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29 de Janeiro, 2025 Eva Monteiro

Nem só de religião vive o ateu

O ateísmo, por si só e nos tempos que correm, não é nada de excitante. A ausência de alguma coisa não significa que haja um vazio a preencher. Ser-se ateu é apenas uma recusa em acreditar em deuses. Ora, posto isto a discussão acaba aqui. Não há uma mundividência ateia, um sistema ético ateu ou um modo de vida ateu. Este último no sentido em que o ateísmo não acrescenta, apenas retira. Não significa que o modo de vida de um ateu não seja rico e preenchido – por outros meios. Em suma, o ateísmo não é uma religião e não pretende oferecer nada além dessa ausência.

Para que eu seja ateia é necessário que exista religião e que ela seja prevalente. O ateísmo existe apenas como reação ao mundo infetado em que vivemos, tomado conta por um vírus existencial que recusa emancipar-se de um pai ultrapassado e senil que há muito devia ter deixado de ditar as regras lá em casa. Neste sentido, o ateísmo vive da religião porque na sua ausência seríamos apenas normais.

Não obstante esta luta entre acreditar e não acreditar numa ideia sobrenatural que pertence à infância da humanidade, nem só de religião vive esta ateia e, creio, outros ateus. Necessito de uma mundividência, de estabelecer valores éticos e um modo de vida. É o Humanismo Secular que preenche esse lugar onde recuso deixar entrar o dogma religioso e os sistemas arbitrários de falsa moralidade que as religiões oferecem. Se abraço assim a razão humana, a ética, a justiça social e o naturalismo, esta ateia vive também de política. Aliás, como ativista ateia, haverá pouco do que faço e vivo que não esteja imbuído desta coisa que se refere à vida em sociedade e a relação com o poder.

Neste sentido, é como humanista secular que hoje escrevo, além de enquanto ateia. Li ontem um artigo do Vatican News em que se dá conta de uma nota dos Dicastérios para a Doutrina da Fé (anteriormente chamados de Inquisição – sim essa) e para a Cultura e Educação em que “são destacadas as potencialidades e os desafios nos campos da educação, economia, trabalho, saúde, relações humanas e internacionais, bem como em contextos de guerra.”. À primeira vista não posso deixar de concordar que existem desafios. No entanto, basta continuar a ler para entender que o Sr. Jorge Mário tem umas ideias pouco originais sobre a IA, fruto de uma longa tradição católica de combater tudo o que é novo e que retire protagonismo ao seu modo de vida dogmático e redutor.

Nem tudo o que se diz na “Antiqua et Nova” é de deitar fora. Nem tudo, mas muito. Refiro-me à pressa em advertir os crentes que não endeusem a IA. Não que eu a queira endeusar, mas eu, pelo menos, não invento deuses para controlar grupos de pessoas. O Papa, vulgo Sr. Jorge Mário, tem receio do “Poder nas mãos de poucos”. A piada faz-se sozinha, claro.  Preocupa-o (além da guerra que também me preocupa), a “antropomorfização da IA” gerando relações fraudulentas. Mais uma oportunidade perdida de um gracejo pouco simpático. No seu costumeiro ímpeto de controlar a sexualidade humana, o documento avança que “usar a IA para enganar em outros contextos – como na educação ou nas relações humanas, incluindo a esfera da sexualidade – é profundamente imoral e exige vigilância rigorosa”. Mas quem vigia a igreja que há séculos o faz?

O texto fala de preconceito e discriminação, de perdas no desenvolvimento do pensamento crítico, de fake news e deep fakes, de manipulação, informações falsas, enganos, de alimentar o ódio e a intolerância, da desvalorização da beleza e intimidade da sexualidade humana e da exploração dos fracos e indefesos. O Sr. Jorge Mário vai mais longe e critica o controlo da consciência humana pela IA, a vigilância do cidadão comum para proveito de outros, a exploração de recursos naturais para alimentar a IA, mas acima de tudo, alerta que a “presunção de substituir Deus por uma obra de suas próprias mãos é idolatria”.

Em suma, depois de listar tudo aquilo que tem feito nos últimos 2000 anos e que sente ser apanágio da ICAR, o Sr. Jorge Mário identifica o busílis da questão: a Igreja sente-se gradualmente substituída por uma imaginada IA maldosa (quiçá competitiva também neste campo com as atrocidades que a ICAR cometeu ao longo de séculos) e isso não dá jeito nenhum.

Por fim, um campo em que eu e o Sr. Jorge Mário concordamos:

Em particular, no âmbito do trabalho, destaca-se que, se por um lado a IA tem “potencial” para aumentar competências e produtividade ou criar novos empregos, por outro, pode “desqualificar os trabalhadores, submetê-los a uma vigilância automatizada e relegá-los a funções rígidas e repetitivas”, a ponto de “sufocar” toda capacidade inovadora. “Não se deve buscar substituir cada vez mais o trabalho humano pelo progresso tecnológico: ao fazê-lo, a humanidade prejudicaria a si mesma”.

Dizia eu há pouco que nem só de religião vive o ateu. Eu vivo deste Humanismo Secular que me auxilia a identificar-me como pessoa que luta pelo bem estar de todos, em sociedades dignas e dignificantes sem recurso a falsas promessas de castigo ou recompensa após a morte. Eu concordo com o Sr. Jorge Mário no que diz respeito à IA no campo do trabalho ainda que não corra o risco de a endeusar e a enfiar na ausência de religião a que o meu ateísmo obriga.

Ao contrário do Sr. Jorge Mário, a minha solução proposta não é a fuga para um passado medieval de bruxas, demónios e fogueiras. Sugiro que todas as empresas que utilizem inteligência artificial ou outras tecnologias para substituir o trabalho humano sejam obrigadas a pagar impostos proporcionais aos encargos fiscais que teriam caso essas tarefas, funções ou postos de trabalho fossem ocupados por pessoas. Os valores arrecadados com este imposto teriam de ser direcionados para a criação de um rendimento básico universal, garantindo que os trabalhadores, em vez de serem simplesmente descartados, pudessem beneficiar dos avanços tecnológicos. Dessa forma, a automação não serviria apenas para maximizar os lucros dos CEOs à custa do desemprego em massa, mas sim para promover uma distribuição mais equitativa da riqueza gerada pela inovação. Ou seja, mais tempo para viver, com os meios para aproveitar esse tempo. Talvez o Sr. Jorge Mário devesse estar menos preocupado com a manutenção da imagem de infalibilidade da ICAR e da perda crescente de crentes (por consequência, do dinheiro que geram), e mais preocupado em realmente encontrar soluções para a sociedade em que vivemos. Nem só de pão vive o homem – dizem eles. É verdade, pessoalmente gosto de um bom Alvarinho e um queijo a acompanhar. E preferia ter como os pagar.

