É prática comum das religiões, comum e assumida, tentar converter as pessoas. Seja a espalhar a boa nova, ganhar fiéis, prometer paraísos ou salvar almas, fazem virtude de moldar as crenças alheias. E muitos adeptos das religiões dizem que cientistas, ateus, cépticos e professores fazem o mesmo. Basicamente, que toda a gente tenta converter os outros. Mas isto confunde duas atitudes diferentes, quer nos objectivos quer nos mecanismos a que recorrem.
Quando explico porque julgo não existirem deuses tento dar razões consensuais de onde se possa chegar a essa conclusão. O objectivo disto é tornar clara a minha posição, e o seu fundamento, para que cada um avalie se tem mérito ou não. Se alguém se tornar ateu ao ler o que escrevo será porque mudou a sua própria opinião, e não porque eu o converti. Os religiosos dirão que também fazem isto, que também apresentam razões e argumentos racionais. Têm razão. Nem todos o fazem, mas admito que alguns tentam. A diferença está no que fazem para além disto. Por exemplo, na educação das crianças.
Se os meus filhos me perguntam o que eu penso das religiões, sou sincero e apresento os argumentos que julgo mais sólidos. No entanto, quando eles dizem que também são ateus como o pai, digo-lhes que aos dez anos ainda é cedo para decidirem isso, que têm ainda muito que aprender e pensar sobre o assunto antes de perceberem bem o problema e essa solução. Quando se espantaram por eu ler a Bíblia expliquei-lhes que, independentemente do aspecto religioso, é uma obra culturalmente importante. E quando começaram a fazer perguntas sobre estes assuntos comprei uns livros sobre religiões e mitologia e fui-lhes mostrando de tudo um pouco, dos deuses gregos ao islão e do cristianismo ao criacionismo dos nativos norte-americanos. Admito ser provável que, com esta abordagem, acabem ateus como o pai. Mas isso é porque nenhuma religião tem um fundamento tão sólido como o do ateísmo, e não por eu vedar aos meus filhos o acesso a opiniões contrárias à minha. O mais importante é que tenham a capacidade de encontrar a informação de que precisam e de decidirem por eles próprios.
A educação dos filhos de religiosos tende a ser diferente. Logo depois de nascer dão-lhes a religião dos pais. Crianças que nem sequer sabem falar e já são católicas, judias ou muçulmanas. Nas escolas, desde a disciplina de religião e moral até à educação sexual, o que mais preocupa as religiões é evitar que as crianças aprendam “o que não devem”, como se a ignorância selectiva fosse o mesmo que a educação. E até na universidade. Há dias, a Universidade Católica decidiu, à última hora, não contratar um professor de filosofia que já sido tinha seleccionado, notificado da selecção e a quem até já tinham atribuído o serviço docente. Apesar de ser católico, parece que tinha ideias prejudiciais para os alunos (1). Por mim, e penso que muitos ateus concordariam, a educação religiosa devia ser igual para todos e focar os factos consensuais acerca das religiões: os cristãos acreditam nisto, os muçulmanos naquilo, os budistas naqueloutro, e os ateus vivem bem sem essas coisas. Cada um depois que decidisse por si, ao longo da vida. Mas nenhuma religião aceitaria isto porque, em vez de educar as crianças, o que querem é afunilar-lhes o caminho para o curral predestinado.
A argumentação religiosa também vai muito além de razões consensuais, alegações fundamentadas e inferências válidas. Ou seja, sai do âmbito da persuasão racional. Quando um padre católico afirma saber que eu vou ter uma vida eterna depois da morte e que o criador do universo encarnou em Jesus para me salvar está a invocar uma falsa autoridade porque, em rigor, não tem como saber isto. Especula, crê, mas não sabe. Quando um cristão afirma que só acreditando em Jesus posso ser eternamente feliz mas se rejeitar o cristianismo sofrerei para sempre está a apelar a consequências (dúbias) para suportar alegações de factos. Isto são falácias, visando persuadir pelo engano, medo ou desejo em vez de pela razão.
