Loading

Ricardo Alves

25 de Outubro, 2006 Ricardo Alves

Refutação de vários deuses (1)

Sou ateu porque aceito o universo tal como é: um sistema fechado no qual todos os acontecimentos são explicáveis pela natureza dos elementos constituintes, das suas interacções e das condições iniciais do próprio universo. Desta definição retiram-se como corolários a inexistência tanto de cada um dos deuses das diversas mitologias humanas, como de «espíritos», unicórnios invisíveis ou cães azuis que vivam do outro lado da Lua. Na sequência refutarei os diversos «deuses», partindo do mais «fraco» (o «Deus» exclusivamente conceptual), até ao mais «forte» (o «Deus» interventor dos teístas). Sendo ateu por educação, só conheço os deuses de que os crentes me falam, e devo confessar que ao longo da minha vida já ouvi as versões mais díspares sobre o conteúdo da palavra «Deus».

Nas conversas com crentes, o «Deus» que mais frequentemente me mencionam como sendo irrefutável é um mero conceito (e quanto mais vago melhor). Concretamente, alguns crentes dizem-me que não posso refutar a existência de uma entidade que não faz parte do nosso universo, mas que no entanto existe no seu «exterior» e poderia intervir no nosso mundo se quisesse. É evidente que concordo. Não posso refutar a existência de tal entidade, como não posso refutar a existência de unicórnios cor-de-rosa invisíveis que não respiram por cima do meu ombro, não transpiram, nem são feitos de matéria. E também não posso refutar a existência de quinze milhões de passarinhos que andem a voar em bando em redor do universo, trinando o hino nacional e defecando para fora do dito universo. Mas, honestamente, não conheço uma única religião que cultue o «Deus» conceptual ou os quinze milhões de passarinhos. E se não podemos usar o cocó dos passarinhos como fertilizante, ou se o dito «Deus» não intervém, seria totalmente inútil cultuá-los (quer aos passarinhos, quer ao «Deus» mudo e quedo).

Seguidamente, existe quem acredite no «Deus» dos deístas, que teria criado o universo, tendo-se depois remetido a uma inacção digna do «Deus» conceptual. Assume-se geralmente que este «Deus» sabia o que fazia, e que portanto teria soprado a «grande bolha» com os parâmetros físicos intencionalmente regulados para permitir a aparição de vida na Terra (ah, a vaidade…), tendo depois ficado a fazer cera. A ideia tem o problema de que, para prever a evolução do nosso universo, «Deus» teria que dispor ou de uma máquina que lhe permitisse calcular essa evolução, ou de uma inteligência própria suficiente para tal. Em qualquer dos casos, teria que usar um suporte material para os seus cálculos mais extenso e mais complexo do que o próprio universo «criado», o que exige que ele próprio tivesse sido criado por um «super-Deus», o qual por sua vez teria sido criado por um super-«super-Deus», e assim sucessivamente. Qualquer um destes super-deuses, para que pudesse ter capacidades observacionais e computacionais presentes em qualquer ponto do universo instantaneamente, violaria a relatividade restrita e a relatividade generalizada todos os dias de manhãzinha até à noite.

(continua)
23 de Outubro, 2006 Ricardo Alves

A hierarquia dos saberes segundo os religiosos

Nos argumentos dos religiosos, principalmente dos católicos, emerge frequentemente uma hierarquia dos saberes que merece ser compreendida. Tanto quanto entendo, a ideia será a seguinte: a «metafísica» (entendida exclusivamente como teologia) está «acima» da filosofia e da ciência. Logo, as duas últimas serão determinadas pela primeira. Assim, a filosofia e a ciência deveriam aceitar ser corrigidas pelos dogmas «metafísicos» dos religiosos.

Esta cosmovisão repousa geralmente na crença de que o universo foi criado por uma entidade divina, com um propósito benigno, e que portanto existe nele um imperativo ético. Tem o apelo psicológico de assegurar que as piores calamidades deste mundo (terramotos, fomes generalizadas, genocídios…) estão «divinamente» ordenadas, e que portanto são meros acidentes de percurso cuja necessidade e oculta bondade serão compreendidas mais à frente. A religião constitui-se assim num poderoso anestesiante social da contestação ou de qualquer crise, conformando os relapsos com a «ordem natural das coisas».

