FREDERICO LOURENÇO, professor da Faculdade de Letras de Coimbra e ex-professor da Faculdade de Letras de Lisboa, distinguido pelo Prémio Pessoa, especialista em Estudos Clássicos,autor da primeira tradução integral da Bíblia a partir do grego, ficcionista, ensaísta, poeta e tradutor da Odisseia e Ilíada, dois textos fundamentais da cultura ocidental trazidos por ele para a língua portuguesa, deixou-nos no Facebook esta lição importante , cuja leitura recomendo vivamente:
Jesus e a teologia da doença
O surto de epidemias e pandemias proporciona sempre um pretexto para os fundamentalistas religiosos explicarem o que está a acontecer como castigo de Deus (li hoje de manhã um texto repugnante com esse teor sobre o coronavírus). «Pecados» vários da humanidade – ou de alguns sectores dela, normalmente minorias marginalizadas – seriam supostamente a «causa» da ira de Deus, que se manifesta sob muitas formas (como a Bíblia conta), desde dilúvios a guerras (a guerra é, na Bíblia, o método preferido de Deus para castigar o Seu povo: assírios e babilónios são instrumentalizados por Deus para castigar o povo judeu pelos seus pecados).
Ao contrário, porém, do que poderá parecer (se atendermos ao que dizem os fanáticos), não há assim tantas passagens na Bíblia que nos digam explicitamente que a doença é castigo de Deus. São basicamente duas:
1. «O Senhor atingir-te-á com tísica, febre, inflamação, delírio, secura, ardência e palidez, que te perseguirão até morreres» (Deuteronómio 28:22)
2. «O Senhor feriu o menino que a mulher de Urias havia dado a David com uma doença grave» (2 Samuel 12:15).
Uma passagem muito curiosa é Isaías 3:17, onde vemos uma gradação no entendimento deste problema nas três versões do Antigo Testamento. Na versão grega da Septuaginta, lemos «O Senho rebaixará as filhas nobres de Sião». Na Vulgata, lemos «o Senhor tornará calva a cabeça das filhas de Sião». Mas no texto hebraico, o que se lê é que «o Senhor ferirá com sarna a cabeça das filhas de Sião».
Claramente, a versão grega procura apagar aqui a ideia da doença como castigo – embora sem apagar a própria noção de castigo. Diz somente que o Senhor «rebaixará» as pecadoras; mas não diz que o método de rebaixamento é a doença (alopécia, na Vulgata; ou sarna, na Bíblia Hebraica).
A passagem do livro de Samuel acima citada («O Senhor feriu o menino que a mulher de Urias havia dado a David com uma doença grave») é, para mim, das mais desagradáveis de toda a Bíblia (livro onde não há falta, como sabemos, de frases desagradáveis). Mas uma das vantagens de, no mundo cristão, o Antigo Testamento estar encadernado juntamente com o Novo é a realidade saborosa de muitas passagens do Novo Testamento contradizerem flagrantemente o Antigo.
No início do Capítulo 9 do Evangelho de João, os discípulos de Jesus (formatados pelo judaísmo em que tinham sido educados) perguntam ao Mestre, a propósito de um homem cego desde a nascença, se a razão da cegueira era o pecado dos pais ou o pecado do próprio cego (bom, atendendo a que o homem nascera cego, os discípulos ainda acharam que ele teria pecado logo à nascença! – ou ainda no ventre da mãe, quem sabe [mas seria anacrónico pensar em pecado original, visto que a teologia cristã ainda não o tinha inventado quando João escreveu o seu evangelho]).
Jesus dá uma resposta lapidar, que é um autêntico sismo teológico: «nem este homem pecou nem os pais dele» (João 9:3).
A continuação da frase de Jesus comporta depois alguns meandros de pensamento, que desaguam na frase famosa «enquanto eu estiver no mundo, eu sou a luz do mundo» (João 9:5).
Mas antes disso, houvera ocasião para uma frase que lemos diferentemente nas diferentes Bíblias; uma frase altamente expressiva e que tem tudo a ver com o momento que atravessamos.
A maioria dos manuscritos do Evangelho de João põe na boca de Jesus a frase «cumpre-ME realizar as obras de Quem me enviou». É assim que lemos na Vulgata: «me oportet operari opera eius qui misit me».
