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Treta da semana: A vida depois da morte.

Esta treta é antiga. Uma das mais antigas de todas. Mas decidi abordá-la hoje por ser, mais coisa menos coisa, o dia das mentiras. O que nos propõem é que depois de morrermos continuamos vivos. Porque ouviram dizer que sim. Não há dados fiáveis acerca dessa existência no além nem forma de ir lá ver e voltar. Mas algumas pessoas, como a amiga da Júlia Pinheiro, dizem que sim senhor, anda lá tudo muito contente, e muita gente diz que acredita. Não confia muito, a julgar pelo estado de espírito nos funerais. Mas diz que acredita.

A ideia é estranha logo à partida se pensarmos na vida antes da concepção. Nada. Alguns dizem que reencarnaram e que até se lembram das vidas passadas, quando eram o sapateiro de Napoleão ou um primo afastado de um dos apóstolos. Eu fui ver à ‘net, introduzi a minha data de nascimento e descobri que fui uma mulher que construia casas e catedrais na Nova Guiné por volta do ano 800 (1). É interessante. Mas parece-me pouco plausível.

Outros defendem que quando o óvulo e o espermatozóide se encontram – mas só os da nossa espécie – um deus faz rapidamente uma alma eterna e imortal e enfia-a, bem enroladinha, no zigoto em formação. Daqui concluem ser pecado fazer zigotos em tubos de ensaio. A premissa é um mero palpite, pois não sabem distinguir entre zigotos com alma e zigotos desalmados. Pior ainda, a inferência não faz sentido. Se a alma vai direitinha para o céu esta é a melhor maneira de garantir a salvação sem as provações e tentações da vida terrena. A menos que temam que Deus ponha almas em zigotos sem futuro para depois as deitar no inferno por falta do baptismo e do carimbo da paróquia. E tudo por amor, com certeza.

Mas além de ser mera especulação infundada, a hipótese da vida depois da morte é contrária ao que sabemos ser necessário à vida e, principalmente, à consciência. Viver exige capacidades, mudança, dinamismo, energia. A vida dura enquanto se equilibra na crista de uma onda de entropia. Algo que seja imaterial e eterno será forçosamente inerte. Sem vida.

E persistir além da morte não serve de nada se não mantivermos a nossa subjectividade. Sem sentir, pensar, decidir, recordar, imaginar, desejar, e essas coisas não tem piada nenhuma. E tudo isso, ao que sabemos, precisa de um cérebro funcional.

Apesar de supostamente termos alma logo na concepção, as primeiras recordações que guardamos surgem só vários meses depois do nascimento. Nascemos com o cérebro muito imaturo, não só nas ligações entre neurónios, que demoram mais de uma década a organizar-se, como nas células em si. É durante os meses após o nascimento que os neurónios se envolvem em mielina e começam a funcionar devidamente. Sem este passo não há pensamento, memórias, e possivelmente nem há sensações nem consciência.

As lesões no cérebro mostram bem como é improvável a consciência sobreviver à morte do corpo. Um AVC pode roubar-nos a memória, a capacidade de entender a linguagem ou de decidir e um traumatismo pode transformar por completo a personalidade. A doença de Alzheimer é um exemplo dramático disto tudo, uma lenta mas inexorável degeneração do cérebro que acaba por destruir tudo o que define a pessoa. O paciente começa por ter dificuldades de memória e atenção, perde capacidades cognitivas, vocabulário e coordenação motora, torna-se apático, a personalidade desvanece-se. Eventualmente já não há lá ninguém e o corpo morre. Se a alma ainda sobrar leva muito pouca coisa.

E se a ideia de uma vida com fim é desagradável, a ideia da eternidade, se a levarmos a sério, é insuportável. Um tédio tão assustador que até fez com que inventassem o budismo para se safarem das reencarnações intermináveis a que o hinduísmo condena. Antes o nirvana, abandonar tudo para encontrar a serenidade final de deixar de ser.

Hoje, centenas de milhões de pessoas celebram a vitória sobre a morte. Disseram-lhes que um deus conseguiu ressuscitar e, para algumas, isto até talvez seja um consolo. Mas esta ideia não serve para consolar. Esta coisa da vida depois da morte serve principalmente para comprar fiado. Dá-me toda a tua vida, dizem estas religiões, que depois de morreres logo deus te paga. Pois sim… Aqui, meus senhores, fiado só amanhã.

Boa Páscoa.

1- The Big View, Past life. «I don’t know how you feel about it, but you were female in your last earthly incarnation.You were born somewhere in the territory of modern New Guinea around the year 800. Your profession was that of a builder of houses, temples and cathedrals.»

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