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Treta da semana: a mediocridade do colunismo.

O Henrique Raposo, colunista do Expresso, escreveu esta semana sobre o Christopher Hitchens (1). Ou talvez tenha sido sobre o ateísmo. Ou sobre a «família de esquerdistas que deixou de pensar quando o fascismo e o nacionalismo acabaram na Europa.» Ou, se calhar, foi sobre outra coisa qualquer. Apesar de curto, mérito que lhe reconheço, o texto do Henrique anda por muitos lados sem chegar a parte nenhuma.

O título diz ser sobre a mediocridade do ateísmo mas o texto alega que Hitchens só ataca a religião porque é de esquerda, explica que Hitchens é zangado é preguiçoso e remata dizendo que Hitchens deve tudo a Deus. Não percebo como isso tornaria o ateísmo mais medíocre mesmo que fosse verdade. Não sei o que o Henrique julga que é o ateísmo, mas o meu não se torna medíocre por causa do Hitchens. Isto para mim não é pertencer a um clube de futebol ou a uma seita religiosa. O meu ateísmo é uma opinião minha, pelas minhas razões e se for medíocre a culpa é minha e não do Hitchens.

É irónico que o Henrique chame preguiçoso ao Hitchens quando «compara, de forma leviana, a religião ao fascismo» sem lembrar o «papel essencial da religião na luta contra os totalitarismos do século XX». É o típico exagero do protagonismo “da religião” (como se só houvesse uma). O que derrotou os totalitarismos do século XX foi a industria dos EUA e URSS nos anos 40 e a economia do ocidente nas décadas seguintes. Esses foram os factores mais importantes. Não foram os segredos de Fátima que derrubaram o muro de Berlim nem as forças armadas do Vaticano que tiraram Hitler do poder. E na entrevista que o Henrique refere, Hitchens apenas afirmou que «Nos anos 30 e 40 do século XX, diria que a mais perigosa era o catolicismo romano porque estava relacionado com o fascismo»(2). O apoio do Vaticano a Mussolini é um dado histórico bem estabelecido.

A acusação de preguiça é irónica porque basta um pouco de atenção para ver que várias seitas religiosas fundamentalistas, cristãs, muçulmanas e outras, adoptam elementos do fascismo. O nacionalismo, as formas de liderança, a revitalização pela violência e outros. E o próprio fascismo começou pela mistura de política e religião. Segundo Mussolini, o fascismo é «uma concepção religiosa na qual o homem é visto na sua relação imanente com uma lei superior e com uma Vontade objectiva que transcende o indivíduo e o eleva à participação consciente numa sociedade espiritual»(3). Isto e as milícias armadas dos fundamentalistas cristãos nos EUA, ou organizações como al Qaeda, mostram que a relação de certas religiões com o fascismo não é um capricho preguiçoso nem leviano do Hitchens. É uma tendência preocupante.

No fim, o Henrique Raposo remata com «nunca digo que sou ateu. Sou agnóstico. E, como agnóstico, digo que é mais fácil falar com um crente do que com um ateu. Aliás, é impossível dialogar com um ateu.» E pronto. Não explica o quê, nem porquê, nem como ser impossível dialogar com um ateu faz com que o Henrique já não saiba se existe ou não existe Deus.

O texto do Henrique é uma baralhada incoerente de alegações. Não se percebe se é por estar zangado ou por ser de esquerda que o Hitchens deixa de ter razão. Não explica o que os problemas do Hitchens possam ter que ver com a mediocridade do ateísmo. E ainda menos como é que o Henrique ficou agnóstico por causa disso. Reforça também a ideia que se deve ser agnóstico para não incomodar os crentes. Deus não existe, mas vamos todos dizer ah, não sei, a ver se ninguém se aborrece. E quanto a ser impossível dialogar com ateus, talvez fosse boa ideia experimentar primeiro. Isso, e pensar no que quer dizer antes de escrever e carregar em “publish”.

1- Expresso, A mediocridade do ateísmo. Obrigado a todos que me enviaram isto por email. O Raul Pereira também comentou isto neste post.
2- I, “A religião envenena tudo e não acaba porque somos egocêntricos”
3- Wikipedia, Neo-fascism and religion

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