No entanto, no texto grego do Evangelho de João tal como o lemos no papiro mais antigo (e tal como ele se encontra corrigido no Codex Sinaiticus, a mais antiga Bíblia completa que nos chegou) – Jesus diz «cumpre-NOS realizar as obras de Quem me enviou».
Fica a dúvida: Jesus terá dito «cumpre-nos realizar as obras de
Quem me enviou»? Ou «cumpre-me realizar as obras de Quem me enviou?»
A Bíblia favorita dos fundamentalistas protestantes (a King James Bible) afina pelo diapasão da Vulgata católica: «cumpre-me realizar as obras de Quem me enviou». A responsabilidade de fazer o trabalho de Deus está nas mãos de Jesus.
Mas em tempos de pandemia – e sabendo nós, pela boca de Jesus, que ela não se está a propagar para castigar os pecados de ninguém – faz-nos muito mais sentido aquele pronome grego (ἡμᾶς) que tão eloquentememente muda, no papiro mais antigo, o sentido da frase.
O trabalho de Deus está (também) nas nossas mãos. ἡμᾶς δεῖ ἐργάζεσθαι τὰ ἔργα τοῦ πέμψαντός με (hēmās dei ergázesthai tá érga tou pémpsantós me). «Cumpre-NOS realizar as obras de Quem me enviou».
Frederico Lourenço
· 15 de março ·
Por
ONOFRE VARELA
O Vaticano era uma região da cidade de Roma até se transformar num país independente (a Cidade-Estado do Vaticano). Mussolini, chefe do governo italiano, assinou, com o cardeal Pietro Gasparri, em Fevereiro de 1929, o tratado de Latrão, no qual a Itália reconhece a soberania da Santa Sé sobre o Vaticano declarado Estado soberano e independente. O Papa naquele tempo era Pio XI (1922-1939), a quem coube as honras de presidir ao novo país.
No início da década de 1944 era Papa Pio XII (1939-1958), e Mussolini tinha-se transformado no fascista aliado de Hitler no domínio que o Nazismo queria ter sobre toda a Europa.
A Segunda Guerra Mundial agravava a vida de todos os europeus, o Nazismo alemão de Hitler exterminava judeus em campos de concentração e em fornos crematórios, os japoneses entraram na guerra a favor dos inimigos da Democracia, e as tropas aliadas norte-americanas, inglesas, soviéticas e australianas tentavam travar o avanço do Nazismo, ajudadas em território francês pela Resistência.
Na Península Ibérica, Espanha, com o seu ditador Francisco Franco, aliava-se a Hitler, e em Portugal o ditador Salazar fingia-se oficialmente neutro mas apoiava o nazismo alemão, importando a filosofia da mocidade hitleriana que transformou em Mocidade Portuguesa, e destituiu Aristides de Sousa Mendes de cônsul português em Bordéus, por ter ajudado judeus na fuga ao nazismo libertando-os da morte.
Perante todo este horror que se abateu sobre os povos vitimados pela guerra, cabe aqui recordar que o Papa em exercício naquele tempo, Pio XII, se revelou ser um homem sem vergonha.
No seu discurso de Natal em 1942, condenou claramente o sistema político comunista, mas não condenou Hitler, nem estes seus cúmplices: Mussolini; Pétain [marechal francês, chefe do regime de Vichi, que perseguiu judeus e a Resistência, e que depois da guerra foi preso, julgado e condenado à morte. A pena foi transformada em prisão perpétua]; padre Tiso [ditador eslovaco, perseguiu judeus, ciganos e opositores]; Pavelic [ditador croata, promoveu o genocídio de sérvios, ciganos, judeus e opositores, com a cumplicidade activa do clero croata. Diz-se que os seus crimes chocaram, até, alguns nazis!]; Hideki Tojo [primeiro-ministro japonês. O Japão cometeu muitas atrocidades em territórios ocupados, como estupros, assassinatos em massa, experiências “científicas” horrendas, ocupação da Indochina, de Timor português e das Filipinas].
Todas estas personalidades cometeram crimes contra a Humanidade, mas não mereceram a desaprovação do Papa Pio XII, que apenas condenou as atitudes dos comunistas que, na época, até eram aliados das tropas ocidentais na luta contra o nazismo alemão… mas não eram católicos!…
(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)
OV
Surpreende o vigor com que o cristianismo e, em particular, o catolicismo nega quase vinte séculos de antissemitismo militante, hoje menos virulento do que o islâmico.
