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Etiqueta: Ateísmo

23 de Novembro, 2025 Eva Monteiro

Terceira Carta a Um Crente

A primeira carta está aqui, e a segunda carta está aqui. Sem esse contexto será complicado entender o texto que se segue.

Este crente é resiliente e tem genuíno interesse no debate. São qualidades que respeito mais do que ele próprio talvez reconheça. Confesso que debater com ateus tem pouco apelo. Naquilo que me interessa debater, concordamos. Naquilo em que discordamos raramente me interessa debater. É uma espécie de desabafo, mais do que debate. Nesse sentido, a troca de ideias com um crente tem para mim mais valor intelectual do que qualquer sessão de concordância com amigos que partilham a minha visão do mundo. Tanto quanto possível, procuro estes debates e sinto que encontrei neste crente alguém que, partilhando do interesse no tema, se coloca do outro lado da mesa com profunda mas respeitosa discordância. Há quem me pergunte como tenho paciência – ao que respondo que, se pudesse, era o que fazia da vida. Não há esforço em manter esta conversa, apenas satisfação em poder fazê-lo com alguém que ainda não desistiu, quanto tantos outros nem sabem por onde começar.

Assim sendo, é com prazer que vos disponibilizo a resposta deste crente anónimo, no seguimento das anteriores já publicadas e respondidas.

Agradeço sinceramente a tua mensagem — não apenas pela forma como estruturaste os teus argumentos, mas pela honestidade intelectual que demonstras ao expor aquilo em que acreditas e aquilo que rejeitas.
Acredito que o diálogo só é verdadeiramente frutífero quando existe abertura de parte a parte. E é nesse espírito — sem pretensão de evangelizar ou converter — que te respondo, ponto a ponto.

“Tu não sabes, acreditas. É matéria de fé e não de facto.”

Começo por concordar contigo num ponto essencial: o verbo saber tem, no campo do conhecimento empírico, um significado que exige demonstração e verificabilidade. Quando alguém diz “sei” sem apresentar provas, é natural que surja ceticismo.

Mas há diferentes camadas de saber.
Há o saber científico (observável e replicável), o lógico (demonstrável pela razão) e o experiencial — aquele que nasce da vivência, da repetição de fenómenos, da coerência entre aquilo que se experiencia e aquilo que se compreende.
Quando um espírita diz “sei que o espírito sobrevive à morte”, não o diz no sentido de uma prova laboratorial, mas no de um conhecimento íntimo e acumulado pela observação reiterada de manifestações semelhantes, por mediunidades diferentes, e pelo impacto moral e intelectual que tais comunicações produzem.

Portanto, sim: é um tipo de saber vivencial e reflexivo, não empírico-laboratorial.
E é importante ser honesto sobre isso — não é ciência no sentido estrito, mas também não é crença cega. É um saber construído a partir da experiência e da razão aplicada a ela.

“Muitos dizem ‘sei’ — o muçulmano, o hindu, o cristão — e não podem ter todos razão.”

Tens razão: a multiplicidade de certezas religiosas é uma das maiores evidências de que o “saber” teológico raramente é factual.
Mas o Espiritismo não se apresenta como revelação exclusiva nem como religião que pretende ter o monopólio da verdade. Kardec partiu precisamente do princípio de convergência — ao comparar mensagens mediúnicas de diferentes locais, culturas e médiuns, procurou extrair princípios universais: a imortalidade da alma, a reencarnação, a lei de causa e efeito, o progresso moral do espírito.

Esses princípios não exigem adesão a um dogma particular ou a uma figura divina específica. São hipóteses filosóficas sobre a natureza da consciência e da moral, e são apresentadas como tal — suscetíveis de reflexão e revisão, nunca como verdades absolutas.

“As experiências subjetivas são universais e explicáveis pela neurociência.”

