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Dia: 23 de Julho, 2010

23 de Julho, 2010 Ludwig Krippahl

Previsões

No sentido comum do termo, uma previsão é acerca do futuro. Não se prevê o passado nem o presente. Mas em ciência esta palavra tem um sentido diferente que gera alguma confusão. A previsão científica é aquilo um modelo diz acerca do que se pode observar, quer venha ainda a ocorrer quer tenha ocorrido no passado. Por exemplo, podemos dizer que um modelo cosmológico prevê uma certa frequência de supernovas mesmo apesar das supernovas que observarmos já terem explodido há centenas ou milhares de milhões de anos.

Esta ideia de inferir de modelos aquilo que se vai observar foi um passo importante no conhecimento. Antigamente o saber era listas de factos, que já é alguma coisa mas tem uma utilidade limitada. Os egípcios aprenderam a construir pirâmides depois de vários fracassos, até acertarem nas proporções. Depois fizeram daquela maneira. Só nos últimos séculos é que se criou modelos que permitem prever se uma estrutura se aguentam antes de a construir. Unificar os dados num modelo capaz de explicar e dizer mais alguma coisa é muito melhor do que saber apenas o que já foi testado.

Isto é importante não só para poder usar os modelos como para detectar e corrigir erros. Se o modelo que concebemos é que os seres vivos foram criados por milagre, ou que o Diabo anda por aí a fazer maldades às escondidas, além de não nos dizer nada de útil podemos estar redondamente enganados e nunca o descobrir. É como passar a vida julgando-se perseguido por anões invisíveis.

E a previsão, neste sentido, separa radicalmente as religiões da filosofia e ciência. No sentido coloquial as religiões têm previsões. Aos molhos. O livro do Apocalipse, por exemplo, prevê uma data de coisas estranhas. Mas não são previsões no sentido científico, de inferências que partam de modelos testáveis. Essas as religiões evitam porque perceber não lhes serve; o que faz perdurar uma tradição religiosa é a memorização, a aceitação do “saber” autoritário e o mistério. Em 1950, Pio XII declarou que Maria tinha ascendido ao Céu de corpo e alma. Não porque este modelo do suposto acontecimento unifique dados e preveja correctamente o que se venha a observar, mas pela «autoridade de nosso Senhor Jesus Cristo, dos bem-aventurados apóstolos s. Pedro e s. Paulo»(1) e do Papa.

E muita gente acreditou.

Mas já uns séculos antes do filho do carpinteiro ter inspirado a moda uns gregos acharam que a sabedoria devia ser mais do que ir na cantiga dos sacerdotes. E começaram a formar ideias que lhes pudessem dizer alguma coisa testável acerca da realidade. O sucesso foi limitado, é verdade, e hoje em dia muitos consideram que a filosofia é mera especulação de sofá. Muita, infelizmente, até é. Mas, em parte, a classificação é injusta. No tempo de Demócrito ou Aristóteles não se conseguia perceber de que é feita a matéria ou porque as coisas caem. Faltava aprender muita coisa até que lá chegar. Mas eles tentaram. Tentaram dissecar o problema, compreender o que faltava saber e perceber como se pode discutir essas questões sem inventar autoridades ou ficar atolado em especulações vazias. E, séculos mais tarde, isso deu resultado.

O que prejudica a imagem da filosofia é que quando finalmente consegue criar modelos úteis passa a chamar-se ciência. Com o passar dos séculos, a filosofia mirrou do estudo de tudo ao estudo de umas poucas coisas problemáticas como a consciência, que ainda não sabemos onde encaixar na realidade, ou a ética, em que a realidade pouco ajuda*. Foi um enorme sucesso mas parece um fracasso.