27 de Janeiro, 2025 Onofre Varela

AINDA SOBRE OS “DOIS PAIS” DE JESUS

No último artigo abordei o sentimento de ofensa que alguém possa deter perante conversas ou escritos que contrariem o seu modo de encarar o mesmo assunto, quando tratado de um outro campo que não o seu. É um sentimento natural que deve ser entendido com a mesma naturalidade, e nunca se deve ver, num ponto de vista contrário ao nosso, um insulto… se não, não fazemos nada mais na vida que não seja “insultarmo-nos constante e mutuamente”, porque não há duas pessoas que detenham “pensamentos, entendimentos e sentimentos, fotocopiados”.

Como ateu estou habituado a ver as minhas palavras interpretadas de modo ofensivo por religiosos, e quando me abordam nesse sentido faço a “prova dos nove”, lendo, ao pretensamente ofendido, o texto que o meu interlocutor diz ter sido uma ofensa à sua fé. Na maioria dos casos fica provado que o modo de ler (interpretar) faz a diferença entre a opinião e o insulto.

Gerado por IA.

Há quem inicie a leitura de um texto (sabendo que ele foi escrito por quem não alinha nas suas verdades políticas, religiosas ou futebolísticas), com intenção negativa e preparado para ver por ali ofensa ao seu modo de entender as coisas. E quando essa ofensa não existe, ele acaba por a “ver” porque está mentalmente preparado para a fabricar! Por isso aceito que o Bloco de Esquerda usasse aquela imagem e aquela frase (referidas no último artigo) sem pensamento ofensivo, por não ter essa intenção à partida.

Qualquer texto, incluindo os textos bíblicos do Velho Testamento, mais os neo-testamentários, está sujeito a interpretações várias, e não é lícito rotular de ofensiva qualquer interpretação que choque com entendimento diverso. Para um ateu (e para a própria História) a gravidez de Maria anunciada por um anjo não é um facto histórico nem científico, mas sim uma “estória de fé” que, merecendo respeito, também merece reparo ou crítica, numa sociedade maior, livre e consciente. O respeito não quer dizer “come, cala e não opines”. Respeitemos, mas opinemos… é isto a Democracia e o cumprimento do respeito que ela decreta.

A gravidez de Maria é uma cópia, na versão cristã, do mito grego da gravidez de Alcmena violada por Zeus para gerar Hércules, e que os escribas cristãos foram buscar à mitologia, retocando-a a seu jeito. Zeus lambuzou-se no leito de Alcmena tomando a forma de Anfitrião, o seu marido, para a enganar à boa maneira dos homens perversos e traidores (que eram sempre o espelho dos deuses).

A versão de Maria é mais cândida por escamotear o acto carnal da cópula, mas também mais irreal por nada ter de natural. Todos nós sabemos que uma gravidez precisa de um óvulo e de um espermatozoide que o fecunde… o que quer dizer: relações sexuais (naquele tempo não havia laboratórios de inseminação artificial, nem clonagem). Afirmar o contrário disto… é fé divorciada de qualquer realidade… e se a fé ofusca o entendimento… quem deve “desofuscar-se” é o religioso seguidista que desliga o seu motor de busca não procurando entendimento… e nunca o seu crítico. As lendas religiosas devem ser tomadas na sua realidade de lenda e de fé, respeitadas como tal, e nunca declaradas como “realidade sagrada” com ameaça de punição para quem não as aceite, como a Igreja fazia no tempo da Inquisição de má memória!

Por muito respeito que me mereçam os meus amigos crentes, eu tenho o direito de exercer o meu raciocínio. Não é falta de respeito questionar: se José é afirmado como pai adoptivo de Jesus… teve de haver um pai biológico e a biologia implica sexo. A fé tolda a razão?!… Se sim, é bom que quem assim sente tome consciência disso e deixe de se sentir ofendido pelas lícitas considerações de quem dispensa a fé e o mito por lhe bastar a realidade e a naturalidade das coisas naturais e reais. 

17 de Janeiro, 2025 Onofre Varela

SENTIR-SE E SER-SE OFENDIDO

A clérigo sandeu parece-lhe que todo o mundo é seu”

(Provérbio Popular)

A propósito de o Papa Francisco I condenar populismos e defender divorciados e homossexuais (tal como “O Cidadão” noticiou no último dia 15 de Janeiro), mostrando ser a primeira vez que o Vaticano tem na Cadeira de São Pedro um clérigo verdadeiramente sensível e fraterno na defesa das liberdades individuais, limpando – com as suas atitudes e os seus discursos – a parte mais negra da História que a Igreja Católica escreveu durante séculos, lembrei-me de um caso ocorrido em Fevereiro de 2016. Já lá vai quase uma década, mas o sentimento de escândalo que ele provocou, continua actual; por isso considerei lembrá-lo aqui e agora.

Nessa ocasião, para assinalar a aprovação da lei que permite a adopção de crianças por parte de parelhas do mesmo sexo (eu prefiro usar o termo “parelhas” em vez de “casais”, porque “um casal” implica dois indivíduos de sexo diferente: um macho e uma fêmea. O termo “parelha” designa “um par”… neste caso, “um par de pessoas – duas pessoas”, que é o que é, e não um casal!) o Bloco de Esquerda (BE) criou um cartaz que gerou controvérsia, representando, em desenho, a figura (graficamente esbelta e religiosamente correcta) de Jesus Cristo, com a frase “Jesus também tinha 2 pais”. Esta mensagem, sob o ponto de vista histórico, científico e filosófico, é imaculada… não ofende ninguém e sublinha o que as religiões cristãs afirmam: Jesus é filho de Deus, e José é o seu pai adoptivo! Logo, tendo um pai adoptivo, não resta dúvida de que conta com dois pais… o adoptivo… e o outro!

