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Categoria: Filosofia

30 de Outubro, 2025 Onofre Varela

Humanismoe lei religiosa (3 e Fim)

Quando se fala em Humanismo, está-se a falar de quê?

Não há uma definição única amplamente aceite de Humanismo, tal como acontece noutros assuntos relacionados com o Pensamento. Pode haver versões paralelas em cada movimento desenvolvido por pensadores que fizeram as várias épocas que nos precederam, criando variações. Na Igreja essas “variações” são designadas por cisma.

Podemos dizer que os humanistas se opõem à imposição política de uma cultura e rejeitam ditaduras. Também não pertencem a uma igreja ou religião estabelecida, nem aceitam o uso da violência sob qualquer justificação.

Uma definição de Humanismopode ser esta: “Uma postura de vida democrática e ética na afirmação de que os seres humanos têm o direito e a responsabilidade de dar sentido e forma às suas próprias vidas. Representa a construção de uma sociedade mais humana através de uma ética baseada em valores humanos e naturais, no espírito da razão e na investigação livre. O Humanismo não é teísta nem aceita visões sobrenaturais da realidade”.

Em conformidade com esta definição, os humanistas apoiam a erradicação da fome, as melhorias na saúde, na habitação e na educação. O Humanismo é um conceito que pretende melhorar as condições sociais, aumentando a autonomia e a dignidade de todos os seres humanos, seja qual for a geografia de onde sejam naturais ou onde se encontrem. Rejeita qualquer forma de divindade e defende o bem-estar e a liberdade dos povos perante tudo e todos, com base no respeito da dignidade do Ser Humano.

O conceito humanista também pode ser referido por “Humanismo Renascentista” pelo facto de ter nascido num movimento intelectual e filosófico que floresceu na Europa entre os séculos XIV e XVI, com origem em Itália. Caracterizou-se pelo interesse renovado na antiguidade clássica, pelo antropocentrismo (o homem no centro do universo) e pela crença nas capacidades do ser humano, influenciando a arte, a ciência e a filosofia. Este movimento marcou a transição do pensamento medieval para o moderno, promovendo uma visão mais racional e individualista.

O termo Humanismo para designar esse resgate dos valores do período clássico, foi inicialmente usado pelo estudioso alemão Friedrich Niethammer, na sua obra de 1808: “A controvérsia entre filantropismo e humanismo na teoria da instrução educacional do nosso tempo”.

Friedrich Niethammer

No contexto histórico das transformações sociais que marcaram o tempo de Niethammer, o Humanismo surgiu como manifestação cultural de rupturas com a decadência da hegemonia da Igreja e o enfraquecimento do poder papal, a secularização da política, o surgimento das monarquias nacionais com o fim do feudalismo e a renovação da filosofia: portanto, uma atitude positiva para a Humanidade no seu todo.

O movimento trouxe uma renovação no estudo de Humanidades como algo essencial à formação do Ser Humano enquanto universalista.

Hoje vivemos um mau período para o Humanismo. Assistimos a práticas políticas anti-humanistas promovidas por uma extrema-direita que alastra como nódoa social, ajudada pela ganância pessoal de políticos, a qual é, sempre, alicerçada na ignorância e na falta de memória histórica. Com a sua retórica, os anti-humanistas convencem os eleitores menos atentos que são apanhados pela ganância própria do miserável que, destituído de moral humanista, quer ultrapassar o seu vizinho mas nunca deixando de ser, no pensamento, o miserável que é… por muito dinheiro que tenha… mas habitualmente é pobre. No bolso e no pensamento.

26 de Outubro, 2025 Onofre Varela

Humanismo e lei religiosa (2)

É sabido que as ditaduras oprimem os povos submetendo-os a uma pretensa “tradição a pedir respeito”. Tal tradição não passa de falácia pela qual se praticam maldades. As tradições sociais e religiosas não legalizam a maldade. 

Numa aldeia transmontana era tradição prender um gato no cimo de um poste, ao qual se ateava fogo! Numa outra localidade espanhola também era tradição lançar uma cabra viva, das ameias de um castelo, para um penhasco!

Dir-se-á que nas duas situações se dava vida a “tradições culturais” comunitárias… mas eram, principalmente, acções desumanas e cruéis que tiravam a vida aos animais (ou os feriam) para gáudio de uns tantos homens de comportamento moral duvidoso (muito mais imoral do que moral) que a “cultura” não pode tolerar e que a lei de um país moderno não pode outorgar; por isso se proibiram essas práticas “culturais”. As leis não podem ser desligadas do respeito devido a qualquer ser humano, ou animal, seja aqui ou na Cochinchina.

No Irão e no Afeganistão praticam-se leis que não são modelo de respeito em lugar nenhum do mundo… começando por não o ser nos próprios países que as praticam. No Irão, em Outubro de 2024 foi publicada uma lei sobre o uso do “hijab” (lenço de cabeça) que castiga com até cinco anos de cadeia as mulheres que não o usem. 

Num comunicado da organização “Human Rights Watch” (Observatório dos Direitos Humanos – uma organização não governamental) faz-se saber que a nova lei, intitulada “Protecção da família através da promoção da cultura do hijab e da castidade”, apresentada no Parlamento iraniano a 20 de Setembro de 2023, foi aprovada pelo Conselho dos Guardiões, o órgão religioso que faz a aprovação final das leis do país. 

Tal lei consolida medidas que já vigoravam para impor o véu islâmico, e adiciona sanções mais severas, como multas e penas de prisão mais longas, bem como restrições ao emprego e às oportunidades de educação para os infractores. (No Ocidente os governos extremistas de Direita vão atrás dos mentores islâmicos e proíbem o uso de trajes regionais. Por cá, a proibição acontece para imigrantes quando usam trajes folclóricos quando não são minhotos, escalabitanos ou algarvios!…).

A morte da jovem de 22 anos Mahsa Amini, às mãos da polícia em Setembro de 2022 por não usar o hijab conforme a lei manda, desencadeou uma onda de protestos durante vários meses com motins nas ruas e a polícia a matar e a prender manifestantes. 

