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Perseguições e mitos III

Continuo os dois artigos antecedentes, onde expus os mitos que predominavam na sociedade romana imperial sobre o cristianismo, sendo que alguns deles já foram analisados e desmontados. Espero com este artigo dar conclusão à série.

O último artigo não chegou a analisar as acusações de orgias incestuosas e como tal vamos começar por aí.

A explicação habitual para estes rumores é que os pagãos faziam confusão entre seita cristã e certos movimentos gnósticos. Mas as provas disso não são muito sólidas. Irenaeus, escrevendo depois do massacre de Lyons, afirma que os cristãos foram confundidos com os carpocratianos(1), que eram uma seita gnóstica que supostamente não reconheceria os conceitos de bem e mal e como tal seriam promíscuos. No entanto foi Clemente de Alexandria, em cerca de 200 DC, que primeiro associou o rumor de orgias ao movimentos dos carpocratianos(2). Eusébius, dois séculos mais tarde, repete exactamente os mesmo rumores citando exactamente as mesmas fontes. Independentemente da veracidade dos rumores à volta dos carpocratianos as acusações omnipresentes de orgias incestuosas que eram lançadas aos cristãos não podem ser explicadas de forma credível por uma confusão com uma qualquer seita obscura.

A explicação mais provável é novamente uma mistura de dois elementos: a realidade de um ritual religioso cristão misturado com um estereótipo já existente. O ritual em questão era a ágape, o festim do amor. Durante os dois primeiros séculos de cristianismo era prática comum um cidadão privado convidar cristãos baptizados para uma refeição comunal. A refeição era suposto ser uma celebração de fraternidade cristã e incluía a celebração da eucaristia. A orgia imaginária descrita por Minucius Felix era precisamente a caricatura deste ritual. A verdade é que a celebração da ágape era muitas vezes motivo para comer e beber em excesso (todo o processo era catalisado por visões da segunda vinda de Cristo que, como sempre, para os cristãos primitivos era algo que estaria para muito breve) mas não para ritos orgiásticos. Esses fazem parte do segundo elemento da explicação: o mito pagão da bacanália. Supostamente a bacanália seria um ritual religioso que foi importado da Grécia para a Etrúria e depois levado para Roma e aí o culto teria crescido em dimensão até incluir orgias nocturnas em larga escala. Em 186 AC o Senado chegou mesmo a aprovar legislação a proibir a bacanália. Veja-se o que Tito Livio diz sobre o tema:

«Existiam ritos iniciáticos…Ao elemento religioso foram adicionados os prazeres do vinho e do festim para que maior número de mentes pudesse ser atraído. Quando o vinho já tinha inflamado as suas mentes e a noite e a mistura entre machos e fêmeas, novos e velhos já tinha destruído qualquer sentimento de modéstia todos os tipos de corrupção começaram a ser praticados, já que cada um tinha ao seu dispor o prazer para o qual a sua natureza mais se inclinava… Se algum deles não estava inclinado para ser abusado ou se mostrava relutante em cometer um crime ele era sacrificado como uma vitima. Considerar que não existe mal… era a mais alta forma de devoção religiosa que existia entre eles.»(3)

Mas a bacanália não foi condenada apenas como uma orgia com traços homicidas. O cônsul romano encarregue de esclarecer o povo afirma ainda o seguinte:

«Eles ainda não revelaram todos os crimes dos quais foram parte…o mal cresce diariamente e expande-se para o exterior. Neste momento ele já é demasiado grande para poder ser considerado como um assunto puramente privado: o seu objectivo é o controlo do estado…Agora como indivíduos eles têm medo vós, reunidos aqui nesta assembleia: quando voltarem para as vossas casas e quintas eles irão reunir-se e vão tomar medidas que serão simultaneamente para a sua própria protecção e para a vossa destruição: e aí vocês, como indivíduos, terão que os temer enquanto grupo… nada é mais enganador em aparência do que uma falsa religião.»(4)

Em resumo: os participantes da bacanália eram considerados como conspiradores políticos e como tal o Senado tomou acção rápida e brutal para suprimir a bacanália. Independentemente da sua supressão o que isto prova é que ao assimilarem a ágape à bacanália os romanos pagãos estavam mais uma vez a considerar os cristãos como conspiradores sedentos de poder (sendo em tudo semelhantes às acusações de canibalismo).

Todas as acusações que vimos até agora (orgias incestuosas, canibalismo, infanticídio ritual e regular) apontam numa mesma direcção: desumanizar os cristãos até eles se transformarem na incarnação de tudo o que era considerado pelos romanos como anti-humano.

A explicação para tudo isto está na absoluta incompatibilidade do cristianismo primitivo com a religião de estado romana. Para os romanos a religião não era uma questão de devoção pessoal mas antes uma espécie de culto nacional em que os deuses eram os protectores de Roma e os detentores dos altos cargos da nação sempre foram identificados com os deuses. Com o advento do Império e a deificação do Imperador (em parte derivada da tradição romana de poder e em parte da tradição grega de monarcas divinizados) as diferenças tornaram-se ainda mais óbvias. O culto Imperial unia o mundo romano, o aniversário do imperador era um feriado nacional e os deuses nacionais transformaram-se na garantia da eternidade do Império. Ao negarem violentamente todo este passado e estas ligações os cristãos tornaram-se impopulares, isolados, temidos e odiados. Eles efectivamente não faziam parte do mundo greco-romano.

Eventualmente com a conversão de membros da aristocracia Imperial e de um grande número de plebeus o cristianismo ganhou aceitação no mundo. Tornou-se impossível acusar os grandes senhores e senhoras de conspiração contra o estado devido à sua conversão ao cristianismo. Ao mesmo tempo que o número de conversões aumentava exponencialmente a Igreja ganhava poder, os bispos tornaram-se jogadores na arena da política Imperial e não estando contentes com isso acabaram por levar a cabo a solução final para o paganismo: a erradicação.

A história da perseguição do cristianismo primitivo foi o prelúdio para o que se seguiu em séculos posteriores. Os mitos que alimentaram as perseguições aos pais da Igreja mutaram e foram usados como munição contra outros. A partir do momento que a Europa é cristianizada (com a excepção do norte e leste da Europa que permaneceram ferozmente pagãos até muito tarde) e o poder da Igreja começa a aumentar as acusações de heresia tornam-se comuns, nasce a figura sinistra da Inquisição, os templários são destruídos sob acusação de manterem pactos demoníacos e praticarem sodomia e, por fim, todo este mundo de mitos, medo e política culmina na insana cruzada contra as bruxas nos séculos XVI e XVII.

(1)- Irenaeus, Adversus Haereses, lib. I, cap. XXV
(2)- Clemente de Alexandria, Stromateis, lib. III, cap.II
(3)- Livio, Ab urbe condita, lib. XXXIX, cap. VIII
(4)- Livio, Ab urbe condita, lib. XXXIX, cap. XVI