(Bem… aqui, “o outro” , refere o “pai biológico”. Mas na estória cristã, a Biologia não está presente… aquilo não se entende… é uma confusão em que entra a figura de uma casta e branca pombinha, chamada “Espírito Santo”, como portadora do esperma divino que depositou no ovário de Maria… o que dificulta a compreensão do acto!… Os crentes afirmam esta “narrativa de fé” como sendo realidade, mas eu desconfio que quem a afirma não a entende e só a defende “por fé” sem se preocupar com as explicações que devia exigir para, só depois, poder defender… ou não!).

A aprovação da Lei da Adopção foi confirmada na Assembleia da República no dia 10 de Fevereiro, depois de Cavaco Silva (então presidente da República) a ter vetado. Em termos de religiosidade, não há diferença no tratamento das leis por parte de Cavaco e de Marcelo. Ambos são católicos e, na presidência de uma República laica (repito, em maiúsculas: LAICA) perfilam-se ao lado da Igreja, desaprovando tudo quanto a LAICIDADE REPUBLICANA diz dever ser aprovado.

A Constituição Portuguesa permite que um qualquer cidadão fiel a uma qualquer fé religiosa, seja eleito para presidir à República que é LAICA!… E permite-o, exactamente, por atribuir legalidade ao sentimento religioso, à sua fé e à sua livre expressão, quer se seja a favor, ou contra… correndo-se o risco de a LAICIDADE republicana não ser cumprida. São as idiossincrasias da Democracia!…

O BE, fazendo Juz à política de Esquerda que representa, concordou com a lei da adopção de crianças por parelhas do mesmo sexo, bem como concorda com o casamento homossexual, porque respeita a dignidade do Ser Humano e as vontades individuais. A Igreja Católica é que não alinha com tal respeito e contestou a lei por se sentir ofendida (esquecendo que estava a ofender a Liberdade e a Dignidade de quem quer ver a lei aprovada, em nome da sua própria Liberdade que o espírito do 25 de Abril lhe deu). Numa atitude de assumir a figura do “politicamente correcto”, o BE reconheceu ter sido um erro usar aquela mensagem e desculpou-se, retirando os cartazes, demonstrando usar de muito mais compreensão do que aquela de que a Igreja Católica se diz portadora.

Quero aqui dizer que quando alguém se sente ofendido, esse sentimento não é, por si só, prova de que o tenha sido realmente. “Sentir-se” não é o mesmo que “ser-se”. Eu posso sentir-me rico e ser pobre (ou vice-versa)!… Qualquer ofensa só é real se for exercida com a consciência de ofender. Se na sua origem não estiver a atitude de ofender, a ofensa não passa de um incidente que foi lido como ofensa pelo receptor, independentemente da intenção do emissor.

Como ateu estou habituado a ver as minhas palavras interpretadas de modo ofensivo por religiosos, e quando me abordam nesse sentido faço a “prova dos nove”, lendo e comentando, ao ofendido, o texto que o meu interlocutor diz ter sido uma ofensa à sua fé. Invariavelmente fica provado que o modo de ler (interpretar) faz a diferença entre a opinião e o insulto.

Há quem inicie a leitura de um texto (sabendo que ele foi escrito por quem não alinha nas suas verdades políticas, religiosas ou futebolísticas), com intenção negativa e preparado para ver por ali ofensa ao seu modo de entender as coisas. E quando esta ofensa não existe, ele acaba por a “ver” porque está mentalmente preparado para a fabricar! Por isso aceito que o BE usasse aquela imagem e aquela frase, sem pensamento ofensivo, por não ter essa intenção à partida.

Qualquer texto, incluindo os textos bíblicos do Velho Testamento, mais os neo-testamentários, está sujeito a interpretações várias (por isso há tantas seitas religiosas baseadas no mesmo Livro), e não é lícito rotular de ofensiva qualquer interpretação só porque choca com entendimento diverso. Para um ateu (e para a própria História) a gravidez de Maria anunciada por um anjo não é um facto histórico, nem natural… não passa de uma “estória de fé” que, merecendo respeito, também merece crítica numa sociedade maior, livre e consciente da Liberdade que tem.

A gravidez de Maria é uma cópia, na versão cristã, da gravidez de Alcmena violada por Zeus para gerar Hércules, e que os escribas cristãos foram buscar à mitologia grega, retocando-a a seu jeito. Zeus lambuzou-se no leito de Alcmena tomando a forma de Anfitrião, o seu marido, para a enganar à boa maneira dos homens perversos e traidores (que eram sempre o espelho dos deuses).

A versão de Maria é mais cândida por escamotear o acto carnal da cópula, mas também mais irreal por nada ter de natural. Todos nós sabemos que uma gravidez precisa de um óvulo e de um espermatozoide que o fecunde. (Naquele tempo não havia laboratórios de inseminação artificial, nem clonagem). Afirmar o contrário disto… é fé divorciada de qualquer realidade.

A fé deve ser mantida por quem a tem, e respeitada por quem a não tem… mas não é matéria tabu! Nada o é. Numa sociedade maior (como é a nossa, liberta de ditaduras fundamentalistas religiosas) pode-se falar de tudo, seja elogiando ou criticando. E se a fé ofusca o entendimento… quem deve “desofuscar-se” é o seguidista de uma fé que desliga o seu motor de busca na procura de entendimento… e nunca o seu crítico.

Por muito respeito que me mereçam todos os crentes, eu tenho (tal como eles) o direito (e a obrigação) de exercer o meu raciocínio. Não é falta de respeito questionar: se José é afirmado como pai adoptivo de Jesus… teve de haver um pai biológico, e a biologia implica sexo. 

A fé tolda a razão?!… Se sim, é bom que quem assim sente tome consciência disso e deixe de se sentir ofendido pelas lícitas considerações de quem dispensa a fé e o mito por lhe bastar a realidade e a naturalidade das coisas reais e naturais. 

15 de Janeiro, 2025 João Monteiro

AAP abandona o Twitter

A Direção da AAP decidiu deixar de publicar na rede social X, o antigo Twitter. Esta decisão resulta de uma avaliação que a Direção se encontra a fazer sobre os resultados da comunicação nas diversas plataformas digitais, de modo a reajustar a sua estratégia de comunicação.

