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Totalitarismos e vitimização

Numa atitude clara de desafio à hierarquia católica, que quer a posse da igreja e excomungou não só padre mas também toda a direcção, pelo menos 2 000 fiéis da comunidade polaca de St Louis encheram a proscrita igreja de St. Stanislaus Kostka na noite de 24 de Dezembro para ouvir a primeira celebração eucarística do excomungado padre Marek Bozek.

Este episódio permite-nos reflectir sobre não só uma característica indissociável do cristianismo, a mania da vitimização e perseguição, como também a génese dos fundamentalismos. Claro que neste caso os crentes católicos têm motivo reais para se sentirem perseguidos pela hierarquia local mas o facto de terem comparecido em massa à primeira missa «proibida» reflecte dois dos factores de que se alimenta(ra)m os vários «flavours» do cristianismo. Um deles é a já referida mania da perseguição/vitimização, o outro é uma idiossincrasia humana que nos faz almejar o que é proíbido, tão bem identificada na máxima popular «o fruto proibido é o mais apetecido». Um dos meus amigos alemães, agora na Universidade de Bayreuth mas originalmente da Alemanha de Leste, ateu convicto, contava-me que antes da queda do muro ia com frequência a missas clandestinas não por qualquer convicção religiosa mas porque o facto de estar a fazer algo proibido satisfazia a sua rebeldia juvenil.

Ambos os factores foram abordados por Ed Brayton num post de um blog que leio habitualmente, os Despachos das guerras culturais, a propósito da não existente Guerra ao Natal, já referida pela Mariana. Para Brayton demagogia pura e interesse económico são as razões subjacentes ao alarido estridente criado em torno destes não assuntos pelos Jerry Falwells, Matthew Stavers e Bill O’Reillys que abundam nos Estados Unidos, ou seja a invenção de um inimigo conveniente que mexa com os sentimentos dos crentes é indispensável para manter um fluxo confortável de doações monetárias.

Sobre as razões porque embarcam tão facilmente os cristãos nestas encenações de perseguições inexistentes basta pensar como os cristãos enaltecem e valorizam os «mártires» e as perseguições em nome da fé. De facto, a(s) Igreja(s) cristãs alimenta(m)-se de «mártires» e sem estes e sem perseguição fenece(m). Assim, é preciso inventar perseguições e glorificar os que se «sacrificam» em nome de uma qualquer «causa» cristã, seja ela o aborto ou a Inquisição «anti-católica» que rejeitou Rocco Buttiglione.

A tentativa de angariar clientes com supostas perseguições justifica as declarações do finado Papa há pouco mais de um ano de que «no final do segundo milénio, a Igreja é de novo Igreja de mártires, as perseguições contra os crentes, sacerdotes, religiosos e leigos produziram uma grande seiva de mártires em diversas partes do mundo» pois como afirmou Edward Novak, secretário da Congregação para as Causas dos Santos, «De um mártir» nascem «centenas, milhares» de novos fiéis.

George Bernard Shaw descreveu o Sermão da Montanha, onde começam os inúmeros avisos bíblicos das «perseguições» de que seriam alvos os seguidores do mítico Cristo, como «uma explosão impraticável de anarquismo e de sentimentalismo». Friedrich Nietzsche acertou em cheio quando escreveu que «a moralidade cristã é a mais maligna forma de toda a falsidade» (Ecce Homo) ou, na Geneologia da Moral, «o cristianismo (ou a moralidade dos escravos) necessita um ambiente hostil para funcionar, a sua acção é fundamentalmente reacção».

Aliás, as nossas caixas de comentários são ilustrações perfeitas desta necessidade de invenção de perseguições pelos crentes, que assim satisfazem a ilusão de serem automaticamente abençoados e merecedores do reino dos céus como preconizado no Sermão da Montanha, mais concretamente em Mateus 5:10-12. Qualquer texto nosso é encarado como um insulto que encobre motivações sinistras (e inexistentes), perseguições confortantes para a fé que preenchem o léxico do imaginário dos crentes. São também ilustrações perfeitas dos ingredientes necessários à eclosão de fundamentalismos sortidos que, assim como todos os totalitarismos, assentam em três pilares:

1) A detenção de uma verdade «absoluta», à qual todos devem se submeter, mesmo os descrentes nesta suposta verdade;
2) A certeza num destino glorioso para os justos/eleitos;
3) Um grande inimigo que é necessário diabolizar, sendo a suposta perseguição por este inimigo o nexus da angariação e fidelização de seguidores.

De facto, um inimigo sob o qual estão sob ataque constante os «justos» ou eleitos é indispensável a qualquer totalitarismo, seja ele religioso ou ideológico/político, um inimigo que pode ser responsabilizado por todos os males da sociedade e cujo combate exige a mobilização permanente dos eleitos. Para completar o quadro, é necessário convencer o rebanho de conformistas que este inimigo está sempre a postos para os perseguir, pois domina a cena financeira/política e controla os meios de comunicação. Este último ponto é indispensável na era da comunicação para imunizar os crentes em relação a qualquer crítica, atribuindo tudo o que é dito de negativo sobre as respectivas doutrinas a manobras persecutórias e manipuladoras do inimigo omnipresente.

Assim, todos os totalitarismos, religiosos ou políticos, dividem a humanidade entre eleitos e excluídos consoante a sua obediência ou não a estas verdades «absolutas», invocam infernos sortidos (concretizados em gulags e campos de concentração na versão política) como destino dos excluídos e consideram ser esta a forma suprema de justiça. Para todos os totalitarismos o destino do homem livre, o seu grande inimigo, é a perdição. Ou seja, pervertem o conceito de liberdade como pervertem o conceito de justiça ao pregarem que só a obediência cega, a Deus ou a líderes totalitários, conduz à verdadeira liberdade. E apelidam de ditadura, do relativismo ou afins, a verdadeira liberdade!