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As responsabilidades e a fuga

O mito central do cristianismo pode ser lido como uma alegoria sobre a transferência de responsabilidades. Segundo a interpretação mais difundida, Jesus Cristo teria morrido pelos «pecados» da humanidade inteira, «pecados» que não cometera e pelos quais não era responsável. Obviamente, os «pecados» incluem desde comportamentos inócuos e até banalizados na nossa civilização (como relações sexuais consentidas entre adultos), até actos que serão sempre crime em todas as sociedades (como o homicídio). Há duas formas diferentes de encarar o sacrifício crístico: ou se o entende como um heróico exemplo a seguir, e portanto deve-se assumir a responsabilidade pelos próprios actos e até pelos de outrém (e estar disponível para sofrer as consequências), ou pelo contrário transferem-se as responsabilidades para uma entidade transcendente («Cristo morreu por nós, e só a Deus prestamos contas»).

Ratzinger publicou ontem o seu documento sobre os abusos sexuais cometidos por padres irlandeses. A «imprensa amiga» tenta convencer-nos de que «assumiu a responsabilidade». Nada mais falso: Ratzinger nada disse, por exemplo, sobre a carta que ele próprio escreveu em 2001, enquanto prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, a exigir o «segredo clerical» para as denúncias de abuso sexual de menores dentro da ICAR. Nessa época, não recomendava a colaboração com tribunais civis. Também não assumiu, que eu saiba, a responsabilidade por um caso em que teve responsabilidade directa: o acolhimento de um padre pedófilo em Munique quando aí era arcebispo.

Os católicos dir-me-ão que o seu Papa exorta (agora…) à «cooperação» com os tribunais civis.  É verdade, e é um passo católico no sentido da civilização. Mas ele próprio poderia dar o exemplo, e não o faz. Enquanto prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, presume-se que terá tido conhecimento de muitos casos de abuso sexual. Sobre os quais, que se saiba, ainda não «cooperou» com as autoridades civis. Poderia seguir o exemplo de Cristo, e sacrificar-se sofrendo as consequências, mas prestando à vítimas uma ajuda efectiva. Pelo contrário, prefere uma «oração» pela ICAR na Irlanda, a qual, do ponto de vista das vítimas, me parece que não serve rigorosamente para nada.

Ratzinger perdeu também uma oportunidade para reflectir sobre a desproporção de abusadores de menores entre os sacerdotes, por comparação com a população masculina em geral. Como indicam os números avançados pelo Ludwig Krippahl, 4% dos padres (nos EUA) serão abusadores. Poderá estar ao alcance de Ratzinger alterar uma das possíveis causas para esta elevada taxa de pedofilia entre os sacerdotes católicos: o celibato. Não é um dogma de fé, e há padres católicos casados (padres católicos ex-protestantes, entre outros casos). Como até alguns padres assumem, o voto de castidade é contra natura. E pode potenciar ou exacerbar comportamentos anómalos. Ratzinger poderia também reflectir sobre a possível existência de uma cultura de abuso sexual nos seminários e nos colégios internos exclusivamente masculinos, transmitida de geração em geração. Saberá mais sobre isso do que eu, mas nada disse.

Globalmente,Ratzinger não faz o sacrifício heróico de assumir a responsabilidade perante a justiça terrestre pelos crimes do seu clero, e aconselha vítimas de abusos sexuais cometidos por padres cristãos a identificarem-se com Cristo, recomendando-lhes orações (ou seja, transfere a justiça para o «Céu»). O que pode ser visto como um exercício de fuga às responsabilidades, e até de requintado cinismo.

[Diário Ateísta/Esquerda Republicana]