De facto, o antigo Twitter é uma rede social que foi perdendo tração ao longo dos últimos anos, e na qual não temos tido, ultimamente, nem crescimento nem reações, pelo que o impacto tem sido praticamente nulo. Assim, fazendo uma análise custo-benefício, não compensa continuar a apostar nessa rede social, uma vez que não conseguimos chegar aos resultados pretendidos.

Acresce a essa análise o facto de o antigo Twitter ter-se tornado numa plataforma de incentivo ao ódio e fonte de desinformação, a que não é alheia a proliferação de bots, situação que piorou bastante após a aquisição por Elon Musk, e que só se tem vindo a agravar mês após mês. Se dúvidas houvesse quanto a estes fatores justificarem a saída dessa rede social, as mesmas ficariam esclarecidas se atendermos aos princípios e valores da nossa organização: temos defendido uma posição humanista e que privilegia o debate de ideias com base em argumentos racionais – portanto, em tudo contrário ao ambiente que se vive naquela plataforma.

São esses dois argumentos, o da comunicação por um lado e o dos princípios por outro, que sustentam a nossa posição de abandono daquela rede social. Porém, não iremos eliminar a conta, até para não perder o registo histórico das conversas, mas tão somente colocar o cadeado. Assim, quem já segue a conta pode continuar a consultar o histórico de publicações, e só quem não segue é que ficará impossibilitado de visualisar os conteúdos. Além disso, ao mantermos apenas o cadeado na conta, a decisão poderá sempre ser revertida se assim se entender.

Os nossos associados e seguidores podem continuar-nos a seguir nas outras plataformas: Facebook, Instagram, nos canais de WhatsApp (público e para associados), no blogue, no YouTube, ou através do Podcast.

7 de Janeiro, 2025 Carlos Silva

Je suis Charlie

Imagem: internet


Je suis Charlie!

Eis o grito de revolta que hoje mais se ouve em todo o mundo.

E não é que sou mesmo… Charlie![1]

Pois é, o meu nome também é Carlos!

E também não consegui ficar indiferente aos atentados de hoje em França.

Je suis Charlie!

Eis o meu grito de revolta!

O grito de revolta pelo direito á vida.

O grito de revolta pela liberdade de expressão e de imprensa.

O grito de revolta contra a barbárie, contra o extremismo, contra a violência…

O mundo está horrorizado com os atentados em França!

O mundo está horrorizado com os atentados em Espanha!

O mundo está horrorizado com os atentados no Reino Unido!

O mundo está horrorizado com os atentados nos EUA!

O mundo está horrorizado com todos os atentados em todo o mundo!

Como é possível?! -eis a questão que hoje todos se colocam.

Como é possível que ainda existam seres humanos que comentem esta horrível barbaridade em nome de supostas divindades?! -disse supostas!… porque são atos em nome da mais rudimentar inconsciência humana … em nome de… nada!

NÃO EXISTE DEUS!

NÃO EXISTE DEUS!… o que torna estes atos ainda mais absurdos!

Não existe argumento racional que sustente tal genocídio!

Decerto muita coisa mudará depois deste horrível atentado…

Não se pode ignorar toda aquela multidão… todas aquelas vozes clamando por justiça… não se pode ignorar tantos “Charlie’s” juntos!

Je suis Charlie!

É preciso que sejamos cada vez mais!

Cada vez mais vozes!

Cada vez mais… Je suis Charlie!

Este tipo de atentado agita… desafia a consciência humana…

Este tipo de atentado fere… perturba a sensibilidade humana…

Este tipo de atentado coloca em risco os mais elementares valores da humanidade… -valores adquiridos ao longo de gerações e gerações pelos quais tantos lutaram, alguns com o sacrifício da própria vida…

Este tipo de atentado exige que se defenda a dignidade da pessoa humana!

Este tipo de atentado exige uma ação global e universal!

Também ouvi que…

“O Charlie Ebdo choca!…”

“O Charlie Ebdo choca tanto como o fundamentalismo!…”

“O Charlie Ebdo semeia ventos e colhe tempestades!…”

E de forma algo mais moderada que “não devemos associar a violência à religião!…”

“Choca…”

Como pode chocar tanto assim… um simples lápis?

Como pode chocar tanto assim… ao ponto de apagar vidas humanas!

Não se consegue dissociar violência de religião… é verdade… e não conseguimos sequer entender o porquê dessa associação…

Talvez porque não enxerguemos ainda nem uma nem outra!

A animalidade resulta essencialmente da nossa falta de civismo e educação… esta pode ser uma justificação coerente…. mas não será a única para o gigantesco caminho que teremos que percorrer…

Idolatrar “divindades” … -é talvez uma das mais primárias e absurdas tradições da espécie humana. Toda a idolatria é um mero absurdo… uma verdadeira inutilidade…

É preciso que este ser humano esteja ciente que, para ser um bom ser humano, não tem necessariamente que idolatrar o que quer que seja, ou quem quer que seja!…

Basta ser ele mesmo, sem máscaras ou vendas!


[1] Carlos


AGORA ATEU (I), 2015-01-08

30 de Dezembro, 2024 Ernesto Martins

Ama o teu próximo…

No artigo “Sobre a Igualdade”, aqui publicado a 22 de Dezembro, o seu autor e estimado colega de blog Onofre Varela refere-se à promoção da “igualdade entre os homens” como uma das grandes ideias que conduziu o Cristianismo ao triunfo histórico que lhe conhecemos. O conceito cristão de igualdade é aparentemente proposto, na sua origem, no Velho Testamento, em Levítico 19:18, onde se lê “Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou Javé”. É um dos versículos mais apregoados da Bíblia que me trouxe de imediato à memória um controverso e muito citado artigo de John Hartung [1].