Esta visão da realidade, apesar dos seus benefícios para o conforto emocional dos crentes e para o conformismo social, está errada. Os princípios que organizam o universo não têm sido descobertos assumindo deuses ad hoc ou presumindo a bondade das estrelas e dos tubarões. Nenhum dos textos sagrados das várias religiões do mundo alguma vez possibilitou a mais pequena descoberta científica. E tanto quanto sabemos, a própria ideia de divindade é uma criação humana, que se pode estudar e cuja sobrevivência na sociedade depende do poder das ilusões que cria. Portanto, apenas a ciência, que é basicamente o método de corrigir o nosso conhecimento da realidade pela experiência e pela investigação abstracta, poderá explicar a religião. Jamais se verá o contrário.
20 de Outubro, 2006 Ricardo Alves

Dar o tom, tocar a música, coreografar a dança

A Conferência Episcopal Portuguesa, do alto da sua conhecida experiência e saber em matérias científicas, médicas, contraceptivas e sexuais, publicou uma nota pastoral sobre a despenalização da IVG poucos minutos depois da aprovação do referendo na Assembleia da República.

A estratégia da ICAR é conhecida e já resultou uma vez: começa-se por negar que a despenalização do aborto seja uma questão política (como se a legislação criminal e penal não fosse coutada dos parlamentos democráticos), com o argumento de que se trata de «moral natural» (a «moral natural» é tão «natural» como as «lei naturais», os «tribunais naturais», as «prisões naturais», os «impostos naturais» e os «hospitais naturais»). Sugere-se em seguida que os partidos e as «correntes de opinião» não devem interferir na votação (tentando deslegitimar a laica autonomia do poder político)… O objectivo, claríssimo, é transportar um assunto político e jurídico para o campo ético onde o peso da religião tradicional espera poder influenciar decisivamente as consciências. Acrescenta-se ainda, na nota pastoral, que «a vida não é referendável», como se a ideia de referendar a IVG não tivesse partido, originalmente, de dois católicos desagradados com o resultado de uma votação parlamentar. Garante-se que os bispos não participarão em qualquer «campanha de tipo político», mas ameaça-se que «esclarecerão consciências» (haverá diferença prática?). E finalmente alude-se «ao dinheiro de todos os cidadãos» e repete-se que a «a lei actual (já) é permissiva». Em resumo: não se cede um milímetro.

A resposta aos senhores bispos e aos que dançarão a sua música deve ser clara: as leis de uma República democrática são decididas pelos cidadãos e pelos seus representantes. A República é independente das igrejas e as «leis divinas» (agora alcunhadas de «naturais») só podem obrigar os crentes, e apenas enquanto não contradisserem as leis do Estado. Este referendo é sobre leis humanas.

19 de Outubro, 2006 Ricardo Alves

Aprovado o referendo sobre a despenalização do aborto

Uma proposta de referendo sobre a interrupção voluntária de gravidez foi hoje aprovada na Assembleia da República com os votos a favor do PS, do PSD e do BE, a abstenção do CDS e os votos contra do PCP e do PEV. As deputadas católicas fundamentalistas da bancada do PS dividiram-se entre a abstenção (Maria do Rosário Carneiro e Teresa Venda), e o voto contra (Matilde Sousa Franco). Na bancada do PSD, Ribeiro Cristóvão absteve-se e Quartim Graça votou contra.

A pergunta será: «Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?».

O possível referendo depende ainda da promulgação do presidente da República.

15 de Outubro, 2006 Ricardo Alves

A ICAR na guerra civil de Espanha

«A cruzada mais elevada que os séculos já viram… uma cruzada onde a intervenção divina a nosso favor é bem patente» (Bispo de Pamplona)
«[A guerra civil é] cem vezes mais importante e sagrada do que o foi a Reconquista» (Bispo de Segóvia)
«A guerra foi pedida pelo Sagrado Coração de Jesus que deu forças aos braços dos soldados de Franco» (Arcebispo de Valência)
12 de Outubro, 2006 Ricardo Alves

Ortiga contra Policarpo

Jorge Ortiga, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), disse ontem que o aborto «tem que ser também uma questão religiosa». O arcebispo de Braga da ICAR entrou assim em clara contradição com o cardeal-patriarca de Lisboa da mesma igreja, José Policarpo, que afirmara recentemente que o aborto «não é um problema religioso».

As divergências teológicas entre estas duas figuras reflectem-se nas questões operacionais: enquanto Policarpo, o anterior presidente da CEP, afirmou que «queria que fossem os leigos, os pais de família e os médicos a liderar a campanha do “não”», o actual presidente da mesma CEP garante que a ICAR «não se alheará» da campanha anti-escolha e pró-prisão, e não descarta a participação activa da sua seita e o exercício da manipulação religiosa, prometendo explicitamente que «[irá] alertar todos os cidadãos para que votem em consciência e de acordo com a sua fé».