Também aqui o teu ponto é forte.
A ciência já demonstrou que o cérebro é capaz de produzir estados alterados de consciência, alucinações e sensações de presença. Isso é inegável.
Mas reconhecer que o cérebro pode gerar tais experiências não significa automaticamente que todas elas o sejam.
Do ponto de vista espírita, a mente usa o cérebro como instrumento — o que significa que há interações entre ambos. O que a neurociência observa é a correlação, não necessariamente a causa única.

Por isso, em vez de negar a explicação neurológica, o Espiritismo propõe ampliá-la: o fenómeno mediúnico seria uma coabitação entre planos de consciência, onde o cérebro é o tradutor físico da experiência espiritual. É uma hipótese que a ciência ainda não pode confirmar — mas também não consegue, até hoje, eliminar completamente.

“Kardec não aplicou o método científico.”

Tens toda a razão.
Kardec não realizou experiências controladas no sentido moderno — não havia grupo de controlo, protocolo replicável nem revisão por pares.
O seu método foi comparativo, baseado em observação e coerência das comunicações. Foi uma tentativa de aplicar rigor onde antes só havia superstição. Para o século XIX, foi ousado. Para os padrões científicos atuais, é insuficiente.

Reconhecer isso não é desmerecer Kardec, mas situá-lo historicamente. Ele fez o que pôde com as ferramentas intelectuais e sociais do seu tempo.
A tarefa das gerações seguintes é continuar — aproximando cada vez mais o estudo espiritual das exigências metodológicas modernas.

“O Espiritismo procura confirmar, não refutar.”

Aceito a crítica — e, em muitos casos, é justa.
Muitos grupos espíritas caíram na armadilha do verificacionismo, isto é, aceitar apenas aquilo que confirma a crença prévia e descartar o que a contradiz.
Mas o verdadeiro espírito da obra de Kardec não é esse. Ele próprio dizia: “A fé inabalável é apenas a que pode encarar a razão, face a face, em todas as épocas da humanidade.”
Portanto, a busca por refutação deveria ser parte do movimento espírita — e, quando não é, estamos a falhar com Kardec.

“É o argumento do Deus das lacunas — usar o sobrenatural onde não há explicação.”

Concordo contigo no essencial: ausência de explicação não é prova de explicação sobrenatural.
O Espiritismo, quando é fiel ao seu princípio filosófico, não usa o sobrenatural para tapar buracos, mas como hipótese para explicar certos fenómenos observáveis, como as comunicações mediúnicas e as lembranças espontâneas de vidas passadas.
Não digo que sejam provas definitivas — mas são dados interessantes que desafiam o modelo materialista estrito.

Além disso, o Espiritismo não nega a ciência. Ele apenas propõe que há dimensões da existência que o método científico ainda não consegue medir.
Não porque sejam mágicas, mas porque estão fora do alcance instrumental atual — como tantas coisas estiveram antes da física quântica ou da biologia molecular.

“Darwin usou método; Kardec não.”

Certo.
Darwin partiu da observação empírica e construiu hipóteses testáveis. Kardec partiu da observação subjetiva e construiu um sistema moral e filosófico.
São naturezas de trabalho diferentes. Darwin criou uma teoria científica. Kardec, uma filosofia espiritualista.
Seria intelectualmente desonesto colocar ambos no mesmo patamar. Mas também seria injusto desconsiderar que ambos procuraram sentido num mundo que se abria à razão.
Kardec quis tirar o espiritualismo da superstição; não o conseguiu transformar em ciência, mas deu-lhe uma lógica e uma ética.

“Não há provas de consciência fora do cérebro.”

Concordo — não há provas aceites pela comunidade científica.
Mas há casos documentados de experiências de quase morte (EQMs), percepções verídicas durante estados de inconsciência cerebral, e mediunidades estudadas sob condições controladas (como as de Leonora Piper ou Chico Xavier).
Nenhum desses casos é prova absoluta — mas são indícios que pedem estudo, não ridicularização.