De acordo com este antropólogo norte-americano, a passagem bíblica não se refere, contudo, a todos os membros da espécie homo sapiens mas sim aos “filhos do teu povo”, ou seja, aos membros do mesmo grupo étnico – os judeus. Se costumamos admitir que o “próximo” é o ser humano em geral, isso deve-se apenas ao facto de termos interiorizado há muito os valores humanistas do Iluminismo.
A interpretação de Hartung torna-se clara se atendermos ao contexto em que surge. Segundo o relato bíblico [2], quando receberam a lei divina os Israelitas estavam isolados no deserto. Viviam em tendas, em famílias alargadas, isolados e sem contacto com povos amigáveis. Discórdias e lutas internas eram frequentes, resultando por vezes em baixas na casa dos milhares (Êxodo 32:26). Desesperados, alguns queriam voltar para o Egipto mas Moisés consegue manter a coesão e seguir em frente (Números 14:4). Num cenário como este, faz todo o sentido – particularmente do ponto de vista evolutivo – que a preocupação de todos se limitasse ao circulo restrito da comunidade. Alargar o decreto de “amar o próximo” a povos inimigos como os Medianitas, os Moabitas, Amoritas, Edomitas, Hititas e Jebuseus seria o mais insano dos suicídios e, por conseguinte, devia estar fora da cogitação de Moisés quando supostamente recebeu a directiva do seu deus.
No mesmo artigo Hartung conclui também que o primeiro dos 10 mandamentos (Deuteronómio 5:17-21), “Não matarás”, não tem o âmbito universal que normalmente se lhe atribui. Na sua origem refere-se estritamente e apenas a judeus, entendimento este que é atestado pelos tratados do judaísmo rabínico registados na Mishná, e confirmado pelos comentários do reverenciado Maimónides, usualmente aceites como autoritários nestas matérias.
Este carácter restrito da proibição “Não matarás”, aplicável apenas quando a vitima pertence ao “Povo de Deus”, é, na verdade, assumido na prática nas narrativas do Velho Testamento, a julgar pelas várias campanhas de limpeza étnica contra todos os povos que adoram outros deuses que não Javé.
Em “The Moral Arc” [3] Michael Shermer chama a atenção para outro caso semelhante. Desta vez a passagem bíblica em causa é um excerto da epístola de Paulo aos Gálatas: “Já não há diferença entre judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre homem e mulher, pois todos vós sois um só em Jesus Cristo” (Gálatas, 3:8). Para alguns comentadores, e talvez na mente de muitos crentes, este versículo encerra uma declaração inequívoca da igualdade entre todos os seres humanos.
Mas uma leitura atenta de todo o capítulo 3 da carta mostra que, na verdade, segundo Paulo, o que tinha alcance universal era a salvação em Cristo. Ou seja, todos eram iguais em Cristo e, nomeadamente, os não judeus não tinham de se circuncidar para serem aceites no reino dos céus. Paulo garante, portanto, que todos serão iguais no reino que está para vir, ou seja, no outro mundo. Mas nada sugere que ele se referia à igualdade de direitos neste mundo. Os escravos continuariam escravos e as mulheres continuariam a ser vistas como propriedade. Quem quer que fosse teria um lugar guardado no Paraíso, mas até lá estaria à mercê dos abusos costumeiros da sua própria cultura e Paulo não parece incomodado com isso. Se esta passagem do Novo Testamento nos parece conter algum tipo de sentimento de igualdade humanista isso deve-se apenas à projecção que fazemos dos nossos próprios valores.
Em suma, a Bíblia é, na sua maior parte, um modelo de moralidade intra-grupo, e, na sua origem, o Cristianismo esteve sempre longe de incluir “todos, todos, todos”[4] no seu circulo de consideração moral. O que não é propriamente de surpreender dado que partilha, com várias outras religiões, uma essência tribal, funcionando com regras que visam a comunidade e não a humanidade em geral, e que vincam as diferenças entre os que estão dentro do grupo e os que estão fora do grupo (os pagãos, os hereges, os descrentes).
Na sua história de vinte séculos, a versão católica do cristianismo viu-se arrastada pelo Iluminismo no seu tortuoso caminho até à modernidade, mas sempre com as unhas cravadas no passado. A moderação que eventualmente operou em algumas das suas práticas e doutrinas foi lenta e penosa, e muitas vezes só aconteceu em resposta a pressões seculares.

EVM


Notas:
—–
[1] Hartung, John; “Love Thy Neighbor”: The Evolution of In-Group Morality”, Skeptic, 3, nº4, pp. 86-99, 1995. Também disponível no site do autor, num texto em permanente actualização:
http://www.strugglesforexistence.com/politics/love-thy-neighbor-the-evolution-of-in-group-morality/#to_2
[2] Aqui faço a concessão de considerar o relato bíblico como histórico, embora as evidências nesse sentido sejam virtualmente inexistentes.
[3] Shermer, Michael; “The Moral Arc”, Henry Holt, 2015.
[4] As célebres palavras do Papa Francisco proferidas durante a JMJ 2024, em Lisboa.

29 de Dezembro, 2024 Onofre Varela

FakeNews: política, telenovelas e Bíblia

As notícias falsas (Fake News) estão tão enraizadas na sociedade que é difícil saber-se o que é verdadeiro e falso numa campanha eleitoral, numa mensagem publicitária ou numa discussão parlamentar. As Fake News são uma espécie de “informação” criada com o propósito de desinformar, de enganar quem as toma por verdadeiras. Divulgam mentiras por verdades, intoxicam a opinião pública e induzem “as suas vítimas” a pensarem e a fazerem como os seus promotores querem que elas pensem e façam. 

Neste momento temos nas Fake News (FN) criadas pela extrema-direita, a difusão da ideia de que os imigrantes são bandidos que infestam as ruas das nossas cidades, matam velhinhas e comem crianças ao pequeno almoço. As FN são usadas com fins políticos ou económicos para benefício de alguém ou algo. Todos nos lembramos da garantia que Cavaco Silva deu de o BES não ter problemas financeiros, que estava com os cofres cheios de dinheiro e os seus clientes podiam confiar na seriedade do banqueiro!… Quem discordaria da opinião avalizada de um economista de tal gabarito?!… E foi o que se viu! 

Foto de Jorge Franganillo na Unsplash

As Fake News foram usadas nos EUA em benefício de Donald Trump nas eleições de 2016 (e de 2024), e de Jair Bolsonaro no Brasil em 2018, recorrendo a mensagens divulgadas massivamente nas redes sociais dizendo “cobras e lagartos” dos seus opositores, acenando o espantalho do comunismo. 