As religiões ficaram de fora. De propósito. Ou fincam o pé em “factos” claramente contrários ao que se observa, como a Terra ter só uns milhares de anos e os fósseis terem sido depositados num dilúvio tão mágico que separou os grãos de pólen em estratos de acordo com a espécie de cada um. Ou se dedicam a especular sobre o que nunca se pode saber, como um outro mundo onde vive o Diabo, uma carrada de santos e a virgem Maria. Que ainda deve ser virgem, coitada, sendo única pessoa com corpo no meio de almas insubstanciais**. E ficam de fora porque as únicas previsões que fazem é que o mundo está quase a acabar – outra vez – e até isso inventam na altura.

* E uma carrada de tretas. Mas isso é inevitável quando não se tem forma de testar os modelos.
** A menos que lá apareça um bombista suicida. Estas coisas são um bocado confusas…

1- Vaticano, Definição do dogma da assunção de Nossa Senhora em corpo e alma ao Céu.

Em simultâneo no Que Treta!

23 de Julho, 2010 Fernandes

O Regresso de Deus

Uma das piores coisas neste mundo, é a construção de ilusões, elas conduzem ao auto-engano. Que o digam os políticos, que o digamos nós. O papa polaco e o seu mentor Joseph Ratzinger, elucidaram-nos respectivamente às “ilusões” da Igreja.

A especulação teológica ao serviço da fé pode entregar-se a todo o tipo de “jogos semânticos”, abusando da interpretação simbólica. O magistério da “infalibilidade” está aí, mas sabemos que quando tentamos passar da retórica aos factos concretos, os falsos concordismos da teologia caem por terra.

A natureza híbrida e contraditória dos dogmas eclesiásticos, permite amplas ambiguidades. Mas tanto na esfera das “definições” como das “condutas”, existem limites inultrapassáveis, – se o catolicismo não quiser desaparecer. Chega uma altura em que as decisões sobre o divórcio, contracepção, homossexualidade, onanismo, feminismo, conflitos de classes, estrutura hierárquica e outras questões mais ou menos graves se impõem, e estas não admitem ambiguidades, se se quer uma moral despida de dogmas.

Os chamados “cristão progressistas”, confrontados dia atrás dia, com os avanços da ciência – onde incluímos a investigação histórica -, foram perdendo a sua fé nos dogmas. Os mais audazes não tiveram dúvidas em reduzir a sua fé pessoal a uma mera crença num Jesus divino. Naturalmente que isto equivale a anular a especificidade do “mistério cristão” tal como foi produzido pela literatura neotestamentária – com as suas incongruências e contradições formalizadas desde o início do século II. Equivale por conseguinte a suprimir praticamente a “exclusividade” da verdade cristã. Não deve surpreender-nos portanto, que desde as dramáticas “vacilações” de Paulo VI até à tentativa de “restauração” de Paulo II; a Igreja tenha reagido violentamente contra um certo risco de dissolução.

Surgem assim os integrismos cristãos, que por razões óbvias criticam os valores da Ilustração e escolhem para inimigo o Humanismo Secular. Eles promovem e financiam correntes de pensamento que favorecem formas de autoritarismo, de emotivismo, de irracionalismo e alienação, que dissolvem os postulados da crítica racional. Tenta associar-se o “regresso de Deus” com a restauração neoconservadora de “obediência social”.

A verdade é que essas formas de pensamento têm como objectivo instalar ou reinstalar progressivamente, regimes de carácter Teocrático; com Deus e a Igreja no cume, com a tradicional concepção anti-democrática, autoritária e tradicionalista, rigidamente hierarquizada. A isto eles chamam pomposamente de; “novas formas de socialização”.

O “regresso de Deus” resulta assim, num fundamentalismo integrista que se limita a equipar a consciência íntima do explorado com os instrumentos psicológicos necessários para “forjar” uma “falsa” liberdade de consciência que lhe permita adaptar-se à ordem e disciplina estabelecida.

Um desses movimentos integrista/fundamentalista, é o Opus Dei, organização em que resultam patentes as afinidades entre o tradicionalismo integrista e a doutrina e prática social de vocação capitalista.

23 de Julho, 2010 Fernandes

A Igreja e a ditadura franquista

Como é sabido, a Igreja Católica exige o monopólio do mercado da fé, quando se encontra em maioria, e igualdade quando se encontra em minoria.