Os dois homens que dirigem a mais importante organização autoritária de Portugal aparecem assim divididos entre a postura mais fundamentalista do bispo bracarense e a atitude mais cautelosa do bispo lisboeta…
4 de Outubro, 2006 Ricardo Alves

Religião, teorias de conspiração e aproveitamentos

As teorias de conspiração podem originar literatura fascinante, mas são tão alienantes como a religião. Fascinam porque estabelecem ligações imprevistas, mesmo que falsas ou tremendamente especulativas. E alienam porque suspendem a nossa incredulidade explorando o nosso desejo e o nosso medo de que exista uma ordem oculta no universo.

A realidade da existência de uma ou várias redes terroristas islamo-fascistas, responsáveis pelo 11 de Setembro e pelo 11 de Março, é inegável. É também um facto que esses grupos são a ala armada de um movimento islamista mais vasto (embora minoritário nos países de origem), estruturado essencialmente pela Irmandade Muçulmana e pelo dinheiro saudita, e que controla escolas, instituições de caridade e partidos políticos. A teocracia iraniana desempenha um papel estruturante no lado xiíta, minoritário dentro do Islão.

No entanto, atribuir à Al-Qaeda capacidade militar para conquistar a Europa, ou olhar para os imigrantes muçulmanos como a vanguarda de uma invasão programada, ou falar da Europa como um protectorado islâmico, são delírios paranóides que relevam de preconceitos racistas, da angústia demográfica, de entusiasmo deslocado pelas aventuras militares dos EUA e de Israel, ou da obsessão identitária com a «civilização ocidental e cristã».

Nos anos 20 e 30 do século passado, a extrema direita afirmou-se na Europa, manipulando um anti-semitismo que se alimentava de teorias sobre uma «conspiração judaica internacional», na qual participariam organizações reais (mas débeis), e minorias urbanas que só lhes estavam ligadas pela mesma abstracção religiosa.

Hoje, o mesmo sector político tem interesse em conjugar os sentimentos islamófobos, o apoio a guerras de conquista e o apelo identitário-conservador cristão. Existe uma diferença fundamental entre quem ataca simultaneamente uma religião e as suas primeiras vítimas (os próprios crentes), estimulando o racismo, e quem critica todas as religiões por princípio, promovendo a laicidade.

[Diário Ateísta/Esquerda Republicana]
2 de Outubro, 2006 Ricardo Alves

Quem é o jovem?

Quem é aquele jovem ali atrás?

Dou duas pistas: na fotografia, está de férias na Suécia; e viria a tornar-se um importante líder religioso, uma referência para milhões de pessoas…

Adenda: é evidente que se trata do jovem Ossama Bin Laden com os seus irmãos e irmãs, em 1971.

1 de Outubro, 2006 Ricardo Alves

O «Correio da Manhã» converteu-se

Segundo o Público de 29 de Setembro de 2006 (página 54), «o Correio da Manhã elaborou, pela primeira vez, um estatuto editorial (…) [que] reafirma uma série de princípios gerais, próprios da prática jornalística», mas atenção, há uma novidade:
  • «O Correio da Manhã apoiará de forma firme a instituição Família, o direito à Vida e assume o seu apreço pelas raízes cristãs da sociedade portuguesa».
Portanto, ficais todos avisados: a partir de agora, não haverá mais maminhas, este-dorme-com-aquela nem «pipinha foge de casa com Romeu» nas páginas do mais vendido dos tablóides portugueses. Ou bem que há raízes ou não há moralidade.
29 de Setembro, 2006 Ricardo Alves

Como a Europa trata os laicistas magrebinos

Anas El Jazouli, um militante laicicista marroquino, está em risco de ser expulso de França. Em Marrocos, organizou o concurso de Miss Marrocos em 2002 e foi consequentemente ameaçado de morte e alvo de uma fatwa lançada pelo cheique Abdesslam Yassine, o líder do movimento islamista Al Adl Wa Al Ihssane. À época, o jornal islamista Al Tajdid chamou-lhe «o Salman Rushdie marroquino».

O actual Ministro do Interior francês, Nicolas Sarkozy, restringiu as regras do asilo político que poderão agora levar à expulsão para Marrocos deste laicista magrebino.