Para que as Fake News atinjam o alvo com eficácia, têm de ter algo de verdadeiro à mistura… algo que interesse à maioria de nós, levando-nos a aceitar todo o discurso como verdade, só porque uma parte dele é (ou parece ser) verdadeiro. Repare-se nos enredos das telenovelas. Aquilo é ficção, mas retrata a vida social como nós a conhecemos, e muitos dos conflitos narrados nos episódios já nós os vivemos de algum modo ou sabemos de quem os tenha vivido… mas é tudo mentira! 

É esta semelhança com a realidade que faz o interesse dos telespectadores. Esta artimanha de misturar realidade com ficção não é nova. As Fake News são velhas como o mundo, e a Bíblia é uma colecção enorme delas. À mistura com nomes de personalidades que a História nos diz terem existido, e de localidades reais, os Judeus construíram narrativas falsas afirmando-se “o Povo eleito de Deus”. Como se não bastasse a mentira histórica, ainda lhe acrescentam o maior embuste, que é a de terem sido ditadas por um deus inexistente!… 

Exemplo: Moisés é personagem do Antigo Testamento a quem se atribui o Êxodo (a retirada do povo hebreu do Egipto) e a espectacularidade das dez pragas que fizeram a rendição do faraó Ramsés II. A última delas foi a morte do próprio filho do faraó, o que nos mostra Deus como um ser infame, despótico e cruel. 

O problema desta narrativa está no facto de tais casos nunca terem existido!… Êxodos de hebreus, houve muitos… e as dez pragas narradas são tão espectaculares que teriam de fazer parte da História do Egipto… que não as regista!… A existência de Moisés não está provada pela História, e o que se conta de, em bebé, ter sido recolhido de uma cesta abandonada no rio Nilo, é cópia da história de vida que se conta de Sargão I, rei da Suméria, que viveu 600 anos antes de Ramsés II e de Moisés.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

22 de Dezembro, 2024 Onofre Varela

Sobre a igualdade

O Cristianismo conseguiu impor-se graças a duas grandes ideias que constituem a linha de força que, em linguagem publicitária usada nos tempos em que fui criativo gráfico em agências de publicidade, podem ser referidas como “o eixo” das suas preocupações de marketing.

A primeira ideia tem a força da fé: é o desejo de vitória da vida sobre a morte, que no Cristianismo é simbolizada pela ressurreição. Constitui o motor da expansão do credo ao nível do irracional. A crença na ressurreição do corpo, num hipotético dia do juízo final, acrescentada da, também hipotética, viagem “pós-morten” que a alma empreenderia para junto do deus que enche de ventura aqueles que, em vida, só padeceram tormentos.

Foto de Jacob Amson na Unsplash

Esta suposta vida a usufruir depois da morte é a imagem de marca e a espinha dorsal que sustenta o Cristianismo ao nível do irracional, porque encerra o essencial da vontade de todos nós, que é a fantasia de contrariar a morte, prometendo-nos uma vida eterna no etéreo, sem necessidades materiais, onde o pobre e o rico serão, finalmente, iguais (derradeiro consolo!).

A segunda ideia contém força social e política ao apregoar a “igualdade entre os homens”. Igualdade reconhecida ainda em vida, o que acaba por ser uma ideia positiva… embora não seja biologicamente correcta!…

Na verdade científica os seres humanos “são semelhantes”, mas “não são iguais”. Os códigos genéticos são idênticos na forma, mas não são iguais no conteúdo. Cada um de nós é detentor de um código genético único, o que faz com que cada um seja, realmente, diferente do outro. Biologicamente, cada um de nós é único.

A igualdade apregoada deve ser entendida como conceito social: igualdade no tratamento e nas oportunidades, tal como a nossa Constituição regista.

O conceito religioso da igualdade (amarás o teu próximo como a ti mesmo) é referido no Velho Testamento (Levítico: 19; 11-18), foi relembrado nos Evangelhos (Mateus: 22;39) e já era sugerido no Código Hamurabi (na sociedade babilónica há cerca de 3.800 anos) onde os redactores da Bíblia foram beber a ideologia que transcreviam em nome de um deus hipotético…

É um conceito que se compreende e deseja sob o ponto de vista humanista na tentativa de se eliminar diferenças sociais. A originalidade ideológica do Cristianismo reside precisamente no lembrar desta ideia da universalidade do Ser Humano, negando discriminações na afirmação de que todos somos iguais, contrariando os sentimentos de classe, rácicos e nacionalistas que estão tão “na moda” hoje, usados pelos anti-humanistas radicais de Direita… que querem ser governo!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

19 de Dezembro, 2024 Ernesto Martins

Equívocos natalícios, Parte 2/2

O nascimento virginal é, provavelmente, o aspecto crucial da natividade de Jesus Cristo.
Estranhamente, é também um conceito sem paralelo na Bíblia Hebraica e na literatura judaica pós bíblica, onde os nascimentos extraordinários ou ocorrem com mulheres que já ultrapassaram a idade reprodutiva, ou são fruto de uniões entre anjos e mulheres humanas, semelhantes às dos mitos greco-romanos. No entanto, estes nascimentos nunca implicam a conservação do estado de virgindade.
A história da antiguidade é rica em figuras com suposta origem divina. Considerando apenas as celebridades que viveram perto do tempo de Jesus, podemos citar, por exemplo, Platão, o gigante da filosofia que se acreditava ser filho de uma mulher e do deus Apolo; Alexandre o Grande, que tinha fama de ser o produto de uma aventura entre a sua mãe e Zeus; Apolónio de Tiana, profeta venerado pelas suas curas milagrosas e ressurreições de mortos, também ele resultado de uma investida de Zeus sobre uma donzela mortal; e César Augusto, que também teve créditos de paternidade divina. No fundo, trata-se de lendas que nos dão uma ideia do contexto mental dos gentios helénicos da época e que são, portanto, importantes para a compreensão histórica dos evangelhos.