Fonte: Britannica

O governo autocrático e religioso, em vez de responder ao movimento “Mulher, Vida, Liberdade” com as reformas fundamentais reivindicadas, “silenciou as mulheres com leis de vestuário ainda mais repressivas, o que só pode gerar uma resistência e um desafio feroz entre as mulheres dentro e fora do Irão”, disse Nahid Naghsh Bandi, investigadora da Human Rights Watch no Irão. 

A nova lei, que pode castigar com cinco anos de prisão a falta de uso do véu, é composta por 71 artigos que reforçam o controle sobre a vida das mulheres e das instituições que não aplicam estas medidas. No século XXI, o Irão – que tem a carga histórica de se localizar na região geográfica da Mesopotâmia onde nasceu a civilização há cerca de seis mil anos – em termos de evolução do pensamento ainda não passou da mais profunda Idade Média!

(Continua)

20 de Outubro, 2025 Onofre Varela

Humanismo e lei religiosa (1)

O tema em que pego para escrever esta crónica, obriga-me a ocupar um espaço maior do que aquele que o jornal me concede. Vou, por isso, dividi-lo em três partes, publicando hoje a primeira parte.

Cada país rege-se pelas leis aprovadas no seu Parlamento, o qual tem duas formas de existência: ou foi formado pelo voto popular e vive em Democracia, ou foi imposto por um qualquer sistema ditatorial.

Retirando a segunda hipótese que todos nós rejeitamos (espero eu… exceptuando quem não o rejeita, até o deseja, e que hoje até tem assento no nosso Parlamento), é comum, por respeito à liberdade dos povos, não nos imiscuirmos na política interna de outros países, nem “ditarmos leis” na casa dos nossos vizinhos. Mas podemos (e, sobretudo, devemos) criticá-los porque a Democracia também existe para isso mesmo… e no caso de os nossos vizinhos serem dirigidos por ditadores, podemos (e também, sobretudo, devemos) ajudá-los a combater a ditadura que os oprime, em nome da decência, da ética e da Humanidade.

As leis não caem do céu como as folhas outonais caem das árvores.

Há uma “História das Leis” ligada ao desenvolvimento da Civilização. No Egipto Antigo, há 5.000 anos, já havia uma lei escrita para governar o país, baseada na tradição e na igualdade social.

Há 3.800 anos, o Código Hamurábi regia a lei na Babilónia, ficando conhecido como o primeiro código de leis da civilização Suméria (o berço da civilização).

Fonte: The Paris Review

O Antigo Testamento tem mais de 3.300 anos e assume a forma de imperativos morais (alegadamente ditados por um deus) como recomendações para uma boa gestão da sociedade.

Há cerca de 2.900 anos, Atenas foi a primeira sociedade a basear-se na ampla inclusão dos seus cidadãos, mas excluindo mulheres e escravos.

A lei romana foi influenciada pela filosofia grega e impôs-se na Europa Medieval após a queda do Império Romano, a qual foi retocada com preceitos religiosos católicos.

Depois surgiu a necessidade de redigir leis internacionais para regular o comércio em toda a Europa e no mundo.

Toda esta retórica me serviu para chegar ao momento de dizer que, embora cada país tenha a autoridade legal e inalienável de ditar leis aos seus povos, é igualmente verdade que a liberdade de cada pessoa em qualquer parte do mundo é, também ela, inalienável à luz do Humanismo, do conceito da igualdade e do respeito devido ao próximo. Por isso as ditaduras são repudiadas.

Podemos dizer que cada sociedade tem a sua sensibilidade, e esta está na base das leis que a rege. Porém, o Humanismo não está presente nas leis de muitos países… e o Ser Humano é igual em qualquer parte do mundo. Cada mulher, cada homem, cada criança, tem o mesmo sistema nervoso que lhes permite sentir alegria e tristeza perante a mesma experiência de vida, e não precisamos de estudar Direito para sabermos – e sentirmos – o que é justo e o que é injusto. Aqui ou nos antípodas.

O Humanismo, com todas as particularidades que o constroem, é o único modo político e económico de governar (bem) os povos, em qualquer parte do mundo.

PARTE 2

5 de Outubro, 2025 Eva Monteiro

Carta a um Crente

(Quase) todas as quartas-feiras sou anfitriã de um debate online em que convido crentes a discutirem temas que me parecem relevantes à luz das suas crenças. Faço-o através da plataforma TikTok e vou lá deixando também, em formato de vídeo, algum conteúdo. Foi com alguma surpresa que encontrei na minha caixa de entrada desta plataforma uma mensagem mais educada e razoável que as do costume (normalmente são insultos). Sou detalhada nas minhas respostas, pelo que no fim, achei que o texto poderia ser útil e decidi publicá-lo aqui. O que se segue é a mensagem inicial desta pessoa:

Ponderei bastante antes de enviar mensagem. Era bem mais fácil não dizer nada e pronto, vida que segue. Mas não consigo concordar contigo em relação às religiões. As religiões têm um papel fundamental na sociedade e esta é somente a minha opinião. E esta é a minha verdade. Tu tens a tua e outra pessoa qualquer poderá ter a dela e está tudo certo. Sem julgamentos, até porque a meu ver cada um tem o seu caminho e trajeto a seguir. Que me digas que houve e há uma instrumentalização por parte dos homens em relação a essas mesmas religiões, sem dúvida alguma, 100% de acordo. No entanto, as religiões na sua essência são apenas e só uma maneira de mostrar valores e distinguir o certo do errado. Percebo que me digas que isso faz parte da educação de cada ser, mas na minha opinião não é a mesma coisa. Pois uma coisa é o pai, ou a mãe, ou mesmo a professora, outra é supostamente uma entidade superior a demonstrar o bem ou o mal.

Atenção que à medida que crescemos todos nós optamos por diversos caminhos e começamos a questionar esses mesmos ensinamentos. O que é normal pois são apenas histórias que passaram de pessoas para pessoas e que quem as passa age como se fossem verdades absolutas.

Como é lógico, devemos questionar sempre e não acreditarmos em algo só porque sim. Devemos tirar as nossas próprias conclusões, pelas nossas próprias experiências e também pelas nossas pesquisas se assim o desejarmos e quisermos saber mais. Por exemplo, se me perguntares se eu acredito em Deus, eu vou responder o que respondo sempre. Eu não acredito, eu sei que Existe.