Aceito, portanto, o princípio científico: afirmações extraordinárias exigem provas extraordinárias.
Até lá, mantenho a hipótese aberta e o espírito de investigação — porque negar o inexplorado com a mesma certeza com que se afirma o conhecido também é, em si, um dogma.

“O Espiritismo usa apelos à ignorância e wishful thinking.”

Em muitos casos, sim — e é importante admiti-lo.
Mas há espíritas que, como eu, tentam viver a fé sem abdicar da lucidez.
O Espiritismo não deve servir como anestesia da razão. Deve servir como estímulo ao questionamento, à pesquisa e à melhoria moral.
Se a fé serve para fugir da dúvida, é frágil.
Mas se a fé te leva a estudar mais, a servir melhor e a compreender o outro, então cumpre a sua função espiritual.

“Ciência e fé não se complementam; misturá-las é erro.”

Depende do que chamamos “complementar”.
Não defendo que fé e ciência expliquem o mesmo — a ciência responde ao como, e a espiritualidade ao porquê.
Uma estuda os mecanismos; a outra, o sentido.
O erro está em confundir as fronteiras: quando a fé tenta substituir a investigação, erra. Quando a ciência tenta negar o valor da experiência espiritual, erra também.
Ambas são expressões da mesma busca humana por compreensão. Só diferem nas ferramentas.

“O Espiritismo é autoritário porque tem postulados inquestionáveis.”

Infelizmente, parte da prática espírita contemporânea confirma isso.
Há grupos que transformaram princípios em dogmas e médiuns em oráculos. Mas isso não é o Espiritismo de Kardec — é o seu desvio humano.
O verdadeiro Espiritismo é livre-pensador, experimental, questionador.
O seu lema é “fora da caridade não há salvação” — não “fora do Espiritismo não há verdade”.
Se há autoritarismo, é sinal de que nos afastámos da essência.

“A fé é conforto; a verdade é desconfortável — devemos escolher a verdade.”

Concordo plenamente.
O conforto é uma consequência possível da fé, mas não deve ser o seu propósito.
Prefiro uma fé inquieta, que questiona, que aceita a dúvida como parte do caminho, do que uma fé adormecida que teme pensar.
A verdade é o objetivo — e, se um dia a ciência provar que o espírito não sobrevive, aceitarei com serenidade.
Mas até lá, as minhas experiências, os testemunhos que observei, as transformações morais que vi em pessoas através da prática espírita — tudo isso me indica que há mais para descobrir.
E enquanto essa hipótese resistir à razão e à ética, continuarei a estudá-la.

✦ Conclusão ✦

Eva, agradeço sinceramente a tua mensagem.
Sei que a tua intenção não foi ofender, mas propor um debate com rigor — e é exatamente isso que o Espiritismo genuíno deve acolher.
Não te escrevo para te convencer; escrevo para partilhar a minha forma de compreender a realidade, consciente das suas limitações e aberta à crítica.

Creio que a busca pela verdade não pertence a nenhum campo em exclusivo.
A ciência investiga o universo externo; a espiritualidade investiga o universo interno.
Quando ambas caminham com honestidade, complementam-se — não em autoridade, mas em propósito.

No fim, o que realmente importa é evoluir moralmente — aprender a amar, compreender e servir melhor.
E nisso, quer se seja ateu, espírita, cristão ou nada disso, todos estamos na mesma estrada.

Segue-se a minha resposta:

Agradecimentos à parte, porque já ambos expressamos gratidão pela disponibilidade um do outro, acho que te devo apenas dizer que as tuas respostas me dão sempre prazer em ler e igual prazer em contra-argumentar. Não nego que continuo a discordar das tuas posições e que dificilmente isso mudará (apesar de reconhecer que a possibilidade existe), como não tenho qualquer pretensão de mudar a tua. Contudo, explicar as nossas ideias a outros expõe-nos à crítica. De que outra forma posso encontrar falhas no meu pensamento? Por isso, enquanto tiveres paciência e o tema não se esgotar, eu mantenho a minha disponibilidade para continuar este debate.