Martinho Lutero que conhecia a Bíblia tão profundamente quanto a corrupção papal, dizia dos judeus: «são para nós um pesado fardo, a calamidade do nosso ser; são uma praga no meio das nossas terras». (1543)
Quanto à ICAR não é preciso recordar o tribunal do Santo Ofício, basta relembrar as declarações papais ou citar as abundantes e descabeladas manifestações de ódio que o Novo Testamento destila.
Eloquente, chocante e demente foi a atitude do cardeal da Alemanha, Bertram, ao saber da morte do seu idolatrado führer Adolfo Hitler. Já nos primeiros dias de maio de 1945, com a derrota consumada (a rendição foi no dia 8), ordenou que em todas as igrejas da sua arquidiocese fosse rezado um requiem especial, nomeadamente «uma missa solene de requiem, em lembrança do Führer». Entretanto o católico Salazar decretou três dias de luto pelo facínora.
Para alguns católicos e, sobretudo, para ateus, agnósticos e fregueses de outras religiões, é preciso dizer-lhes que, de acordo com a liturgia do requiem, uma missa solene de requiem se destina a que os devotos possam suplicar a Deus, Todo-Poderoso, a admissão no Paraíso do bem-aventurado em lembrança de quem a missa é celebrada.
Os quatro Evangelhos (Marcos, Lucas, Mateus e João) e os Atos dos Apóstolos são uma fonte de ódio antijudaico cristão, tal como o Corão para os muçulmanos. Felizmente, os cristãos, sobretudo os católicos, leem pouco a Bíblia e creem vagamente no conteúdo.
Em períodos de crise, há o risco de se agarrarem ao livro sagrado como os alcoólicos à bebida e, tal como estes, sem discernimento ou força anímica para renunciarem à droga, inibem-se pela habituação e dependência que os escraviza.
O livre-pensamento é uma tentativa séria para promover uma cura de desintoxicação, absolutamente necessária nesta Europa onde o antissemitismo desponta em numerosas manifestações de matriz nazi.
https://www.gospelprime.com.br/coronavirus-dias-messias-judeus-islamicos/
Nos primeiros dias de vida os pais entregam os neófitos ao padre, que lhes mergulha a fronha em água benta, limpando-os do pecado original quando ainda precisam de quem lhes mude a fralda.
Depois, crescem no temor a Deus, que rejubila se comem a sopa e se entristece quando adormecem nas orações.
Aos seis anos de idade, com muitas ave-marias e padre-nossos rezados, para que o Deus cruel e apocalíptico os livre das perpétuas chamas e do azeite fervente do Inferno, onde só há choro e ranger de dentes, as pias catequistas ensinam-lhes os dez mandamentos da Santa Madre Igreja e os do único Deus verdadeiro, privando-os de tempos livres.
Depois do exame de aptidão vem a confissão. Os pecados – ofensas feitas a Deus –, são ditos ao padre, punidos com penitência adequada e perdoados para poderem saborear o corpo de Cristo numa fina rodela de pão ázimo (sem fermento nem sal).
Com a missa semanal e a desobriga pela Páscoa da Ressurreição, como tarifa mínima, seguida de nova rodela mística, os cristãos ficam aptos para novos pecados que serão perdoados de novo e, assim, sucessivamente, vão mantendo viva a fé na vida eterna.
A comunhão solene é um momento alto, com a família a alambazar-se em hidratos de carbono. Por pudor, a ICAR deixou de os vestir de cruzados. A confirmação é imposta por um bispo que exibe o anelão de ametista e o faz oscular pelas crianças, indiferente aos micróbios que passa de boca em boca. O sinal da cruz é desenhado a óleo na testa do cristão pelo dedo do prelado ricamente paramentado e refastelado num cadeirão.
Nesta altura já as crianças de dez anos sabem que os judeus mataram Cristo, que a Santa ICAR está já tão cheia de santos, mártires e bem-aventurados como o metropolitano de Lisboa de passageiros, em horas de ponta.
A xenofobia e o racismo vêm na Antigo Testamento. O dever do cristão é converter os que estão errados (os outros) à verdadeira fé, a que vem de Roma através de breves, bulas e encíclicas. O proselitismo é um dever e quem não quiser salvar-se deve ser obrigado.
Os créus querem impor, como destino, o Paraíso, e os ateus opõem-se à obrigatoriedade.