Não me identifico com nenhuma religião. Fui educado sim na igreja católica cristã (é cultural) e tive passagens pelo budismo. No entanto, desde os meus 5 anos de idade que tenho contato com outros planos, que não aquele que estamos no momento presente. Estudo o espiritismo segundo Allan Kardec, sempre baseado no método científico.

Como eu costumo dizer, o espiritismo não é uma religião, é um modo de vida. É apenas a maneira como vemos o mundo e que não há certos nem errados, há apenas experiências e modos de fazer e ver as coisas de maneira diferente. Lá porque dizes que algo é assim e eu digo que é assado é tudo uma questão de perspectivas. Estamos sempre a aprender e a evoluir.

Peço desculpa pela intromissão e pelo testamento. Bom fim de semana.

A minha resposta:

É a tua vez de me perdoares a extensão da resposta. Quando acabei de a escrever dei conta que talvez tenha sido detalhada demais. Ainda assim, acho que devo escrever o que tenho a dizer e tu decidirás se tens o tempo e a paciência de fazeres a leitura e até, se eu tiver alguma sorte, responderes aos pontos em que discordo contigo.

Prometi que te respondia mal pudesse dar atenção completa à tua mensagem e tive algum tempo para ponderar. É sempre um sinal de integridade intelectual quando alguém que me manda mensagem privada numa rede social se dispõe a refletir, questionar e dialogar, mesmo quando o tema é sensível; e poucas coisas o são mais do que as crenças religiosas. Por isso, antes de mais, quero agradecer-te novamente pela mensagem.

O facto de não concordares comigo quanto às religiões é válido, temos direito a portar diferentes opiniões e a defendermos diferentes posições. Contudo, eu acredito em fundamentar as minhas posições e a questionar o fundamento das posições contrárias à minha. Desta forma, posso entender se a minha posição está afinal, errada. Hoje não foi o dia. Parece-me que confundes, antes de mais, opinião com verdade. Esta ideia de que dada coisa é “a minha verdade” é completamente descabida. É a tua opinião, faz parte da tua mundividência, é o que tu achas. A verdade é outra coisa. Não depende da opinião nem da perspectiva de quem afirma que algo é verdadeiro, mas da coerência entre a afirmação e a realidade. Isto é, uma afirmação é verdadeira se corresponder aos factos ou ao estado de coisas que a pessoa afirma.

Quanto a opiniões, cada um tem a sua, é verdade. Por outro lado, não devo aceitar tudo o que me dizem só porque as pessoas têm direito a terem opiniões. Podemos certamente concordar que nem todas as opiniões fazem sentido. Há quem acredite que a terra é plana. Têm direito a acreditar numa coisa falsa, mas eu não tenho que aceitar que a terra é plana só porque essa é a opinião de uma pessoa que está muito claramente errada mas que decidiu ser essa “a sua verdade”. Há opiniões sobre tudo e para todos os gostos. Algumas opiniões são inócuas, outras têm consequências. Quando a consequência só atinge o próprio, está tudo bem. Quanto a consequência atinge outros ou a sociedade em geral, creio que opor-me é imperativo.

Do ponto de vista histórico, é verdade que as religiões moldaram civilizações, inspiraram arte, música e literatura, e serviram de estrutura moral e social durante séculos. Mas a questão crucial é: a que custo e com que fundamentos. A religião, de uma forma geral, foi a primeira explicação que a humanidade conseguiu dar a grandes questões, mas não foi a última nem foi a melhor. Pelo contrário, é a mais imperfeita das explicações do mundo e a que provocou piores danos. Contudo, ainda que não tivesse provocado danos e não fosse hoje uma visão obsoleta, o facto de em tempos ter tido utilidade não significa que seja verdade. São dois conceitos diferentes. Um vidente pode ser útil a um cliente que lá vai desabafar, mas não deixa de ser charlatanice. Naturalmente, não concordo contigo que as religiões ainda têm esse papel social, pelo menos no ocidente secularizado em que as leis, feitas por pessoas para pessoas, moldam a nossa vida diária. Por outro lado, a religião mantém esse poder em países onde a teocracia é a regra. Acho que basta olhar para os países que não fazem a separação entre o estado e as organizações religiosas para vermos o quanto a religião corrompe e destrói sociedades inteiras.

Quando alguém me diz que as pessoas é que instrumentalizam a religião, sinto que estamos a cair numa tautologia. A religião não é petróleo. Não é uma coisa que a humanidade descobriu e que não soube usar corretamente. A religião é uma construção humana cujo objetivo é o controlo. Parece-me por isso evidente que um instrumento seja… instrumentalizado. Basta olharmos para as sociedades para entendermos que tipo de deuses é que as pessoas criam. Uma sociedade de pequenas tribos, onde toda a gente se conhece e em que a violência e o crime são situações pontuais e aberrantes tende a ser animista. Já uma sociedade que desenvolve grandes cidades tende a criar deuses que vigiam, que estão em todo o lado, que castigam pecados. A religião é o que as pessoas criam antes de desenvolverem sistemas legais e modos mais seculares de regulação social.

Na sua essência, as religiões não te dão um sistema de valores. Pelo contrário, és tu que imprimes moralidade à religião que professas. Por isso é que tantos cristãos não são racistas, misóginos e violentos, apesar de o seu livro sagrado estabelecer um sistema de “valores” absurdo e impensável. Se decidisses agora seguir à letra o sistema de valores que o cristianismo, o judaísmo ou o islamismo oferecem nos seus escritos sagrados, só não ias parar à cadeia se te rebentasses juntamente com uma bomba, ou te suicidasses após desatares a matar infiéis, pecadores, bruxas, ateus e outros. Se seguisses à letra esse sistema de “valores”, não distinguirias o certo do errado. É porque consegues distinguir o certo do errado que tens a capacidade de ignorar as partes imorais de uma religião e selecionar ou reinterpretar as partes que se coadunam com o teu sistema moral.

