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A palavra «Deus»

A palavra «Deus» é dada a confusões. Não existe nenhuma definição que reúna consenso, e algumas definições são tão abrangentes que o conceito de «natureza» cabe lá – poucos duvidarão da existência da natureza!
Simplesmente creio que tais definições apenas criam confusão e prejudicam a comunicação.

Qualquer definição adequada da palavra «Deus» tem de se aproximar do conceito que as pessoas associam à palavra, ao que se referem quando a usam. Bem sei que uma minoria mais instruída, sem vontade de acreditar em superstições injustificadas, mas também sem vontade de quebrar o tabu da negação de Deus, tentou redefinir a palavra de uma forma que a esvaziaria de significado e utilidade.

Claro que eu poderia dizer que acredito em Deus, mas que Deus é a «força vital do Universo». Se interrogado responderia que a «força vital do Universo» é a «harmonia das leis naturais». Pronto: assim acreditando que existem leis naturais – regularidade na forma como o Universo funciona – e juntando uns temperos de palavras bonitas encadeadas num discurso opaco eu já me posso sentir mais integrado numa sociedade de crentes. E provavelmente nem darei conta da hipocrisia na minha posição.

E existem inúmeras formas de fazer isto. Também posso dizer que Deus é «o mágico, o desconhecido». Assim basta acreditar que o homem nunca conhecerá todas as leis da natureza (uma suposição bastante razoável…) para não me sentir tão distante do meu amigo que acredita que Jesus morreu por nós.

Se eu pegar numa frase do evangelho de S. João também posso manter a minha visão da realidade e acreditar em Deus. Eu acredito no amor – até me parece que é pouco razoável não acreditar nisso – e se «Deus é Amor», cá temos. Não acredito na vida eterna, em Jesus, na palavra de Maomé, de Moisés, no julgamento dos vivos e dos mortos. Não acredito em nada daquilo que caracteriza a crença em Deus, mas posso dizer que «acredito em Deus».

Há mais formas de disfarçar a minha discordância. Eu acredito que a mente existe, e posso chamar-lhe metaforicamente «alma». Depois, aludindo ao facto das consequências das nossas acções poderem ecoar pela eternidade (uma crença mais razoável que as das religiões em geral), abstenho-me de negar a imortalidade da alma.

Posso também recorrer à crença tão razoável de que existem coisas que me transcendem, para poder afirmar «há algo que me transcende». Depois chamo-lhe Deus, e posso sentir-me menos distante de todos aqueles que rezam em Fátima para que a menina seja encontrada.

Entre todas estas formas peculiares de se afirmar «crente» e o ateísmo existem poucas diferenças. A visão do universo, da realidade, do mundo que nos rodeia, é semelhante – mas o ateu prefere a clareza à hipocrisia.
É sofisticada e interessante a maioria das pessoas que profere este tipo de afirmações. Repito que geralmente não se apercebem da hipocrisia da sua posição, pelo que não são necessariamente pessoas hipócritas.

Quanto à palavra Deus, não vale a pena tentar torná-la vazia de sentido. A linguagem serve para comunicarmos e a clareza traz inúmeras vantagens. Dificilmente encontro uma definição verbal que abarque toda a diversidade de visões religiosas sobre «Deus» – e não deve ser fácil, visto que as definições que encontro nos dicionários são tão pobres a esse respeito… – mas sei que não faz sentido usarmos a palavra «Deus» para nos referirmos a um conceito que não tem nada a ver com aquele que está na mente de qualquer crente ou ateu quando pensa na palavra.