Há uma grande diferença entre converter e conversar. Um diálogo racional pretende tornar o raciocínio tão claro quanto possível para que se possa avaliar o seu mérito e decidir, pela força das razões, se a conclusão é aceitável ou se alternativa com mais fundamento. O meio para atingir esse fim é procurando razões consensuais e abrindo caminho com inferências válidas. O objectivo da conversão é diferente. A conclusão está dada à partida, e o objectivo é operar no outro as mudanças necessárias para que adopte essa opinião. E para isso vale tudo. Pode-se começar a catequese logo na infância, para decidir pelo convertido antes que ele o possa fazer por si. Depois, filtra-se o acesso à informação para que não descubra hipóteses alternativas e incute-se o dever de acreditar mesmo contra os factos: a fé. No meio disto vai-se apelando falaciosamente para autoridades ou consequências fictícias de modo a dificultar a análise racional e deixar a parte mais emotiva cimentar a opinião.
Nas discussões em blogs, ateus e religiosos fazem fundamentalmente o mesmo. Melhor ou pior, tentam argumentar racionalmente pelas suas conclusões. Nesse contexto as alegações de infalibilidade, as ameaças ou promessas para uma vida futura e afins têm pouca relevância. Mas quando consideramos o que se passa na nossa sociedade, em geral, há uma grande diferença entre o que o ateísmo faz para expor e defender a sua posição e o que fazem as religiões para angariar e manter fiéis.
1- Porfírio Silva, Uma história pouco católica.
Também no Que Treta!
Entrevista com José António Saraiva
Não acha que todos os cidadãos devem poder beneficiar dos direitos associados ao casamento, sobretudo os direitos sucessórios?
Penso que esses direitos já estão garantidos na lei que regula as Uniões de Facto [Lei 6 e Lei 7/2001, de 11 de Maio]. “A esse respeito, conto uma história curiosa: um meu ex-colega começou a viver com uma senhora que tinha alguns bens, sem pensarem em casar. Mas a certa altura verificaram que, naquela situação, os filhos dele herdavam parte dos bens da senhora. Foram obrigados a casar, com separação de bens, para resolverem esse imbróglio e não haver heranças “cruzadas”.” Por isso, insisto: a luta dos gays pelo casamento teve objectivos puramente ideológicos.
Meu comentário que não saiu nessa página:
Antes de tudo convém referir que não sou gay.
Ora bem, se o casal que vivia em união de facto teve de casar com separação de bens para evitar que os filhos dele herdassem parte dos bens da senhora, o mesmo pode acontecer com dois homossexuais que vivam em união de facto e que tenham filhos também. E neste caso como resolver a situação sem um casamento oficial com separação de bens?
Há dias, o companheiro Luís Grave Rodrigues fazia publicar, neste mesmo espaço, uma fotografia das “Torres Gémeas“. Sobre a fotografia, a legenda “Imagine que não havia religiões”. A mensagem era óbvia, e só não a entendeu quem não quis. Mas alguns dos que a entenderam, decidiram fazer cair o Carmo e a Trindade. Designadamente, e de forma mais ou menos explícita, “aqui d’el-rei que os ateus têm a mania de generalizar, e tratam de ligar religião a terrorismo”.
Uns exagerados, estes ateus.
Convido os leitores a seguir esta ligação. Depois, podem, os do costume, continuar a berrar que religião e terrorismo são incompatíveis.
Temos por cá um certo comentador que tudo comenta mas nunca está de acordo com nada que seja publicado aqui. Não consegue concordar absolutamente com nada nem com ninguém nem sequer abster-se de escrevinhar.
Nós, ateus, somos panfletários e ressabiados, os agnósticos são imbecis, os católicos não entendem o seu Deus e por aí vai.
Ao longo de tantos anos ainda não se deu conta de que é o comentador mais vaiado pela plateia. Os crentes chamam-lhe ATEU DISFARÇADO e ele responde que não passam de TERRORISTAS.
Se nós dois fôssemos amigos do peito, há muito tempo lhe teria recomendado um psiquiatra para o ajudar a acalmar essa luta interior.
Tudo leva a crer (suposição minha) que tem um elo com o teólogo João Carreira das Neves que afirma constantemente que a bíblia não pode ser interpretada de forma literal. Pelo jeito as palavras escritas são apenas bilhetes de viagem para outras não escritas mas que são convenientes consoante a necessidade sazonal. Seria o mesmo que eu escrever um artigo calunioso contra alguém e mais tarde em tribunal o meu advogado defender que não é bem assim pois a interpretação do texto não pode ser feita de forma literal, que aquelas palavras não são calúnias mas sim elogios. Afinal em que ficamos???!!!! As palavras valem ou não valem?
Será que o livro sagrado foi escrito com frases idiomáticas? A ser assim provocou a maior confusão jamais existente pois cada língua tem a sua idiomática.