Para mim, distinguir o que é bom e o que é mau também não faz inteiramente parte da educação de cada pessoa. Faz também parte do processo de seleção e da sobrevivência da espécie. Somos uma espécie cooperativa e se não tivéssemos a capacidade de coexistir, de saber que não se faz mal aos outros, que devemos ser bons uns para os outros, não sobreviveríamos enquanto espécie. Com todos os defeitos que temos, temos tendência a não sermos violentos, a não sermos destruidores da nossa própria espécie. É coisa comum a muitas espécies, especialmente entre os mamíferos e especificamente entre os primatas que nos são, do ponto de vista da evolução, mais próximos. A mãe e o pai, ou a mãe e a mãe, ou o pai e o pai, ou a avó, o avô, o tio, a tia, ou seja quem for que educa uma criança tem um papel essencial na sua vida através da educação e isso eu não nego. Uma criança bem educada terá um futuro mais feliz e útil, para si e para os outros. Contudo, falas de uma entidade superior que demonstra o bem e o mal. Suponho no entanto que o teu deus, seja ele qual for, nunca te respondeu às preces de forma audível e verificável. Não temos quaisquer provas de que uma entidade sobrenatural alguma vez tenha falado ou aparecido a alguém. Temos é padres, pastores, bispos, apóstolos, profetas, gurus e restantes líderes espirituais que dizem saber o que está certo e o que está errado, e que afirmam o que é ou deixa de ser a vontade do respetivo deus. Ora, cada líder religioso tem a sua opinião sobre o que está certo ou errado, pelo que não existe nessa suposta comunicação divina objetividade suficiente, nem nos dias de hoje nem ao longo da História, para suportar a tua afirmação. Eu creio que entendes isto, pela forma como escreves, mas não me parece que entendas que o que dizes num parágrafo contradiz o que dizes no parágrafo anterior.

Concordo que devemos questionar, tirar as nossas próprias conclusões, como dizes. Mas então em que momento desse processo é que entra deus?

Dizes uma frase que já ouvi centenas se não milhares de vezes em debates, especialmente com cristãos e muçulmanos: “Eu não acredito, eu sei que Existe.” Na verdade é o oposto, tu não sabes, tu acreditas. É matéria de fé e não de facto. Se soubesses efetivamente que o teu deus existe, terias como prová-lo. Se fosse esse o caso, não estaríamos a debater via mensagem no TikTok, terias mostrado esse facto à humanidade, não existiriam ateus e terias ganho meia dúzia de prémios Nobel e pelo menos uma beatificação. É apenas, e lamento ter que to dizer de forma tão direta, uma frase feita daquelas que os padres e os pastores gostam de atirar ao ar mas que carecem de qualquer tipo de sentido. É aquela jogada de dizer “eu sei no meu coração que deus existe” – se sabes no teu coração, não sabes na tua cabeça. Estou interessada naquilo que é verificável, não em “verdades pessoais” que é uma forma de dizer crenças infundadas.

Quando alguém me diz que não se identifica com nenhuma religião chego sempre à conclusão que é porque não se querem comprometer à partida com determinados dogmas, com os quais podem não concordar ou não saber como sustentar. No entanto, quando faço perguntas a quem diz que não se identifica com nenhuma religião, chego sempre à conclusão que o deus em que acreditam é aquele que lhes foi imposto na infância e que as suas crenças religiosas vão de encontro às crenças da instituição religiosa correspondente, ainda que não na sua totalidade. Resumindo, posso dizer que apesar de tu não te identificares com nenhuma religião, bastariam 10 minutos de conversa honesta para eu fazer essa identificação por ti. Aliás, esse diálogo, a ser feito internamente e de forma honesta, provavelmente também faria com que te identificasses com alguma religião. Vou apostar, sem muita base, porque essa conversa não aconteceu, que acreditas no deus da Igreja Católica (omnisciente, omnipotente, omnipresente e bom), mas que gostas de práticas mais místicas pelo que em vez de ires à missa preferes meditar e que não te identificas com a Igreja Católica porque o Kardecismo te conferiu a crença de que o mundo dos espíritos está ao teu alcance, quando a Igreja o nega. Isto é, descaradamente, um pré-conceito da minha parte. Não o nego e até peço desculpas se estiver errada. No entanto, apostaria uns euros nesta opinião se fosse forçada a isso.

Quanto ao espiritismo e à ideia de contacto com outros planos, o que posso dizer é que a sinceridade da experiência não garante a veracidade da interpretação. As experiências subjetivas (visões, intuições, sentimentos de presença) são universais e explicáveis em termos neurológicos e psicológicos. A mente humana é extraordinariamente criativa, e o cérebro é capaz de gerar experiências intensamente reais que, no entanto, não têm correspondência objetiva. O método científico serve precisamente para proteger-nos dessas ilusões, inclusive das mais agradáveis.

Embora Allan Kardec afirmasse seguir o “método científico” na elaboração da doutrina espírita, na realidade ele nunca aplicou qualquer procedimento científico reconhecível. Não houve observação controlada, hipóteses testáveis, experimentação reproduzível nem revisão por pares. O que Kardec fez foi recolher relatos mediúnicos e interpretá-los à luz das suas próprias convicções, apresentando-os como factos. Esse processo pode ter sido feito com sinceridade, mas não é ciência, é especulação metafísica. A ciência baseia-se em evidências verificáveis e na possibilidade de refutação. Já o espiritismo baseia-se em testemunhos subjetivos e fenómenos não demonstráveis. Portanto, apesar de Kardec desejar dar ao espiritismo uma aparência racional, os seus escritos pertencem ao domínio da crença, não ao da investigação científica. Que seja esse o teu modo de vida é uma escolha pessoal que não tenho que questionar. Contudo, é só isso, uma escolha de vida que em nada demonstra a veracidade dos ensinamentos que escolheste seguir e que em nada se baseia no método científico.

Concordo inteiramente contigo num ponto essencial: devemos sempre questionar e continuar a aprender. O problema é que o verdadeiro questionamento exige que também coloquemos em dúvida as nossas certezas mais íntimas, inclusive as espirituais. E é aqui que a postura ateísta não é uma negação da espiritualidade humana, mas uma exigência de honestidade intelectual. Por fim, suspeito que o que te incomoda no meu conteúdo é sobretudo o anticlericalismo. Deixa-me só referir que o anticlericalismo não é ódio à religião, mas defesa da liberdade de consciência contra qualquer instituição que pretenda ter autoridade sobre o pensamento humano. É uma oposição ao poder clerical. As igrejas e demais instituições religiosas e espirituais, todas elas, devem ser submetidas ao mesmo escrutínio que qualquer outra forma de poder. Isso não é intolerância; é maturidade intelectual.