Para sustentar a ideia do nascimento em estado virgem, Mateus cita a profecia de Isaías (7:14). Contudo, já há muito que se sabe que o original desta passagem não se refere a uma virgem, nem a qualquer tipo de concepção miraculosa. O equívoco acontece, porque o autor de Mateus cita a profecia de Isaías segundo a versão grega da Bíblia Hebraica (a Septuaginta), que contém vários erros de tradução. Um desses erros ocorre exactamente neste versículo de Isaías: enquanto o original hebraico refere uma ‘mulher jovem’ que irá conceber, a tradução grega refere uma ‘virgem’.
Baseando-se portanto em Isaías (7:14), o autor de Mateus pretende demonstrar que Jesus é o Messias previsto pelas escrituras. O equívoco fornecido pelo erro de tradução motiva-lhe a criação da história do nascimento virginal, uma fórmula que permite colocar Jesus acima de todas as figuras divinas do paganismo. A mensagem de Mateus é clara: Jesus não nasceu meramente de um deus, como Platão ou Apolónio de Tiana; Jesus é ainda mais divino – o seu nascimento foi ainda mais miraculoso: foi virginal.
O aspecto curioso a reter aqui é que a ideia da concepção virginal resulta de uma extrapolação da Septuaginta. Se, por acaso, Mateus tivesse usado a Bíblia Hebraica e não a sua versão (errada) em grego, é muito provável que a ideia da concepção e nascimento virginal – um dos mais importantes dogmas da Igreja Católica – nunca tivesse surgido no seu evangelho. Eis a frágil natureza do alicerce dogmático.
Estranhamente, apesar de ser consensual entre os especialistas que o original de Isaías (7:14) não fala em ‘virgem’, o Catecismo oficial da Igreja insiste em citar, no seu artigo §497, essa passagem do Antigo Testamento com a palavra ‘virgem’. O artigo §498 “rejeita que a concepção virginal seja uma lenda ou apenas uma construção teológica sem pretensão histórica”. Isto quando a mais básica das avaliações históricas parece indicar exactamente o contrário, ou seja, que estamos perante um caso de pura invenção. Mas é assim mesmo que funciona a crença baseada na fé, esse substituto pobre da razão, que tem precedência sempre que as evidências e o pensamento crítico teimam em não corroborar as doutrinas desejadas.
A história da natividade relatada por Mateus assenta como uma luva no imaginário dos gentios e judeus helenizados do Cristianismo primitivo, a quem este evangelho foi inicialmente transmitido.
Segundo Geza Vermes [1], os elementos sobre o nascimento virginal fazem mais sentido se entendidos como um desenvolvimento posterior, uma espécie de prólogo propagandista para consumo de pagãos, que surge só na fase em que a história é transmitida em grego. Antes desta fase, ou seja na tradição pré-evangélica, Jesus seria identificado como o Messias davídico a quem era reconhecida uma relação especial com Deus, mas é pouco provável que se considerasse que era filho de mãe virgem.
Essa é também a opinião de Bart Ehrman [2]: nas tradições anteriores ao Novo Testamento, Jesus era visto pelos seus seguidores como um ser humano (não divino) que tinha sido adoptado por Deus como seu filho. A ideia da concepção virginal não fazia parte do quadro de crenças e era mesmo activamente rejeitada pelos Ebionitas, um dos grupos cristãos primitivos de que há registo, que partilhavam este ponto de vista que os académicos designam por adopcionismo. O facto do evangelho mais antigo (o de Marcos) não fazer qualquer referência à concepção virginal de Jesus reforça esta perspectiva.
A perspectiva adopcionista está em perfeita sintonia com aquilo que sabemos da antiga Mesopotâmia e da Babilónia, em que a divindade titular adoptava o rei como seu filho, conferindo-lhe poder. Este mito encontra reflexo em algumas passagens do Antigo Testamento e era com base neste tipo de filiação simbólica que os primeiros cristãos judeus atribuíam a Jesus o título de Filho de Deus. Segundo Randal Helmes[3], esta filiação nunca foi verdadeiramente compreendida pelos cristãos gentios, os quais, vindos de um ambiente pagão, conheciam unicamente a concepção divina de heróis, em que a divindade era literalmente o pai dessa figura. É, pois, com a transmissão do evangelho junto destes cristãos não judeus que surge, fruto dum processo de sincretismo, a história da concepção divina de Jesus. O erro na tradução grega do Antigo Testamento fornece o motivo adicional para a criação do mistério da concepção e nascimento em estado virgem, reforçando-se assim a imagem de um Jesus literalmente filho de Deus e literalmente divino. Negar a influência do pensamento pagão na génese dos mitos cristãos, como o faz reiteradamente a Igreja no seu Catecismo, é não só intelectualmente desonesto, como um sinal claro da irracionalidade da fé.
A terminar, uma última questão que não se relaciona com a Natividade, mas que vem no seguimento do tema anterior: a virgindade perpétua de Maria.
Na opinião de muitos académicos, é um engano supor que os evangelhos sustentam a ideia de que Maria se tenha mantido virgem até à morte. Trata-se de mais uma invenção da Igreja. Segundo Vermes e James Tabor [4], o dogma da virgindade perpétua não é detectável em passo algum do Novo Testamento, nem faz parte de nenhuma das crenças mais antigas dos primeiros cristãos. A maior parte dos escritos cristãos datados de antes do final do séc. IV EC, aceitavam sem reservas a ideia de que os irmãos e irmãs de Jesus eram filhos nascidos de modo natural de José e Maria. A noção da “virgindade real e perpétua”, referida no artigo §499 do Catecismo da Igreja, não passa pois de um produto da imaginação fértil dos pensadores cristãos, obcecados com a ideia do sexo como veículo primordial de transmissão do pecado original.
EVM

Notas:
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[1] Vermes, Geza; “The Nativity: History and Legend”, London, Penguin 2006.
[2] Ehrman, Bart D.; “The Orthodox Corruption of Scripture: The Effect of Early Christological Controversies on the Text of the New Testament”, HarperCollins, 2011.
[3] Helmes, Randal; “Gospel Fictions”, Prometheus, 1989.
[4] Tabor, James; “The Jesus Dynasty: The Hidden History of Jesus, His Royal Family and the Birth of Christianity”, Simon & Schuster, 2007.

