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A morte do Miguel

Dia 27 de Junho o Miguel teve o seu funeral. Caíra no Sábado anterior quando saía do casebre. Quebrou o fémur e ganhou um hematoma na cabeça. Transportado ao Hospital faleceu no dia seguinte.

Na terça-feira foi o funeral. O Miguel teve missa, flores que os amigos lhe levaram e os responsos canónicos antes de baixar à cova. Já não o acompanharam os pais e avós, que partiram antes, mas estavam lá os amigos que jogaram à bola na Praceta, companheiros da escola primária onde começou e terminou os estudos.

Para os que acusam os jovens de egoísmo foi tocante ver os que vieram de longe, alguns já bem instalados na vida, outros à procura de uma oportunidade. E eram muitos.

O Miguel é que não teve vaga. Não conheceu o pai, morto quando ele ainda não tinha dois anos. A mãe esqueceu-o, na amnésia da droga, e não o recordou quando se finou com uma dose reforçada.

Os avós recolheram-no. Partiu a avó primeiro e não se demorou o avô. O Miguel ficou aos baldões da sorte, ao abandono, não lhe faltando pontapés da vida nem a companhia de outros desgraçados.

Tinha 31 anos e mantinha olhos de criança num rosto já cansado. Passou fugazmente por várias drogas mas foi no álcool que se fixou, em doses cada vez mais vastas. Se os amigos o saudavam, sorria com gratidão. Não deixou que lhe virassem as costas, foi-se afastando entre carros que arrumava e garrafas de cerveja que consumia.

Ainda teve tempo para fazer um filho. Foi amado. E a mulher quis levá-lo para o cuidar. Não quis ser um fardo. Andou por aí sem querer ser pesado, sem se queixar, a desfazer o fígado e a vida, a acelerar para o fim, com um sorriso que guardou para os amigos.

Na morte teve a mulher que o amou, vestida de preto, e muita gente: um arrumador no intervalo da ressaca, o director de um estabelecimento do ensino superior, o dono do café, jovens que após os cursos foram pela vida e voltaram à Praceta para dizer adeus ao Miguel e lhe levarem as primeiras flores que recebeu. E todos nos sentimos tristes com vergonha de sermos felizes.

Chamava-se Luís Miguel Neves Caldeira, de seu nome. Era tudo o que tinha com a roupa que trazia e um velho rádio de que fez testamento oral. Dele só resta o rádio e o raio da nossa incapacidade para criar um mundo mais justo.

Hoje vi um edital a anunciar a missa do 7.º dia para as 18H30. Faz seis dias que morreu, mas o 7.º dia é quando um padre puder. Talvez a missa seja pela remissão dos pecados de Deus.