Ao ler e reler a tua mensagem fico na dúvida: seria uma forma de evangelização? Tens como objetivo arrancar-me do ateísmo herege e pecaminoso? Tiveste necessidade de partilhar as tuas crenças porque sentes que o meu conteúdo as invalida de alguma forma? Ou só quiseste iniciar um debate? Não sei, mas agradeço na mesma a tua mensagem. O diálogo é o que nos permite evoluir.

Evoluímos melhor quando a verdade, e não o conforto, é o nosso objetivo.

5 de Abril, 2025 Onofre Varela

A importância do Humor nas nossas miseráveis vidas…

«Se o homem não compreende a graça, está perdido! Deixa de ser verdadeiramente inteligente, mesmo que tenha todos os talentos».

Estas palavras do grande escritor russo Anton Tchekov são frequentemente citadas como prova de que o sentido de humor é um elemento importante da inteligência.

Quando alguns políticos e religiosos (principalmente estes… de entre outras castas de “gentinha”) se insurgem contra considerações bem humoradas sobre os seus actos cometidos em sociedade, estão a sublinhar a imensa falta que têm da inteligência referida por Tchekov.

Uma das principais funções do humor consiste em garantir-nos a estabilidade psicológica nas situações difíceis. É isto mesmo que se observa hoje com tantas piadas nas redes sociais referindo a actuação política do perigoso, patético, piadético, bobo, ignorante, estulto, estúpido, fátuo, idiota, imbecil, inepto, lerdo, néscio, palerma, parvo e tolo, também reconhecido pelo nome aproximado a um desenho animado de Walt Disney; Donald Trump… à frente da governação da maior potência do mundo, para cuja função usa um minúsculo resquício de massa cinzenta mal amanhada, que foi o que lhe calhou no refugo da sorte do seu nascimento, nivelando-o pelo pensamento mais irracional de líderes tribais mais rascas e fatelas, oriundos de países da profunda África mais selvagem, ou de perdidas ilhas polinésias para lá do cu do mundo!

Para que um caricaturista, cartunista ou sátiro das personalidades públicas, consiga desempenhar o seu papel de crítico social, ele tem de saber apreciar correctamente os acontecimentos… mas, logo a seguir, terá de se desligar deles ou procurar um ponto de observação suficientemente distanciado para não ser maleficamente atingido pelos actos que lhe vão merecer a crítica que escreve ou desenha.

Só assim se consegue reestruturar o sentimento e ultrapassar as emoções desagradáveis, tornando-nos capazes de sorrir com aquilo que, ainda há poucochinho… nos dava vontade de chorar.

Há uma extensa literatura publicada sobre Bernard Shaw, o ilustre autor dramático irlandês, cujo sentido de humor o tornou lendário. Um dos vários casos que lhe são atribuídos, conta assim:

«Um dia, o escritor, então já de idade bastante avançada, foi atirado ao chão por um ciclista demasiado impetuoso. Por felicidade, nada de mais grave aconteceu. Quando o culpado do acidente, confuso, pediu desculpas, Bernard Shaw interrompeu-o: “Você tem realmente pouca sorte. Com um pouco mais de energia, teria entrado na História como o meu assassino».

Poucos são aqueles que saberiam manter o sangue frio em tal situação e debitar um discurso de humor em vez de recorrer à raiva, ao insulto e a recriminações perfeitamente inúteis para aquele acontecimento específico e naquele dado momento.

Portanto, fique-se com esta, prezado(a) leitor(a): uma das funções do sentido de humor consiste em assegurar um estado de espírito equilibrado em situações que, de satisfatório… nada têm!

Não há nada melhor do que aprendermos a rir e nós próprios, em vez de nos considerarmos os mais certos e seguros de tudo quanto é coisa ou é gente neste mundo… ou no outro!… 

16 de Fevereiro, 2025 Onofre Varela

Sobre “o deus que habita em nós”

Em conversa com um amigo falávamos da diversidade de sensibilidades que unem as pessoas mas que também as separam e, muitas vezes, conduzem a agressões verbais ou físicas condenáveis só porque uns gostam de maçãs e outros preferem pêssegos!… Sendo atitudes condenáveis, na verdade também são naturais em nós… fazem parte da característica de predador com que a Natureza nos dotou como sistema de defesa e sobrevivência.

Mas se a Natureza nos fez predadores – tal como fez o leão – também nos equipou com um cérebro de características especiais, dando-nos raciocínio, sensibilidade e inteligência… faculdades que o leão não possui. Por isso nos obrigamos a usar as nossas características de “Sapiens”, contrariando o mero animal que somos, usando “odeus que habita em nós” abandonando a parte mais animalesca que, naturalmente, faz o leão e também possuímos.

O meu amigo arregalou os olhos de espanto. Sabendo-me ateu, estranhou a minha referência “ao deus que habita em nós”! Compreendi o seu assombro porque o Ateísmo sempre foi vilipendiado e dele se faz, erradamente, exemplo de desvio comportamental no pior dos sentidos.

Não há razão para espanto. Os ateus criticam “a ideia da existência de um deus exterior a nós” – no aproveitamento social e económico que dessa ideia se faz – mas nunca criticam “o deus que habita em nós”… isto é, a ideia que nos levou à criação de deuses e depois à sua depuração até chegarmos ao “Deus único” adorado por judeus, cristãos e muçulmanos.

Quando refiro “o deus que há em nós”, sou compreendido por quem me escuta (ou lê) e é crente, porque a força que ele sente na crença que alimenta “o deus que habita em si” é, no fundo, a característica daquela parte de nós que sublinha o facto de sermos “Sapiens” e que nos diferencia de todos os outros animais nossos companheiros da vida na Terra, fazendo de nós os seres especiais e superiores que somos.