Na sua mensagem às cortes em 23 de Outubro de 1953, Franco definiu a base doutrinal da concordata: «Conceber a Igreja como sociedade perfeita, livre e independente, não é mais do que reconhecer as prerrogativas com que as dotou o seu Divino Fundador.» Este não era mais do que o reconhecimento implícito da supremacia da Igreja Católica.

O 2º artigo e seguintes, elucidam-nos sobre as consequências desta doutrina,  e enumeram as exorbitantes concessões económicas: «O Estado assumirá a construção e conservação de templos e seminários, comparticipará e cuidará dos mosteiros, colaborará no financiamento dos organismos de assistência para clérigos enfermos ou inválidos, e atribuirá uma pensão honrosa aos bispos reformados. Assumirá as despesas inerentes à criação das novas paróquias e dioceses e dos edifícios religiosos. Concederá ainda subvenções a ordens e institutos religiosos eclesiásticos de carácter missionário, assegurará a “assistência religiosa” nos centros e organismos sociais e forças armadas, e concederá outros privilégios no ensino público, meios de comunicação, na legislação canónica matrimonial e outros mais».

Neste Oásis de abundância, e já em vésperas do Concílio Vaticano II o Cardeal Quiroga Palacios, protótipo do prelado franquista, declarava: «A Igreja considera a colaboração Igreja-Estado, como “normal”, e olha-a como um ideal para o povo, […] só em circunstâncias excepcionais se pode admitir a separação entre estes dois poderes, como um mal menor».

Só após o Concílio Vaticano II, em Junho de 1967, é aprovada a Ley de Regulación del Ejericio Civil de la Libertad Religiosa.

O progressivo envelhecimento do Ditador, o esgotamento ideológico do regime, os crescentes ventos de liberdade reclamados pelos cidadãos e perante a insegurança na sucessão de Franco, a Igreja decide lançar-se numa paulatina “operação de afastamento”, do regime, típica da multi-secular tradição de oportunismo político e de ambiguidade ideológica que a caracterizam.

A reviravolta dos anos 60, as experiências dos “sacerdotes-obreros”, as manifestações de rua do Maio de 68 e alguns factores mais, galvanizaram os ânimos dos mais sensíveis. A verdade é que o almirante Carrero Blanco chegou a expressar a sua indignação, perante a ingratidão da Igreja, e passou-lhe factura detalhada das dívidas por esta contraídas durante mais de três décadas com o Estado. Mas Franco, no seu discurso de fim de ano apressou-se a dissipar todo o risco de enfrentamento.

Em Setembro de 1971 a Assembleia Conjunta de Bispos e Sacerdotes aprova o documento: “La Iglesia y la Comunidad” onde expressam um cauteloso propósito de emenda sobre a escandalosa presença de eclesiásticos nos órgãos do Estado (ditatorial).

Formalmente tudo seguiu igual pois a Igreja não renunciou a nenhum dos privilégios que conseguira no calor da guerra fratricida conduzida debaixo do signo da cruz. Assim o incontestado domínio da Igreja em todas as áreas da vida pública espanhola, permaneceu intocável.

Inicia então o processo de transição política que poderá classificar-se como frustrante. Em vez da renovação que implicava substituição daqueles que haviam encarnado o regime ditatorial, assiste-se a uma “fusão” dos novos dirigentes democráticos com os velhos franquistas, predominando a mentalidade, os interesses e as pessoas do velho regime.

O processo de “transição” tratou de transformar uma ditadura exausta e uma Igreja comprometida; numa democracia, lavando a cara e a história com a palavra “consenso” e as suas anestésicas virtudes. G. Morán escreveu na altura: « Desde os primeiros dias de 1976 que se inicia um processo de “desmemorização” colectiva. Não de esquecimento, senão de algo mais perigoso e voluntário, a capacidade de se tornar “desmemorizado”.

*fonte: Ojea, Gonzalo Puente. – Elogio del Ateísmo