Se Christopher Hitchens é ou foi um alcoólatra não sei. E não sei porque nunca convivi com ele e também não sei porque nunca o vi ébrio nem na TV nem nos vídeos do youtube. Sei que fumava bastante porque vi em vídeos e porque vi numa entrevista onde ele mesmo afirmou que a doença poderá ter sido causada pelo excesso de fumo.
Mas o nosso comentador afirma de forma literal que o homem regularmente se embebeda. Será que temos de imaginar outras palavras?
Não se cansa de apregoar as virtudes da Santa Madre Teresa de Calcutá e do Chico de Assis. Da primeira e ao que parece, nunca pariu, não entendendo eu o porquê de ser madre (mãe). Do segundo, ele esquece de quem era filho e da vida desregrada, boémia, briguenta e bebedolas. Têm em comum que ambos trocaram de nome. Técnica também usada pelos nazis depois da derrota e da debandada pelos vários continentes.
É claro que aos olhos do nosso comentador, só Hitchens é afectado pelo efeito da bebida que lhe tolda o raciocínio.
A diferença está no criminoso que se arrependeu e abriu um negócio por conta própria para redimir os seus pecados e aumentar o seu domínio de forma legal perante a sociedade da época.
Além de tudo isto ainda padece de um outro problema grave. Não são raras as vezes que baralha anti-religião com política, mencionando ditadores sanguinários como exemplos do ateísmo. É preciso lata!
Dá para ter dó de uma pessoa assim?
O horror nunca deixa de surpreender e agrava-se quando a superstição, o tribalismo, a fé e a tradição se conjugam.
Camarões foi o nome que os portugueses deram a uma região africana a cuja costa iam em busca de escravos no tempo em que sonhavam converter o mundo à fé cristã e onde desistiram de avançar para o interior porque as orações os não poupavam à malária. Hoje é um país do centro de África, com saída para o Oceano Atlântico, a aproximar-se dos 20 milhões de habitantes.
A fé da população distribui-se pelo cristianismo (56%), crenças tribais (23%) e islão (20%), sendo outras crenças quase inexistentes nesta república presidencialista que gravita na órbita dos Estados Unidos da América e da Europa, seus parceiros quase exclusivos nas trocas comerciais.
Neste país, maioritariamente cristão, colonizado por alemães, franceses e ingleses, as tradições tribais atingem o limite da crueldade e da demência. Calcula-se que um quarto das meninas é vítima do esmagamento das mamas, para dissimular a puberdade e evitar – segundo a crença tribal – as violações e gravidezes precoces.
Com pedras quentes e outros objectos planos ardentes sobre as mamas que despontam, as mães e outras mulheres da família procedem à sua destruição convencidas de que, atrasando o crescimento dos seios das meninas, as protegem dos olhares lúbricos dos homens, as afasta das relações sexuais e, quiçá, evitem gravidezes indesejadas.
Já conhecíamos a mutilação genital feminina, com a excisão do clítoris. Sabemos agora que a mutilação mamária através de objectos ardentes e esmagamento é outra crueldade ao serviço da repressão sexual, dos preconceitos e das tradições tribais. Há que apertar e queimar com violência as maminhas das meninas púberes ou pré-púberes, às vezes durante meses de tortura, indiferentes às deformidades e à dor que causam, aos traumas psíquicos e destruição de tecidos, às queimaduras e deformidades.
Segundo a agência oficial de cooperação alemã GTZ, que denunciou esta atrocidade e luta contra ela, metade das meninas a quem despontam as maminhas antes dos nove anos são vítimas desta medonha crueldade, segundo El País, de 12/09/2011, artigo de Charo Nogueira, onde recolhi a informação relevante plasmada neste texto.
Perante esta inaudita barbaridade, comum na África Ocidental e com especial incidência nos Camarões, termino revoltado como comecei: «O horror nunca deixa de surpreender e agrava-se quando a superstição, o tribalismo, a fé e a tradição se conjugam».
O Diário de uns ateus é o blogue de uma comunidade de ateus e ateias portugueses fundadores da Associação Ateísta Portuguesa. O primeiro domínio foi o ateismo.net, que deu origem ao Diário Ateísta, um dos primeiros blogues portugueses. Hoje, este é um espaço de divulgação de opinião e comentário pessoal daqueles que aqui colaboram. Todos os textos publicados neste espaço são da exclusiva responsabilidade dos autores e não representam necessariamente as posições da Associação Ateísta Portuguesa.