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Abençoado Café



Confesso-vos que sou um apreciador de café. Apesar de ter uma digestão nervosa desde miúdo, não dispenso a minha bica, café ou cimbalino ao meio-dia. Quando procuro mais um reforço, peço um pingo directo (ou garoto escuro, ou café pingado… Infelizmente em Portugal ninguém concorda com o nome a dar a uma solução de café com leite.), nada como o sabor de leite gordo aquecido com vapor, misturado com um café torrado q.b. . É delicioso e faz-nos sentir mais vivos. (E com o leite cai melhor no estômago).

O italiano é me demasiado forte para os meus gostos, e não me satisfaz… É um concentrado ácido que não têm quantidade suficiente para se espalhar prazenteiramente por toda a língua. Já me deliciei com café brasileiro, em simples efusão. E em forma de gelado.. hummm… com uma bola de banana a acompanhar é um par de sabores que repito tantas vezes, como o limão e chocolate.

Outra lembrança que tenho é de comer um bolo de café, enfeitado com grãos autênticos de café de Timor e deixá-los deslizar na minha boca, ao longo da língua, como se fossem dropes. Para acabar por tríncá-los e com o seu sabor amargo, contrastar o sabor doce do bolo.

Aliás, passei a apreciar o café sem açúcar… Torna-se um gosto adquirido e sentimos mais claramente, a mudança da nossa percepção, conforme vamos dando os nossos goles e a nossa mente se torna mais acordada e excitável.

Encontramos a revista Le Monde des Religions de Setembro-Outubro, dedicado ao sabores do sagrado. Uma leitura fascinante para quem explora a gastronomia e gosta de cozinhar (eu cozinho todos os dias). Podemos ler sobre as raízes católicas do pecado da gula. Da desmistificação do conservadorismo protestante na cozinha. Da criatividade yiddish, ao conseguir satisfazer os sentidos, seguindo as regras de pureza kosher, Da exploração budista Zen da percepção, através da culinária e do ritual, etc. No entanto, não encontramos nenhuma referência ao café…

O Le Monde des religions trata sempre o ateísmo de uma forma preconcebida, mas a ausência de uma referência ao café como factor de mudança na sociedade europeia, deixou-me bastante surpreendido. O café foi o alimento que em certa medida provocou a passagem da Europa do renascimento para a época das luzes e para a modernidade.

Com o inicio da época das luzes, apareceram as primeiras casas de café da Europa. Londres, Paris, Itália, Viena, foi aí que surgiu o hábito de tomar café como hoje o conhecemos. E o mais interessante é que coincidiu com o burburinho revolucionário, científico e social que caracterizou aqueles anos. Os burgueses individualistas faziam a sua vida à volta dos cafés. Ao se consumir café, ficava-se mais acordado e a conversa e as actividades intelectuais prolongavam-se pela noite fora…

Havia cafés para os negócios (o mercado de seguros Loyd’s de Londres, apareceu originalmente num café com o mesmo nome, onde se reuniam os donos de barcos.), para a discussão política, para co-estudo (chegava a haver cafés para a matemática e ciências e outros para línguas clássicas). Por toda a Europa, conforme se espalhava o hábito de beber café, crescia o debate, a discussão, a iniciativa e a descrença cada vez mais sistemática…

Por isso, quando bebo a minha bica, bebo-a com uma certa mistura de ironia e alegria.

É o meu sacramento ateu…