15 de Dezembro, 2024 Ernesto Martins

Equívocos natalícios, Parte 1/2

O Natal já não é como antigamente. Contudo, o motivo original da celebração – o nascimento do Messias da Cristandade – permanece ainda no subconsciente colectivo. Ainda temos presentes os traços gerais da narrativa da natividade de Jesus, que nos foi transmitida na infância, como um acontecimento bastante concreto e real, ocorrido há pouco mais de dois milénios, de onde derivam aspectos importantes do corpo doutrinal da Igreja Católica Apostólica Romana.
Mas, afinal, o que vem a ser esta história extraordinária, feita de anunciações angelicais, nascimento virginal, reis magos, perseguição e fuga para o Egipto? Será este um conto assim tão singular? Até que ponto é que o drama por detrás da festa natalícia corresponde à verdade histórica?
Segundo a visão defendida pela maioria dos historiadores do cristianismo primitivo, o mais provável é que tudo não passe de pura ficção – produto de imaginações férteis e esperanças religiosas a actuar na adaptação de mitos pagãos populares.

Dos quatro evangelhos da Bíblia, apenas os de Mateus e Lucas mencionam as circunstâncias do nascimento de Jesus. Segundo Geza Vermes [1], a explicação para esta singularidade é que estes foram evangelhos particularmente dirigidos a uma audiência de pagãos, ou seja, gente para quem era importante não só a génese de Jesus, como a sua compreensão em termos identificáveis com a sua própria mitologia.
Mas o mais curioso é que as narrativas de Mateus e Lucas são incompatíveis em quase todos os aspectos. Sem exagero, pode mesmo dizer-se que os evangelistas relatam duas histórias completamente distintas. Se a história tradicional de Natal não nos é familiar no formato de duas versões independentes, isso deve-se à relutância que a Igreja sempre demonstrou em reconhecer abertamente discrepâncias nos seus textos sagrados.
Vejamos, então, em que diferem os relatos da natividade preservados nestes dois evangelhos. A perseguição de Herodes, a consequente fuga da família sagrada para o Egipto e o massacre das crianças em Belém só figuram na narrativa de Mateus. Apesar de todo o dramatismo deste episódio, Lucas nem se refere a ele. Em lugar disso, diz-nos que José e Maria se vêem forçados a viajar de Nazaré para Belém por causa de um censo, sendo por essa altura que nasce Jesus.
Além de discordantes, as duas narrativas levantam sérias dificuldades históricas. O massacre dos inocentes descrito em Mateus não é referido por nenhum historiador da época, como Nicolau de Damasco e Filo de Alexandria. Mesmo Flávio Josefo, que dedicou capítulos inteiros às muitas atrocidades perpetradas por Herodes, não nos diz nada sobre o assunto, pelo que o mais certo é que tal nunca tenha sucedido.
A efabulação da narrativa de Lucas ainda é mais fácil de detectar, uma vez que este situa o nascimento de Jesus por altura dum censo decretado por César Augusto e conduzido por Quirino. Ora, sabemos, por Josefo e outras fontes, que este censo teve lugar no ano 6 EC, isto é, 10 anos após a morte de Herodes. Portanto, se confiarmos em Lucas, concluímos que Jesus nasceu a 6 EC, o que contradiz a datação de Mateus de 4 AEC.
Além disso, segundo Lucas, José é obrigado a ir a Belém para se recensear, porque era descendente do rei David – que viveu cerca de mil anos antes. Ora, não é simplesmente credível que populações inteiras tivessem de se deslocar até ao local da sua linhagem ancestral de há um milénio. Certamente que a maior parte das pessoas não saberia para onde ir! Além disso, sabemos hoje que, naquele tempo, os censos não funcionavam assim.
Por que teria então Lucas inventado esta história? Porque, para Lucas, era de crucial importância colocar o nascimento de Jesus em Belém, indo assim de encontro à profecia de Miqueias (5:1), que apontava essa localidade como origem do Messias. Desta forma, os seus leitores não teriam dúvidas de que Jesus era o Messias, ficando ao mesmo tempo com a impressão de que uma antiga profecia se tinha confirmado. Mateus, por sua vez, não tem de recorrer a nenhum artifício para situar o nascimento do salvador em Belém, pois a sua narrativa já parte com o casal Maria e José a residir aí. Contudo, o argumento usado para desviar a família sagrada para Nazaré, após o regresso do Egipto, é também pouco convincente.
Mas há ainda mais diferenças relevantes a assinalar entre os dois evangelhos. Toda a narrativa de Lucas sugere um cenário simples e humilde. Jesus nasce num estábulo e é visitado apenas por um conjunto de pastores anónimos. E não há mais nada em Lucas. Pelo contrário, em Mateus, tudo é grandioso. Aqui o Messias nasce numa casa (e não num abrigo de animais), é anunciado por uma estrela e é visitado por magos do Oriente (que, já agora, nem são reis, nem são necessariamente três). Isto torna evidente que os dois evangelistas tinham de facto entendimentos muito diferentes sobre o Messias, razão pela qual não faz grande sentido misturar os elementos das duas narrativas, como é da tradição. Quando as duas histórias são combinadas, as mensagens individuais perdem-se irremediavelmente. Nas palavras do académico Bart Ehrman [2], o resultado que se obtém não é um quadro completo e mais detalhado dos acontecimentos, como quase sempre se julga, mas antes uma terceira versão da história.
A estrela é outro dos pormenores importantes na narrativa de Mateus. O sinal dos céus é algo recorrente na mitologia da Antiguidade como forma de assinalar o nascimento de alguém capaz de alterar o curso da humanidade. Uma nova estrela surgiu nos céus quando Abraão nasceu. O nascimento de Alexandre o Grande também foi marcado pela observação de uma nova estrela. O mesmo aconteceu quando nasceu César Augusto. Mateus não faz mais do que alimentar a tradição, inventando mais uma estrela e engrandecendo assim o nascimento do Messias à escala das figuras mais eminentes. O mesmo se passa com a homenagem prestada pelos magos, que também surge nas narrativas de outros autores relativas a diferentes personagens históricas. Plínio, por exemplo, menciona a homenagem de magos feita perante Nero. Suetónio faz referência a um mago que proclama o nascimento do Senhor do mundo, aquando do nascimento de Octávio.
O nascimento virginal é talvez o aspecto crucial da natividade de Jesus, mas esse é um tema que deixamos para a segunda parte deste artigo.

EVM

Notas:
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[1] Vermes, Geza; “The Nativity: History and Legend”, London, Penguin 2006.
[2] Ehrman, Bart D.; “Jesus, Interrupted: Revealing the Hidden Contradictions in the Bible (And Why We Don’t Know About Them)”, HarperCollins, 2009.