o arcipreste a custódia que exibia a hóstia consagrada, com acólitos a empunhar as varas.

Em meados do século que foi, os cruzados gozavam ainda da estima de quem prevenia a salvação da alma e desconhecia a história das guerras religiosas. Assim, ladeando os andores, exultavam os garotos, meninos com uma faixa onde, a vermelho, se destacava a cruz e as meninas com uma touca que lhes escondia os cabelos e exibia uma cruz igual.

Depois dos padres e dos mordomos, orgulhosos dentro das opas, viajavam pelas ruas enlameadas as Irmandades. As Irmãs de Maria traziam o pescoço enfaixado com fitas azuis. Seguia-se a Irmandade do Sagrado Coração de Jesus com fitas vermelhas e, finalmente, as Almas do Purgatório com fitas roxas atrás de um estandarte que as anunciava, não fosse o diabo tomá-las como suas.

A cobrir a retaguarda a banda da Parada atacava música sacra enquanto os foguetes estalejavam no ar. A passo lento se o tempo convidava, ou mais apressados se a chuva fustigava, os crentes regressavam à igreja com deserções antecipadas a caminho de casa onde aguardavam as vitualhas.

Eram assim as procissões da minha infância percorrendo as ruas tortuosas da aldeia e os rectos caminhos da fé.