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Muito antes do holocausto…

«A 19 de Abril surge outro acontecimento mais grave. Dois dias antes, alguém teria visto, na capela do convento de São Domingos, estrelas douradas que saíam a brilhar de um crucifixo embutido em cristal. Logo que a novidade é conhecida, centenas de pessoas, muitas delas mulheres, juntam-se na capela. Entre os que vêem contemplar o prodígio há cristãos-novos [judeus recentemente convertidos ao cristianismo]. Um deles manifesta a sua opinião: a cruz, um simples pedaço de madeira, não poderia ter realizado o prodígio. O homem é imediatamente espancado e arrastado para o exterior, acabando por ser morto no adro da igreja. E o seu corpo despedaçado – assim como o de um seu irmão que tentara defendê-lo – é imediatamente queimado pela populaça.

O massacre que se segue não é espontâneo. É organizado e dirigido pelos frades dominicanos. Do alto do púlpito, um deles lança violentas diatribes contra os judeus. Aos gritos de «Heresia! Heresia! Destruí esse povo abominável!», outros frades apelam à morte, e precipitam-se para a rua empunhando crucifixos. Os resultados não se fazem esperar. Centenas de pessoas espalham-se pelas ruas de Lisboa e matam todos os cristãos-novos – homens, mulheres e crianças – que têm a desdita de lhes aparecer à frente. Alguns deles são decapitados, morrendo outros a golpes de punhal. Os bebés de colo são agrarrados pelos pés e esmagam-lhes a cabeça contra a parede.

A esta primeira onda de violência sucede-se uma acção mais organizada. Grupos de sessenta a cem pessoas, sempre encorajados pelos frades dominicanos, entregam-se a uma verdadeira caça ao homem. Casa após casa, sótão após sótão, a cidade é passada a pente fino e entregue ao zelo da populaça. Arrancados das enxovias, os presos das cadeias são atirados vivos para a fogueira que arde diante da capela de São Domingos, sendo também degolados todos aqueles que, aterrados pelos gritos da multidão, procuraram refúgio nas igrejas. […]

O massacre dura cerca de uma semana. Embora os cristãos-novos estejam já praticamente exterminados, o número de mortes continua a crescer, uma vez que outros grupos de pessoas passam a ser vítimas da histeria colectiva. Simples rivalidades pessoais entre vizinhos levam-nos a acusar-se mutuamente de judaísmo. O simples facto de alguém ter «ar de judeu», ter negociado com cristãos-novos ou ter sido visto na sua companhia é suficiente para ser entregue à vindicta popular.

Este espisódio sangrento da história de Lisboa transforma-se, pouco a pouco, em insurreição. A 21 de Abril, o governador que também abandonara a cidade, estabelece conversações com os chefes do movimento. […] Quanto aos Dominicanos, são intimados a restabelecer a paz nos espíritos.

Porém, a ameaça de represálias não impressiona a hierarquia religiosa, […]. A cidade está à beira da guerra civil. Os massacres alastram-se e estendem-se às aldeias e lugarejos dos arredores.»

«História de Lisboa», Dejanirah Couto, Gotica 2000 Sociedade Editora e Livreira Lda, Braga, 2003