Vale a pena
Vários religiosos, tanto amadores como profissionais, me têm dito que as minhas críticas às suas respectivas religiões são fúteis. Que não vale a pena criticar a religião da forma como eu critico. O que me parece estranho logo à partida. Se eu andasse a distribuir revistas sobre o ateísmo de porta em porta compreendia que dissessem não valer a pena estar a incomodar as pessoas e a estragar papel. Ou se o governo pagasse salários a ateus só para falarem de ateísmo em hospitais até concordava que era dinheiro mal gasto. Isso é coisa para cada um fazer por sua conta e não um serviço prestado ao estado. Mas eu não faço nada disso. Escrevo num blog, só lê quem quer, e se falo destas coisas em público é porque me convidam para o fazer. Parece-me estranho que se comente um post que não vale a pena só para dizer que não vale a pena.
E discordo da justificação. Dizem que as minhas criticas são fúteis porque só critico caricaturas da religião. Mas isto ignora a diversidade de crenças e a diversidade de maneiras de se aproveitarem delas. Há muita gente que se arrasta de joelhos julgando que isso convence Maria a ajudá-los. Há quem gaste dinheiro em velas e pernas de cera, quem reze aos santinhos, quem acredite que a Terra foi criada há umas dúzias de séculos e assim por diante. Para cada religioso há muita coisa que é caricatura – todas as outras religiões, por exemplo – mas também há muita coisa que não é. E os profissionais de cada religião tendem a opor as “caricaturas” mais por conveniência que por princípio. Por exemplo, os sacerdotes católicos opõem o criacionismo evangélico mas não a idolatria em Fátima. É inescapável a suspeita que o que distingue estes casos é um fazer perder clientes enquanto o outro dá lucro.
Além disso, as “caricaturas” são apenas exemplos. Sintomas. Não são o problema em si. Se alguém acredita que Jesus nasceu de uma virgem ou que Noé levou aquela bicharada toda no barco, é lá consigo. O problema começa ao afirmá-lo como verdade, o que acarreta a responsabilidade de aplicar critérios coerentes na distinção entre o que se considera verdadeiro e o que se considera falso. Esta diferença importante entre crença e verdade é deliberadamente ignorada pelas religiões.
A crença é um estado pessoal que só diz respeito ao crente. Mas a verdade é algo partilhado, supostamente objectivo e igualmente válido para todos. Uma crença verdadeira supõe-se mais legítima que outras que não se saiba sê-lo. E daí vem uma responsabilidade adicional. Quando um crente afirma que crê, pouco me importa. Mas quando afirma que aquilo em que crê é verdade fico curioso em saber como chegou a essa conclusão. E se me diz que sabe que é verdade só porque acredita então vale a pena apontar que a mera crença não chega para que uma hipótese corresponda à realidade.
Este problema agrava-se quando o erro é cometido por uma autoridade, como um padre, ou por quem quer propagar a sua fé, como os evangélicos costumam fazer. Porque, neste caso, deixa de ser apenas um erro do crente e passa a enganar os outros. A crença pode ser sincera, mas crença não é conhecimento e, ao afirmá-la como verdade, está a fingir saber aquilo que não sabe. Isto é óbvio no literalismo bíblico dos evangélicos, por exemplo. Dizem que a sua interpretação da bíblia é infalível quando as evidências sugerem o contrário. Mas a teologia dos católicos sofre do mesmo problema, mesmo que mais disfarçado. Por um lado dizem que Deus é incompreensível, para além do tempo e do espaço e da imaginação humana. E, por outro, dizem saber que veio à Terra, que nasceu de uma virgem, que quer isto, manda aquilo, reprova o outro e faz trinta por uma linha. E tudo apenas porque acreditam.
É isto que vale a pena apontar. Não a crença em si que, desde que não incomode ninguém, também não me preocupa. Mas o erro, logro ou desonestidade de afirmar ter conhecimento de um facto quando só se tem crença, sem qualquer evidência relevante. Não peço dinheiro para ir dizer isto aos doentes nos hospitais nem vou de porta em porta com revistinhas na mão. Mas acho que vale a pena chamar a atenção, a quem se interessar, que aquilo que as religiões afirmam como verdade são coisas que os religiosos não sabem. Especulam, crêem, julgam que é verdade mas não sabem, e nem têm nada que justifique concluir que a sua religião é mais verdadeira que as outras.
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