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Aborto: um dogma recente

Tenho eu a inconsciência profunda de todas as coisas naturais,
Pois, por mais consciência que tenha, tudo é inconsciência,
Salvo o ter criado tudo, e o ter criado tudo ainda é inconsciência,
Porque é preciso existir para se criar tudo,
E existir é ser inconsciente, porque existir é ser possível haver ser,
E ser possivel haver ser é maior que todos os deuses

Fernando Pessoa

O tema aborto será nos próximos tempos o cavalo de batalha da Igreja Católica que recorrerá, como nos avisava Ana Sá Lopes no seu artigo «O terrorismo da Igreja Católica», no Público de domingo (link indisponível), às suas tácticas terroristas para polarizar uma questão que só o é por se tratar de um dogma secularizado. E porque concordo que «É enorme, portanto, o risco – para os defensores da despenalização – de uma derrota nesse campo de batalha maniqueísta onde vale tudo. Trata-se, efectivamente, do vale tudo. E nesse vale tudo da demagogia, a Igreja Católica tem tido um papel maior.» nos próximos tempos será também o meu tema de eleição.

O que é irónico nesta questão, dita fracturante, é que o dogma da sacralidade do embrião é um dogma recente na «santa» Igreja. O conceito neolítico de que a mulher era apenas o terreno onde o princípio masculino germinava foi consolidado na Antiguidade Clássica com Aristóteles. Este filósofo acreditava que o sémen conteria «uma pessoa inteira ou, mais precisamente, um homem inteiro, já que uma mulher só ganha existência por alguma falha no processo de desenvolvimento». Num dos seus tratados biológicos afirmou que um embrião masculino adquiria alma ao fim de 40 dias após a concepção e um embrião feminino no dobro do tempo. Durante muitos anos a Igreja Católica, que adaptou a ética aristotélica, permitiu o aborto até este prazo.

Alguns dos teólogo mais conhecidos incluindo os inescapáveis Tomás de Aquino e S. Agostinho não condenavam o aborto. Este último escreveu:

«A grande interrogação sobre a alma não se decide apressadamente com juízos não discutidos e opiniões imprudentes; de acordo com a lei, o aborto não é considerado um homicídio, porque ainda não se pode dizer que exista uma alma viva em um corpo que carece de sensação uma vez que ainda não se formou a carne e não está dotada de sentidos»

Tomás de Aquino defendia que só haveria aborto pecaminoso quando o feto tivesse alma humana o que só aconteceria depois de o feto ter uma forma humana reconhecível. A posição de Aquino sobre o assunto foi oficialmente aceite pela igreja no Concílio de Viena, em 1312.

Só em 1869, em pleno século XIX, o Papa Pio IX repudiou a teoria da hominização tardia aristotélica e declarou que o aborto constitui um pecado em qualquer situação e em qualquer momento que se realize.

Curiosamente, em grande parte do mundo industrializado o aborto não era considerado um crime até que uma série de leis anti-aborto foram promulgadas na mesma época das declarações do pio Pio. Por essa altura, os proponentes da proibição do aborto realçavam os perigos clínicos do aborto. Também curiosamente agora que o argumento clínico deixou de ser válido, o ponto central dos argumentos anti-aborto deslocou-se para a sacralidade do embrião e feto. A que os terroristas católicos insistem em chamar «bébé».

Mas, numa época em que a Igreja católica exalta o espírito cristão medieval, convém relembrar uma doutrina dessa época, mais concretamente do século XVII, o probabilismo. Que afirma o direito dos fiéis de discordarem da hierarquia eclesiástica em questões morais, baseados numa base probabilística firme de ser legítima essa posição. Essa probabilidade pode ser intrínseca ou extrínseca. Probabilidade intrínseca refere-se à percepção individual da inaplicabilidade de um ensinamento moral. Probabilidade extrínseca diz respeito à possibilidade de se suportar essa divergência moral em autoridades teológicas, sendo suficiente cinco ou seis teólogos de reconhecida reputação moral que defendam pontos de vista diferentes.

Talvez por isso Ratzinger se devotou a calar as vozes divergentes na Igreja Católica. Mas existem teólogos reconhecidos, incluindo os mui celebrados Agostinho e Tomás de Aquino, que sustentam a moralidade da decisão por um aborto. Por isso, tal como Ana Sá Lopes, acho que «Convinha que os católicos que se demarcam destas posições e defendem que as mulheres que recorrem ao aborto não devem ser julgadas nem penalizadas aparecessem a dizer alguma coisa.»