Mesmo assim, quando em discordância com os nossos semelhantes, somos capazes de adoptar comportamentos iguais aos de um qualquer animal predador inferior, porque a nossa origem animal é a mesma… embora raciocinemos, deixamos, imensas vezes, a nossa sensibilidade tormentosa comandar-nos, tomando conta da Razão. E por esse caminho ficamos em patamares inferiores aos irracionais nossos irmãos de reino, porque enquanto que eles só guerreiam por alimento, por fêmea e pelo domínio do grupo, nós fazêmo-lo pelas mesmas três razões… e ainda acrescentamos a lista, tomados por uma irracionalidade que demonstra o pior da nossa condição animal… o que parece incongruente com a nossa capacidade de raciocinar… mas a verdade é que somos assim… ainda estamos muito mal acabados!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

29 de Janeiro, 2025 Eva Monteiro

Nem só de religião vive o ateu

O ateísmo, por si só e nos tempos que correm, não é nada de excitante. A ausência de alguma coisa não significa que haja um vazio a preencher. Ser-se ateu é apenas uma recusa em acreditar em deuses. Ora, posto isto a discussão acaba aqui. Não há uma mundividência ateia, um sistema ético ateu ou um modo de vida ateu. Este último no sentido em que o ateísmo não acrescenta, apenas retira. Não significa que o modo de vida de um ateu não seja rico e preenchido – por outros meios. Em suma, o ateísmo não é uma religião e não pretende oferecer nada além dessa ausência.

Para que eu seja ateia é necessário que exista religião e que ela seja prevalente. O ateísmo existe apenas como reação ao mundo infetado em que vivemos, tomado conta por um vírus existencial que recusa emancipar-se de um pai ultrapassado e senil que há muito devia ter deixado de ditar as regras lá em casa. Neste sentido, o ateísmo vive da religião porque na sua ausência seríamos apenas normais.

Não obstante esta luta entre acreditar e não acreditar numa ideia sobrenatural que pertence à infância da humanidade, nem só de religião vive esta ateia e, creio, outros ateus. Necessito de uma mundividência, de estabelecer valores éticos e um modo de vida. É o Humanismo Secular que preenche esse lugar onde recuso deixar entrar o dogma religioso e os sistemas arbitrários de falsa moralidade que as religiões oferecem. Se abraço assim a razão humana, a ética, a justiça social e o naturalismo, esta ateia vive também de política. Aliás, como ativista ateia, haverá pouco do que faço e vivo que não esteja imbuído desta coisa que se refere à vida em sociedade e a relação com o poder.

Neste sentido, é como humanista secular que hoje escrevo, além de enquanto ateia. Li ontem um artigo do Vatican News em que se dá conta de uma nota dos Dicastérios para a Doutrina da Fé (anteriormente chamados de Inquisição – sim essa) e para a Cultura e Educação em que “são destacadas as potencialidades e os desafios nos campos da educação, economia, trabalho, saúde, relações humanas e internacionais, bem como em contextos de guerra.”. À primeira vista não posso deixar de concordar que existem desafios. No entanto, basta continuar a ler para entender que o Sr. Jorge Mário tem umas ideias pouco originais sobre a IA, fruto de uma longa tradição católica de combater tudo o que é novo e que retire protagonismo ao seu modo de vida dogmático e redutor.

Nem tudo o que se diz na “Antiqua et Nova” é de deitar fora. Nem tudo, mas muito. Refiro-me à pressa em advertir os crentes que não endeusem a IA. Não que eu a queira endeusar, mas eu, pelo menos, não invento deuses para controlar grupos de pessoas. O Papa, vulgo Sr. Jorge Mário, tem receio do “Poder nas mãos de poucos”. A piada faz-se sozinha, claro.  Preocupa-o (além da guerra que também me preocupa), a “antropomorfização da IA” gerando relações fraudulentas. Mais uma oportunidade perdida de um gracejo pouco simpático. No seu costumeiro ímpeto de controlar a sexualidade humana, o documento avança que “usar a IA para enganar em outros contextos – como na educação ou nas relações humanas, incluindo a esfera da sexualidade – é profundamente imoral e exige vigilância rigorosa”. Mas quem vigia a igreja que há séculos o faz?

O texto fala de preconceito e discriminação, de perdas no desenvolvimento do pensamento crítico, de fake news e deep fakes, de manipulação, informações falsas, enganos, de alimentar o ódio e a intolerância, da desvalorização da beleza e intimidade da sexualidade humana e da exploração dos fracos e indefesos. O Sr. Jorge Mário vai mais longe e critica o controlo da consciência humana pela IA, a vigilância do cidadão comum para proveito de outros, a exploração de recursos naturais para alimentar a IA, mas acima de tudo, alerta que a “presunção de substituir Deus por uma obra de suas próprias mãos é idolatria”.

Em suma, depois de listar tudo aquilo que tem feito nos últimos 2000 anos e que sente ser apanágio da ICAR, o Sr. Jorge Mário identifica o busílis da questão: a Igreja sente-se gradualmente substituída por uma imaginada IA maldosa (quiçá competitiva também neste campo com as atrocidades que a ICAR cometeu ao longo de séculos) e isso não dá jeito nenhum.

Por fim, um campo em que eu e o Sr. Jorge Mário concordamos:

Em particular, no âmbito do trabalho, destaca-se que, se por um lado a IA tem “potencial” para aumentar competências e produtividade ou criar novos empregos, por outro, pode “desqualificar os trabalhadores, submetê-los a uma vigilância automatizada e relegá-los a funções rígidas e repetitivas”, a ponto de “sufocar” toda capacidade inovadora. “Não se deve buscar substituir cada vez mais o trabalho humano pelo progresso tecnológico: ao fazê-lo, a humanidade prejudicaria a si mesma”.

Dizia eu há pouco que nem só de religião vive o ateu. Eu vivo deste Humanismo Secular que me auxilia a identificar-me como pessoa que luta pelo bem estar de todos, em sociedades dignas e dignificantes sem recurso a falsas promessas de castigo ou recompensa após a morte. Eu concordo com o Sr. Jorge Mário no que diz respeito à IA no campo do trabalho ainda que não corra o risco de a endeusar e a enfiar na ausência de religião a que o meu ateísmo obriga.

