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Ateísmo

Dizer que o ateísmo é um fenómeno contemporâneo, é uma ideia falsa, que um adjectivo pode tornar verdadeira. O ateísmo data de há pelo menos dois mil cento e cinquenta anos, mas o ateísmo militante, tem apenas um século e meio. 

A negação da existência de Deus já estava presente na Grécia e na India no primeiro milénio Antes da Nossa Era. No tempo de Buda (agnótisco mas não ateu), a India tinha os seus materialistas que, através do seu mestre pensador, Ajita Keshakambala, negavam a ideia de reincarnação em função dos méritos: Os cépticos, discípulos de Sanjaya Belatthaputta, achavam impossível (tal como os seus homólogos na Grécia) ter uma certeza do que se passava no “lado de lá”. Os hebreus também tinham os seus ateus. «não existe Deus», diziam os homens «presunçosos» ou «loucos» (Salmos 10,4 e 14,1). mas talvez estes ateus fossem apenas fiéis de um ídolo porque «pregam sobre os não-deuses» (Jeremias 5,7) e renegam o Deus de Israel.

A questão da existência de Deus está ligada, no mundo antigo e no moderno, à recompensa do Bem e à punição do Mal. A partir da época (século VI, A.N.E.) em que se expande, tanto na India como no Próximo Oriente, a crença numa vida futura melhor para os justos e não tão boa para os maus, as injustiças deste mundo deixam de estar automaticamente na origem de uma atitude de incredulidade. Muitos são, no entanto, os que continuam a desejar uma retribuição na terra, como os sábios da Bíblia, Job e Qohélet, que confundiam a dúvida com a fé e vêem no triunfo do Mal a vaidade do mundo e a vacuidade do Bem. O Corão associa igualmente a existência de Deus à recompensa dos crentes: «Não há dúvida quanto a isso mas uma parte não sabe… Dizem: a única vida que existe é a actual» (salmo 45,24). Estes não-crentes podem ser «idólatras» (são mais heterodoxos do que os ateus) mas também muçulmanos cépticos, leia-se ímpios. No século XII, o poeta iraniano Omar Khayyam escreveu: «No xadrez da existência, somos votados aos nossos jogos para cairmos no vazio de um baú.» Entre os amores interditos e a proibição do álcool, muitos poetas árabes ou persas confundem descrença com libertinagem.

Esta mistura é também denunciada na França de Luís XIV por vários predicadores e, sobretudo, por Bossuet: «Il y a un atheísme caché dans tous les coeurs qui se répand dans toutes les actions» (Pensées détachées). «Les athées et les libertins… disent ouvertement que les choses vont au hasard et à l`aventure, sans ordre, sans gouvernement, sans conduit superieure.» Mas falar abertamente pode conduzir à morte: em 1776, o cavaleiro de La Barre, de desanove anos, foi decapitado em Paris por não ter descoberto a cabeça à passagem de uma procissão. O medo do martírio sustém os ateus, porventura mais numerosos do que os raros «espíritos fortes» que confessam a sua não-crença.

O século XIX assiste ao nascimento de um ateísmo menos centrado na moral que no social, resumido na frase do socialista Blanqui: «Nem Deus nem mestre.» O ateísmo “militante” dos tempos modernos, por oposição ao ateísmo “pessoal” das épocas anteriores, toca o coração das multidões «supersticiosas» em que se transformaram as massas trabalhadoras. Estas são levadas a questionar os religiosos ociosos, imorais porque associais. Quanto à libertinagem de antanho, classificamo-la menos como ateísmo do que como hedonismo. Pode dizer-se que ela suscita mesmo uma nostalgia do ideal ateu e da sua moral laica. Entre a esperança e a desilusão, estes homens lúcidos são a um tempo crentes e ateus. Como se em cada crente houvesse um ateu incrédulo disfarçado.

*adaptado: Odon Vallet. Pequeno livro das ideias falsas sobre as religiões.