Pela primeira vez na minha vida, na semana passada, fui a uma reunião da tão criticada Igreja Universal e partilhei as práticas e orações dos presentes.
De repente, o Pastor se aproximou do lugar onde estava, olhou-me fixamente e apontou-me o dedo.
Piedosamente, ajoelhei-me e ele colocou as suas mãos na minha cabeça e clamou em voz alta: Você vai caminhar!
Eu respondi-lhe baixo: mas não tenho nenhum problema de locomoção.
Ele ignorou minha resposta e quase gritando, voltou a exclamar: irmão, você vai caminhar!
Toda a Assembleia, com as mãos ao alto, começou a chorar: Você vai caminhar!
Mais uma vez, tentei explicar que não tinha nenhum problema com meus membros inferiores, mas foi em vão.
Cada vez mais forte e com mais energia, ele repetiu: Você vai caminhar!!!! , enquanto a Assembleia em transe gritava ainda mais forte: irmão, você vai caminhar!!!!
Optei por me calar e não dizer mais nada.
Quando o acto acabou deixei a Assembleia e, acreditem ou não, o maldito pastor tinha razão:
Tinham-me roubado o carro!!!!
Por
ONOFRE VARELA
Perante um infortúnio, como a morte de alguém que queremos muito e desejamos eternamente connosco, ou após um cataclismo, seja natural ou motivado por uma guerra que ceifa vidas e destrói, há quem se pergunte: “Onde estava Deus, que permitiu tão nefasto acontecimento? Porque não evitou tal desastre se, afinal, ele tudo sabe e pode?”.
São perguntas lícitas que qualquer crente pode fazer, mas não há respostas para elas. Estas perguntas são formuladas por quem crê, na convicção de a divindade ser real para além dos seus pensamentos. Na verdade Deus não podia estar no local do acidente ou do crime, porque como ideia que é, só se encontra dentro da cabeça de quem nele crê. Fora da cabeça do crente não há Deus em lado algum.
Penso que esta pergunta trágica do crente que se sente frustrado por não ver a intervenção divina naquilo em que, segundo o seu entendimento, devia intervir, aconteceu aos judeus na segunda metade da década de 1940. Por essa altura o pensamento filosófico foi abalado por duas realidades brutais: duas guerras tinham preocupado o mundo, e a segunda delas carregava o peso do holocausto judeu, promovido pela Alemanha Nazi, mais o trágico fim do Japão no teatro de guerra, com o lançamento de duas bombas atómicas sobre Hiroxima e Nagasáqui, pelos EUA.
Quando os soldados das tropas aliadas entraram nos campos de concentração nazis, não queriam acreditar no que viam. Seres humanos esqueléticos e pilhas de cadáveres, era o que restava dos prisioneiros judeus.
O general Eisenhower fez questão de ver tudo com os seus próprios olhos e recomendou a quem tivesse máquinas fotográficas que registasse o maior número possível de imagens, pois haveria de surgir um dia em que alguém se ocuparia em negar o que eles testemunhavam.
Passado o natural estupor provocado pelo conhecimento das atrocidades cometidas na guerra, a realidade da condição humana, no contexto político, social e religioso da época, foi alvo de profundas reflexões que tiveram eco na década seguinte, prolongando-se para a de 1960, ultrapassando-a, até.
A religião, como refúgio das almas, não podia, naturalmente, estar ausente dessas reflexões que acabaram por promover mudanças de atitudes. Não era possível explicar o abandono dos mais fracos e desprotegidos, nem afogar a dor das vítimas. E os religiosos mais directamente atingidos pela tragédia da guerra, sentiam legitimidade para perguntar: Onde estava e que fazia Deus, quando os nazis eliminavam o seu povo eleito em câmaras de gás?!
Não era fácil responder às interrogações daqueles que se consideravam burlados no conceito que sempre lhes alimentara a esperança e que tão cruamente os desiludira!
(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)
O Diário de uns ateus é o blogue de uma comunidade de ateus e ateias portugueses fundadores da Associação Ateísta Portuguesa. O primeiro domínio foi o ateismo.net, que deu origem ao Diário Ateísta, um dos primeiros blogues portugueses. Hoje, este é um espaço de divulgação de opinião e comentário pessoal daqueles que aqui colaboram. Todos os textos publicados neste espaço são da exclusiva responsabilidade dos autores e não representam necessariamente as posições da Associação Ateísta Portuguesa.