Ao contrário do Sr. Jorge Mário, a minha solução proposta não é a fuga para um passado medieval de bruxas, demónios e fogueiras. Sugiro que todas as empresas que utilizem inteligência artificial ou outras tecnologias para substituir o trabalho humano sejam obrigadas a pagar impostos proporcionais aos encargos fiscais que teriam caso essas tarefas, funções ou postos de trabalho fossem ocupados por pessoas. Os valores arrecadados com este imposto teriam de ser direcionados para a criação de um rendimento básico universal, garantindo que os trabalhadores, em vez de serem simplesmente descartados, pudessem beneficiar dos avanços tecnológicos. Dessa forma, a automação não serviria apenas para maximizar os lucros dos CEOs à custa do desemprego em massa, mas sim para promover uma distribuição mais equitativa da riqueza gerada pela inovação. Ou seja, mais tempo para viver, com os meios para aproveitar esse tempo. Talvez o Sr. Jorge Mário devesse estar menos preocupado com a manutenção da imagem de infalibilidade da ICAR e da perda crescente de crentes (por consequência, do dinheiro que geram), e mais preocupado em realmente encontrar soluções para a sociedade em que vivemos. Nem só de pão vive o homem – dizem eles. É verdade, pessoalmente gosto de um bom Alvarinho e um queijo a acompanhar. E preferia ter como os pagar.

29 de Dezembro, 2024 Onofre Varela

FakeNews: política, telenovelas e Bíblia

As notícias falsas (Fake News) estão tão enraizadas na sociedade que é difícil saber-se o que é verdadeiro e falso numa campanha eleitoral, numa mensagem publicitária ou numa discussão parlamentar. As Fake News são uma espécie de “informação” criada com o propósito de desinformar, de enganar quem as toma por verdadeiras. Divulgam mentiras por verdades, intoxicam a opinião pública e induzem “as suas vítimas” a pensarem e a fazerem como os seus promotores querem que elas pensem e façam. 

Neste momento temos nas Fake News (FN) criadas pela extrema-direita, a difusão da ideia de que os imigrantes são bandidos que infestam as ruas das nossas cidades, matam velhinhas e comem crianças ao pequeno almoço. As FN são usadas com fins políticos ou económicos para benefício de alguém ou algo. Todos nos lembramos da garantia que Cavaco Silva deu de o BES não ter problemas financeiros, que estava com os cofres cheios de dinheiro e os seus clientes podiam confiar na seriedade do banqueiro!… Quem discordaria da opinião avalizada de um economista de tal gabarito?!… E foi o que se viu! 

Foto de Jorge Franganillo na Unsplash

As Fake News foram usadas nos EUA em benefício de Donald Trump nas eleições de 2016 (e de 2024), e de Jair Bolsonaro no Brasil em 2018, recorrendo a mensagens divulgadas massivamente nas redes sociais dizendo “cobras e lagartos” dos seus opositores, acenando o espantalho do comunismo. 

Para que as Fake News atinjam o alvo com eficácia, têm de ter algo de verdadeiro à mistura… algo que interesse à maioria de nós, levando-nos a aceitar todo o discurso como verdade, só porque uma parte dele é (ou parece ser) verdadeiro. Repare-se nos enredos das telenovelas. Aquilo é ficção, mas retrata a vida social como nós a conhecemos, e muitos dos conflitos narrados nos episódios já nós os vivemos de algum modo ou sabemos de quem os tenha vivido… mas é tudo mentira! 

É esta semelhança com a realidade que faz o interesse dos telespectadores. Esta artimanha de misturar realidade com ficção não é nova. As Fake News são velhas como o mundo, e a Bíblia é uma colecção enorme delas. À mistura com nomes de personalidades que a História nos diz terem existido, e de localidades reais, os Judeus construíram narrativas falsas afirmando-se “o Povo eleito de Deus”. Como se não bastasse a mentira histórica, ainda lhe acrescentam o maior embuste, que é a de terem sido ditadas por um deus inexistente!… 

Exemplo: Moisés é personagem do Antigo Testamento a quem se atribui o Êxodo (a retirada do povo hebreu do Egipto) e a espectacularidade das dez pragas que fizeram a rendição do faraó Ramsés II. A última delas foi a morte do próprio filho do faraó, o que nos mostra Deus como um ser infame, despótico e cruel. 

O problema desta narrativa está no facto de tais casos nunca terem existido!… Êxodos de hebreus, houve muitos… e as dez pragas narradas são tão espectaculares que teriam de fazer parte da História do Egipto… que não as regista!… A existência de Moisés não está provada pela História, e o que se conta de, em bebé, ter sido recolhido de uma cesta abandonada no rio Nilo, é cópia da história de vida que se conta de Sargão I, rei da Suméria, que viveu 600 anos antes de Ramsés II e de Moisés.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

14 de Outubro, 2024 Onofre Varela

Sobre a Espiritualidade

Quando se fala em Espiritualidade é comum ouvirmos referi-la sob o ponto de vista religioso, aliando-a a uma fé, de acordo com a definição de dicionário que aponta, como sinónimo, a palavra “misticismo” (Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 8ª Edição, 1998). No mesmo dicionário, misticismo é “atitude caracterizada pela crença na possibilidade de comunicação directa com o divino ou a divindade”.

Se seguirmos estas definições encontramo-nos no terreno da crença religiosa que é sementeira de ideias transcendentes relacionadas com as figuras deificas inexistentes no mundo físico que nos fez e acolhe, indo para lá de tudo quanto é natural, na procura de uma outra origem que transgride a Natureza, vogando no espaço imaginativo da crença.

O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Círculo de Leitores, 2003) navega nas mesmas águas definindo a espiritualidade como “característica ou qualidade do que tem ou revela intensa actividade religiosa ou mística”… quer dizer que seguindo por esta via, pretensamente explicativa, não aprendemos nada que seja real e concreto, e nos distancie do termo enquanto “filosofia de fé”.

Foto de Marc-Olivier Jodoin na Unsplash

O mesmo Houaiss, para a palavra “espírito” aponta, no mínimo, dezoito definições… até o bom vinho o possui! Também lá está a palavra “alma” como sinónimo de “espírito”… mas o termo “alma” tem a sorte de ser bafejado por quatro dezenas de definições, começando pelo “princípio da vida no homem ou nos animais”, passando por pensamento, afectividade, sensibilidade e “conjunto das actividades vitais”. Quer dizer: vida.