Confesso que a expressão “tentar dar a volta ao texto” surge-me com alguma facilidade à medida que leio os teu comentários. Em relação ao verbo saber, usas o termo “conhecimento empírico”. Espero que não te importes que eu prefira “epistemologia”. Acho sinceramente que a distinção importa. É que a epistemologia investiga os critérios, fundamentos e limites do “saber”: o que justifica uma crença, como distinguimos verdade de erro, que métodos são fiáveis e porquê. O conhecimento empírico, por sua vez, nasce da fricção direta com a realidade, daquilo que podemos ver, medir e testar. A diferença entre ambos é simples: a epistemologia é a reflexão sobre o conhecimento; o conhecimento empírico é o próprio conteúdo observado no mundo.

É importante fazer esta distinção porque primeiro há que estabelecer o que significa “saber”, e depois então partimos para a descoberta da realidade, para os dados concretos. Partindo da epistemologia, saber é aquilo que resta depois de termos removido a fé, a superstição, o autoengano e o sentimentalismo. Ou seja, aquilo que se aguenta em pé mesmo quando alguém está ativamente a tentar derrubá-lo. Saber é o que resta do empirismo quando lhe apontas uma bazuca e tentas dar cabo de tudo o que achas que aprendeste com os dados que obtiveste. O saber é para abalar, porque só a fé pode ser inabalável.

Percebes certamente porque é que não posso aceitar a tua posição à luz da epistemologia. Não há camadas de saber, há factos e há hipóteses. Há diferentes tipos de hipóteses, no sentido em que umas são mais plausíveis e bem sustentadas que outras. Contudo, a factualidade não se presta a graus. O meu maior problema, se calhar onde vamos sempre encalhar a conversa, está aqui: “experiencial — aquele que nasce da vivência, da repetição de fenómenos, da coerência entre aquilo que se experiencia e aquilo que se compreende”. Ora, a vivência pessoal, por mais intensa, repetida ou emocionalmente marcante que seja, não é, em si, critério de verdade. A epistemologia moderna é clara neste ponto: uma crença verdadeira por acidente ou por impressão não constitui conhecimento. Centenas de pessoas podem ter visões religiosas, encontros com antepassados, presenças espirituais ou sensação de sair do próprio corpo. A repetição dessas vivências não as torna mais verdadeiras; torna-as apenas mais humanas. A subjetividade não se valida a si mesma.

A repetição de fenómenos subjetivos não tem o mesmo estatuto que a replicação experimental, pelo que não concordo que os coloques no mesmo patamar. Repetir a experiência de alguém não é repetir um fenómeno observável e controlável. Uma alucinação recorrente continua a ser uma alucinação. Uma interpretação errada que se torna rotina não deixa de ser errada. Nos vários campos da ciência, repetir significa recriar condições, controlar variáveis, medir resultados, comparar com hipóteses formuladas anteriormente e permitir que outros obtenham os mesmos resultados. Não só permitir como garantir, no sentido em que, se for avançada uma hipótese que só pode ser repetida pelo próprio, simplesmente não passa no escrutínio de pares e cai por terra com um estrondo vergonhoso. Nada disto se aplica à experiência íntima, que é, por definição, privada, não controlável e não partilhável enquanto dado bruto.

A “coerência entre o que se experiencia e o que se compreende” é um critério circular, sem valor epistemológico. Uma crença aparenta ser coerente quando encaixa nas expectativas e no sistema previamente aceite pelo próprio. Mas coerência interna não é prova de verdade. Um astrólogo encontra coerência entre os mapas astrais e as personalidades que interpreta. O conspiracionista encontra coerência entre os seus medos e os sinais que recolhe, em padrões que lhe parecem inegavelmente relacionados. O místico encontra coerência entre estados mentais e explicações espirituais. Em todos estes casos, a coerência é produto do sistema de crenças, não prova da realidade. Alguém encomenda um bruxedo para fazer mal ao Trump. Por sua vez, o presidente dos EUA, de 79 anos vividos à base de excessos e big macs parece ter a sua saúde afetada repentinamente. A bruxa convence-se que o seu feitiço resultou e nós todos aplaudimos?

Portanto, quando afirmas que o conhecimento experiencial “nasce da vivência, da repetição de fenómenos e da coerência entre experiência e compreensão”, estás, sem te aperceberes, a oferecer uma definição de crença subjetiva, não de conhecimento. O que se quer é a coerência entre conclusões e a realidade, os malditos dados que o espiritismo teima em não avançar ou deixar recolher. A tua definição ignora os pilares básicos do conhecimento: justificação adequada, possibilidade de erro identificável, correspondência com a realidade e métodos que eliminem vieses cognitivos, ilusões internas, distorções emocionais e interpretações à base do desejo, o tal do wishful thinking.

A ciência não rejeita a experiência; rejeita apenas a elevação da experiência a critério de verdade. A experiência é o ponto de partida, nunca pode ser o ponto de chegada. O rigor epistemológico exige que se pergunte: “o que é que, na minha vivência, pode ser explicado por mecanismos naturais, psicológicos, neurológicos ou culturais antes de recorrer a hipóteses sobrenaturais?” Se esta pergunta for evitada (e é apenas isso que o espiritismo faz), o resultado deixa automaticamente de ser conhecimento e passa a ser convicção sentimental(ista). O critério do espiritismo, levado a sério, destrói-se a si mesmo: se tudo pode ser “sabido” pela experiência íntima, nada pode ser verdadeiramente sabido. O verbo saber é de uma austeridade que nega qualquer subjetividade. É um binário: ou sabes ou não sabes. Se sabes, consegues demonstrar, se não sabes, bom… não sabes.

Não querendo ser aborrecida, eu tenho mesmo de fincar o pé. Tanto quanto consigo entender os teus comentários, parece-me que apresentas como método aquilo que, analisado friamente, não passa de filtragem seletiva de dados. Dizes que se recolhem (suponho) largos números de comunicações e que se encontram as convergentes. Mas esse processo, se descrito com precisão epistemológica, é simplesmente isto: sistematização de testemunhos subjetivos mediante critérios arbitrários de coerência. É precisamente o oposto do método científico, cujo valor reside não na confirmação, mas no teste destrutivo, vulgo, na tentativa sistemática de refutar as próprias hipóteses.

Tenho que discordar quando dizes que não há dogmas envolvidos neste processo. Claro que há. Se questionares precisamente “a imortalidade da alma, a reencarnação, a lei de causa e efeito, o progresso moral do espírito” que resta do teu espiritismo? Não tens de acreditar em espíritos para seres espiritista? Então isso é um dogma. Parece-me, e corrige-me se estiver errada, que poderás estar a confundir dogma com pecado ou proibição. Essas crenças que partilhas com os outros espíritas e das quais depende a vossa adesão a essa doutrina (ou a uma das muitas doutrinas espíritas) não têm que informar as vossas decisões no dia a dia. Uma coisa é aquilo em que se acredita outra é aquilo que se faz com o que se acredita. Tem de ser dogmática a crença, no mínimo, em espíritos, senão até eu posso dizer que sou espírita:

– Mas Eva, acreditas na imortalidade da alma?

– Não, eu nem na alma acredito quanto mais.

– Mas então és espírita?

– Pois claro que sou, acreditar em espíritos não é um dogma do espiritismo, eu sou o que me apetecer ser, deixa-me estar cá com as minhas “verdades pessoais”.

Acho que não preciso de te dar mais exemplos do quão incoerente é dizer que não há dogma no espiritismo. Se há uma crença que é condição sine qua non para a tua identificação com o espiritismo, isso é precisamente o dogma do qual dependes para o seres.

Impõe-se-me aqui uma pergunta: em que te baseias para dizeres que “O que a neurociência observa é a correlação, não necessariamente a causa única”? A tua frase distorce o que a investigação científica realmente demonstra. A neurociência não se limita a observar paralelismos entre atividade cerebral e experiência mental. Pelo contrário, observa relações causais diretas, repetidamente testadas e manipuláveis. Qual correlação? Causalidade, se faz favor. Repara: estimular certas áreas do cérebro produz pensamentos e emoções específicos, lesões em regiões definidas eliminam funções cognitivas particulares, há fármacos que alteram neurotransmissores e que por isso modificam o humor, a personalidade e até, imagina, convicções religiosas. A anestesia geral suspende a consciência ao desligar circuitos neurais específicos. Estes factos não são apenas correlações: são provas de dependência causal. Parece-me que estás a tentar insinuar a possibilidade de uma “causa oculta” como um espírito a operar por trás do cérebro. Só que essa hipótese não produz previsões, não é necessária para explicar os dados existentes, não melhora o modelo neurobiológico e não é testável. É, portanto, uma adição metafísica ad hoc, introduzida apenas para preservar uma crença prévia, e não uma inferência razoável baseada em evidência. Lá vamos nós ao dogma.

Ao insinuares que a explicação neurobiológica pode não ser suficiente por não ser “a causa única”, confundes complexidade causal normal (genética, ambiente e história pessoal, entre outros) com a necessidade de introduzir entidades sobrenaturais não demonstradas. A alegação de que “correlação não implica causalidade” torna-se, assim, um pretexto para proteger uma hipótese espiritual, ao ignorares que a ciência, neste caso, já demonstra causalidade. Invocar causas invisíveis que não acrescentam poder explicativo e que não podem ser refutadas é um exemplo clássico do argumento da ignorância, do “espírito das lacunas” e da inversão do ónus da prova. A neurociência não pode provar o que não está lá. A hipótese neurobiológica é simples, preditiva, testável e suficiente; a hipótese espiritual não explica nada que o modelo científico não explique e só subsiste quando se abdica do rigor científico. Incomoda-me esta frase porque me parece apenas um mecanismo retórico para manter intacta uma crença metafísica.

Na ciência, a posição padrão é metodologicamente naturalista: postulam-se explicações que fazem uso de causas dentro do reino observável e testável até que surjam razões muito fortes que justifiquem o recurso a entidades não-falíveis e não-observáveis. Isso nunca aconteceu. E isto não é dogma, é a regra prática que torna possível o progresso científico.

A apreciação histórica de Kardec, que fazes é sensata num plano historiográfico: para o seu tempo, comparativo e sistemático, o método de Kardec revelou um esforço por organização intelectual de fenómenos que muitos consideravam superstição. Cabe aos historiadores das ideias reconhecer isso. No entanto, o facto de um método ter sido útil ou inovador para um contexto social passado não converte automaticamente o seu resultado em ciência moderna. Os critérios de cientificidade evoluíram: controlo experimental, cegamento quando possível, grupos de controlo, documentação replicável, análise estatística e revisão por pares são exigiências que surgiram precisamente porque reduzem o erro humano. A ausência desses elementos em investigações do século XIX não é um erro moral de Kardec, é uma limitação metodológica. Quanto a mim, isto significa que as conclusões por ele retiradas não gozam do estatuto de teorias científicas no sentido contemporâneo. Na verdade, mal se consequem qualificar para os mínimos olímpicos da hipótese.

Eis o que me incomoda: que os espiritistas ou kardecistas (qualquer que seja a nomemclatura com que te identifiques) tenham dado a mão a Kardec no século XIX e prefiram manter o braço esticado no tempo em vez de reverem a hipótese postulada à luz de uma metodologia científica atual. Porquê?

