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Da Servidão Voluntária

 Que os déspotas desapareçam, uma vez que tal é o seu destino terrestre, pois «se invocam o céu, é para usurpar a Terra» dirá, com justiça Robespierre.

Não há monumento à tirania que não tenha sido erguido pela servidão voluntária. Não foram a morte, nem a doença, nem a miséria, a fraqueza ou o sofrimento, que levaram os homens a inventar este Deus cuja imortalidade os desafia, como se não fossem dignos de tal favor. Foram as condições que lhe foram impostas, de morrer por si próprios, de produzirem o seu próprio infortúnio, de se aviltarem e de se mutilarem voluntariamente.

A fraqueza do homem não é mais do que uma impotência aceite, uma resignação indulgentemente subjugada aos interesses de uma minoria. A Mentira Celeste limita-se apenas a legitimar a exploração dos que por covardia se resignam. Não é pois de espantar que após ter substituído o Deus dos pogroms pelo Deus dos gulags, a parte mais servil do povo russo voltou para o primeiro, que tem sobre Estaline a vantagem do tempo. Nenhuma tirania é suficientemente forte para subjugar milhões de pessoas, sem ajuda da religião ou da escravatura. Acontece que uma corresponde à outra. A religião é a forma mais acabada de desprezo em que os homens se oprimem. Ela reflecte-se na glorificação castradora da exaltação do sofrimento que na mitologia cristã se ilustrará, com um júbilo mórbido, pela repugnante efígie do seu messias Jesus esquartejado na árvore morta da cruz.

Os deuses são a verdade do mundo invertido. Eles reinam sobre o corpo mutilado, unem-lhe os bocados, tratam com solicitude as chagas que inflingem, eles são, ao mesmo tempo, médicos e algozes. Se a barbárie e a crueldade são inerentes a todas as religiões é porque não se pode guerrear contra si próprio sem guerrear com os outros. Não é por acaso que durante estes dois mil anos de cristianismo agressivo e lacrimoso, os homens compenetrados da injunção evangélica, «amai-vos uns aos outros» se tornaram nos seus próprios assassinos. Usurpadores e usurpados, exploradores e explorados tecem em conjunto os tecidos com que são feitos os sudários do género humano, permitindo-lhes continuar eufeudados a uma realeza do Além, a um império invisível com que identificam a sua realidade simbólica. Sempre prontos a justificar uma realiddade humanamente inaceitável, os “funcionários” dos deuses explicam, pela angústia universal da morte, a crença em divindades imortais que se arrogam o privilégio de atribuir ou subtrair a existência às suas criaturas, como o homem faria a um animalejo que pouparia por compaixão ou esmagaria por inadvertência, por fobia, ou por crueldade deliberada.

Fazendo de anjo, a religião propaga a besta. Não a besta livre e selvagem, mas a besta desnaturada pelo espírito, a bruteza sanguinária que tortura, esfomeia, maltrata, mortifica, viola e mata em nome de Deus, de um Ideal Celeste, de uma Causa Suprema, do Metal imanente da Transubstanciação. O ódio e o medo da animalidade fizeram do homem um ser amedrontado e odiento que se conduz face aos seus semelhantes como face a bestas arbitráriamente exploráveis, descarregando sobre elas o ressentimento que a repressão da sua parte animal suscita. Ao imputar ao homem a tendência natural para o pecado, como se este, comportasse uma espécie de defeito de fabrico, o Cristanismo tornou-se o “acidente de percurso na evolução do homem, entravou o seu progresso enquanto criador, subjugando o seu génio ao instinto predador de uma elite hierarquizada criadora de escravos, deuses e senhores.

O que há de impiedoso na religião é que ela é o espírito da desnaturação absoluta. Não lhe basta dar a sua caução sagrada a um universo submetido ao lucro e ao poder, legitimando como um princípio eterno o direito a subjugar, humilhar, desprezar e destruir, é preciso que preconize no campo ainda adverso a beleza da morte, do sofrimento e do sacrifício até nas revoltas que lhe ocorre encorajar, até na insubmissão que, por vezes, concede aos povos tiranizados, até nos seus acessos de tolerância que Cioran ironizava quando escreve. «O grau de desumanidade de uma religião assegura-lhe a força e a duração.»

Talvez tenha chegado o tempo de saudar todos os judeus que se insurgiram contra a religião hebraica da qual brotou este quisto-cebáceo chamado Cristianismo. Ao lado de Espinoza, Uriel Da Costa, de Marx, de revolucionários do Bund, de todos aqueles que nasceram judeus como se nasce picardo ou escocês e se preocupam apenas em ser homens, é preciso contar com Simão de Samaria, filósofo do século I, que a calúnia cristã disfarçou, sob o nome de Simão, “o Mágico”, com as lendas mais ridículas, não hesitando em o meter em cena para dar crédito à existência desse Josué, em grego Jesus, do qual se procuraria em vão o mínimo vestígio histórico.

 * adaptado de: Vaneigem Raoul. Da (in)humanidade da religião.

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