Alma é vida. É movimento. A “anima” que possui o significado de “fôlego vital”, respiração ou “sopro da vida”, de onde provém, etimologicamente, a palavra “animal” (ser que tem alma, animação) diferenciando-o dos vegetais, os quais, embora tenham vida, não se auto-locomovem (por não terem animação autónoma) como fazem os animais.

Agora podemos ir mais além nos conceitos que as palavras podem representar, e definirmos “espírito” como “modo de ser”. Há quem, pelas suas palavras, aspecto ou presença, transmita “paz de espírito”; e há quem possua um “espírito irrequieto ou belicoso”. Uma pessoa bondosa e pacífica é definida como sendo “uma paz de alma”.

A espiritualidade é, portanto, característica de seres animados e detentores de um cérebro capaz de um entendimento universalista de si, dos outros e do meio em que se movimentam, para se poderem manifestar sensitivamente: portanto, só o Ser Humano a possui.

Embora quase sempre ligada à esfera do “religioso deifico e transcendental”, a espiritualidade existe em todos nós, quer sejamos crentes, descrentes, assim-assim, nem por isso… ou ateus.

André Comte-Sponville, filósofo francês (1952) fala de “uma espiritualidade sem Deus”, no sentido de termos, todos nós, uma abertura (de espírito, de entendimento) para o ilimitado, no conhecimento de sermos seres relativos e abertos para o “absoluto”.

Nesse sentido, a espiritualidade do ateu caminha ao lado da espiritualidade do religioso, mas dispensando a figura do deus que alimenta a espiritualidade do companheiro da caminhada que ambos encetamos pela estrada da vida.

O alimento do ateu (para além do pantagruélico, que é sempre bem-vindo numa mesa rodeada de familiares e amigos) também passa pela sua espiritualidade, pelo seu lado sensível perante a beleza de uma pintura, de uma estátua, de uma paisagem, de um pôr do Sol, ou de um poema (assisti a um cântico gregoriano na catedral de Santiago de Compostela… e adorei! Nunca experimentei maior prazer auditivo).

A espiritualidade é estudada cientificamente pela “Neuroteologia” (também designada por “Bioteologia”), “Neurociência da Religião” e “Neurociência espiritual”, que investigam crenças, experiências e práticas religiosas ou espirituais. Há uma pesquisa na tentativa de se explicar a base neurológica de experiências religiosas, incluindo a dimensão da espiritualidade e as alterações dos estados de consciência.

O sentido religioso não passa de uma actividade do nosso cérebro. Qualquer ligação que queiramos fazer das coisas e de nós, a um deus, não passa de uma manifestação dos nossos sentimentos mais básicos que nos fazem crer num deus real (para além da guarida que os religiosos dão ao conceito dentro das suas cabeças)… mas que, naturalmente, não desagua em bom mar… até porque o leito onde deveria correr o rio da fé onde navegaria Deus… sempre esteve seco!…

(Por preguiça de aprender novas regras, o autor não obedece ao último Acordo Ortográfico. Basta-lhe o Português que lhe foi ensinado na Escola Primária por professores altamente qualificados)

23 de Setembro, 2024 Onofre Varela

“A verdade liberta. A mentira prende”

Em 2007 a Editorial Caminho editou o meu livro “O Peter Pan Não Existe – Reflexões de um ateu”, obra que me ocupou cinco anos de escrita e, ao que julgava saber, a edição estaria esgotada… porém, dois amigos, num espaço de tempo curto e em livrarias diferentes, conseguiram o livro! Combinamos um jantar para dar à língua, recordar tempos passados e poder dedicar-lhes os dois exemplares do Peter Pan. Por essa razão peguei no exemplar que me resta em arquivo, abri-o ao calhas e, do que li, decidi fazer esta crónica.

Ao primeiro capítulo dei o título “A verdade tornar-vos-á livres. A mentira tornar-vos-á crentes”, frase que fui buscar ao Evangelho de S. João (8:32), para referir “crença e conhecimento”. A certo passo, digo assim: “Quem pensa que existe um ser supremo criador e dominador das vontades, não pode ser considerado menos, nem mais, inteligente do que aquele que não acredita em tal existência. Crença e conhecimento são matérias diferentes, antagónicas, mas que podem coabitar pacificamente no mesmo cérebro. O pensamento e a sabedoria são duas matérias primas da Filosofia e podem funcionar como terapia do espírito. Ambos «curam» ou aliviam algumas das nossas maleitas. Os nossos maiores males, quando não são de ordem natural, provêm de imposições alheias que resultam em aflições sociais e económicas, ditadas pelo meio onde nos inserimos e que nos faz sofrer. Deste sofrimento não podemos sair unicamente por nossa livre vontade (não é o mesmo que sair do autocarro). Somos vulneráveis e, por isso, também buscadores constantes da satisfação e do consolo que cada um pode encontrar em lugares distintos. O apuro dessa satisfação e desse consolo passa, inevitavelmente, pela qualidade do nosso pensamento e da nossa sabedoria. O apuro dessa qualidade, não se conseguindo no ensino oficial, terá de ser procurado por cada um, vendo, ouvindo, lendo e pensando. Quem assim não procede sujeita-se à educação padronizada que modela a sociedade em que o indivíduo se insere e que é, por mor de outros interesses que não os seus, nivelada pela matriz dos valores sociais estabelecidos – isto é: invariavelmente, por baixo – tornando-nos massificados, transformando cada um de nós num modelo estereotipado como alvo à mercê de quem vive da exploração dos nossos sentimentos programados”.

A melhor escolha na vida é cada um informar-se e ilustrar-se para poder pensar pela sua própria cabeça, não se deixando anestesiar por discursos de quem nos quer convencer, sejam agentes religiosos ou políticos. Tais agentes estão, continuamente, em “modo pré-eleitoral” tentando pescar adeptos para os seus grupos. Ao ouvirmos o palavreado que debitam nos vários púlpitos… temos de os peneirar criteriosamente… para (como se diz no meu meio) não sermos “comidos por lorpas”!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV