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O único aborto moral é o meu

Já há uns tempos tinha escrito que um dos pontos que me irrita solenemente nas discussões de ética e moral com católicos é a pseudo superioridade moral com que condescendentemente me informam de que têm princípios morais «absolutos» (porque transcendentes), algo que eu como ateísta nunca poderei reinvidicar.

Com pessoas que conheço e me conhecem mais de perto é fácil desmontar o argumento comparando a praxis com a teoria, mas mesmo assim sou informada que o importante não é seguir esses princípios (afinal os crentes são fracos pecadores) mas aparentemente poder usá-los como arma de arremesso contra os ateístas, que até podem ser pessoas bem formadas, com princípios éticos consistentes e coerentes que de facto seguem à risca, mas como são ateus são automaticamente imorais ou amorais.

Isto é, para os católicos o mal feito por quem acredita em Deus deve ser relevado (e é militância ateia recordá-lo); o bem feito por quem nem sequer considera válida a concepção de qualquer ser transcendental é por isso necessariamente considerado se não mal pelo menos um bem meramente utilitário e sem valor!

Um dos temas em que a inconsistência dos apregoados valores cristãos e a incoerência entre o que se diz e o que faz me «tira do sério» tem a ver com um dos temas fracturantes da actualidade, o aborto.

Há uns tempos uma conhecida perguntou-me se a podia levar a Badajoz. Percebi instantaneamente a razão do pedido, bizarro considerando a nossa relação pouco íntima. A pessoa em questão e o marido, ambos muito católicos, tinham sido muito vocais contra o aborto à época do referendo e as suas amigas mais próximas certamente não entenderiam o pedido de quem perorou nos termos em ela o fez contra o aborto e contra as mulheres que a ele recorrem. Por outro lado e apesar de não sermos muito próximas ela sabia que eu não só não iria fazer julgamentos de valor sobre o seu comportamento como, principalmente, que comigo o segredo estaria seguro (até hoje suponho que nem o marido sabe).

Preenchi os quilómetros (muito matinais) até Badojoz com conversa amena, e chegada à clínica dos arcos e depois de ela ser chamada para o procedimento instalei-me na sala de espera com um livro. A esmagadora maioria das (muitas) mulheres que esperavam eram portuguesas, muitas jovens e adolescentes acompanhadas pelos respectivos pais.

No regresso a Lisboa, como a pessoa que eu acompanhei estava bem e eu não conseguia deixar de pensar na incongruência de toda a situação e nas muitas mulheres com menos recursos financeiros que se viram na mesma situação que ela e foram forçadas pelas circunstâncias a abortos de vão de escada, não consegui deixar de lhe perguntar se no caso de voltarmos às urnas para despenalizar o aborto ela votaria sim.

Para minha surpresa o discurso dela não se tinha alterado um milimetro. Quando eu disse que não conseguia perceber como ela conseguia, a menos de duas horas de ter feito um aborto, com a garantia que ninguém saberia do «deslize» é certo, achar que deveriam ir para a prisão as desafortunadas que não tivessem dinheiro para ir a Espanha como ela, retorquiu-me que o aborto é contra a lei divina, mas que «Deus é pai» e ela só tinha decidido pelo aborto depois de muitas conversas «com Deus», em que lhe explicou que não podia ter mais filhos, pela idade e por mais uma série de circunstâncias que Deus «entendeu».

Mais, explicou-me que se o aborto fosse despenalizado todas as «desavergonhadas» que «abrem as pernas» para uns e outros sem quaisquer problemas, poderiam ver-se livre, sem quaisquer problemas igualmente, de uma gravidez indesejada. O aborto não deve ser «facilitado» caso contrário escancaram-se as portas ao «deboche». O caso dela era diferente, o aborto dela era um aborto moral! Voltei a conversar sobre o tempo e outras banalidades depois de ela me ter retorquido que como eu era ateia logo não tinha valores e logo não podia perceber as subtilezas do raciocínio cristão. A pergunta inocente que mereceu esta resposta foi tão só uma afirmação minha que pessoalmente considerava linear que se alguém acha que o aborto é errado de per se, então deve considerar que é errado em qualquer circunstância, com as excepções previstas na lei actual, ou se não é errado, que não deve ser criminalizado, em qualquer circunstância igualmente.

Lembrei-me deste episódio quando li uma notícia que dá conta de um estudo do Center For Reason que, face à polémica instalada nos Estados Unidos em relação ao aborto, com os fundamentalistas cristãos, paladinos de óvulos e espermatozóides, a verberarem que o aborto é um assassínio (de meia dúzia de células) perpetrado pelos não cristãos (abomináveis esquerdistas e seguidores de Satã).

Face a esta retórica o The Center For Reason, um grupo de investigação privado, resolveu testar a premissa subjacente à conclusão esgrimida em alto e bom som (aos microfones das emissoras cristãs) pelos fundamentalistas cristãos americanos: «Os cristãos fazem menos abortos que os não cristãos».

O estudo, disponível para download, com todas as fontes de informação disponíveis assim como todos os dados não trabalhados, para confirmação dos mais incrédulos, indica que a hipocrisia cristã não se restringe a Portugal.

De facto, os dados dos 50 estados americanos, referentes a mais de um milhão de abortos/ano, indicam que a taxa de abortos é a mesma nos segmentos da população cristã e não cristã. Os católicos apresentam uma taxa de aborto significativamente superior