Que aconteceria se em vez de retirar só o que lhe interessa, Kardec tivesse analisado os dados todos? Esquece Kardec, porque é que os espíritas não o fazem agora? Que vos impede de utilizar o método científico agora? Se consegues demonstrar “a imortalidade da alma, a reencarnação, a lei de causa e efeito, o progresso moral do espírito”, eu ofereço-me como tributo. Em vez dos Jogos da Fome, fazemos os Jogos do Espiritismo. Deixa-me reunir uma equipa de céticos e vamos ter contigo (e com a equipa de espíritas que quiseres reunir), de mente aberta. Desde que nos deixes estabelecer os critérios de investigação (que serão inequivocamente científicos), nada nos deixaria mais felizes. Recolhemos todos os dados que nos forem possível recolher, apresentamos as descobertas que houver a apresentar e submetemo-las ao escrutínio de pares. A mim soa-me incrível. Perdoa-me o humor mas: Nobel Prizes galore.

Continua?

7 de Novembro, 2025 Eva Monteiro

Segunda Carta a Um Crente

A primeira Carta a Um Crente está aqui. Poderá dar maior contexto à troca que se segue.

E não é que obtive resposta? Contra todas as minhas expectativas, o kardecista que anteriormente me abordou e que após insistência minha disse que eventualmente responderia… respondeu mesmo. Não é costume, pelo que lhe reconheço muito valor pelo respeito e esforço. Decidi partilhar aqui porque poderá ter interesse para os que apreciaram a primeira troca.

Segue a resposta do crente:

Boa noite Eva. Por mais que queira, não está a ser fácil dar-te a devida atenção e por isso peço desculpa pela resposta tardia.

Agradeço-te o cuidado e a profundidade da tua mensagem. É raro encontrar um diálogo que não se limite a slogans e que procura ir à raiz das ideias. É nesse espírito de respeito e reflexão que te respondo.

Quando digo “eu sei que existe”, não me refiro a um saber de laboratório, mas a uma certeza construída pela experiência íntima, pelo raciocínio e pela observação dos efeitos espirituais ao longo do tempo. No Espiritismo, essa certeza não é cega nem dogmática, é resultado de estudo, comparação e repetição de fenómenos mediúnicos que, analisados em conjunto, apontam para a sobrevivência da consciência após a morte.

Kardec nunca afirmou possuir provas absolutas, mas propôs algo que considero de uma lucidez rara para o seu tempo:

“Fé inabalável é somente aquela que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da humanidade.”
(O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XIX)

Ou seja, no Espiritismo, crer não é o oposto de pensar. É crer porque se pensa.

É verdade que Kardec não aplicou o método científico no sentido estrito moderno, mas também é verdade que a ciência do século XIX ainda não tinha instrumentos para abordar a consciência como hoje começa a tentar fazê-lo. O que ele fez foi usar o método da observação comparada e recolher milhares de comunicações, eliminar as incoerentes, comparar mensagens de origens diferentes e sistematizar princípios. Não é ciência de laboratório, mas é um método de verificação empírica dentro dos limites possíveis quando o objeto de estudo é o espírito e não a matéria.

Quanto à ideia de que as experiências mediúnicas são meras ilusões neurológicas: o Espiritismo não as exclui. Kardec alertou inúmeras vezes para o autoengano, a influência do subconsciente e dos espíritos inferiores. A verdadeira investigação espírita começa justamente pela dúvida e pela necessidade de confirmação. A diferença é que, depois de filtradas e repetidas, muitas experiências deixam de poder ser explicadas apenas pela imaginação e é nesse ponto que nasce a convicção pessoal, fruto de observação e de coerência interior.

O teu apelo ao questionamento é algo que também defendo. A diferença é que, para mim, o verdadeiro questionamento inclui não excluir à partida a hipótese de que a consciência não se limite ao cérebro. A postura espírita não é de negação da ciência, mas de complementaridade, a ciência explica o mundo físico e o Espiritismo tenta compreender o mundo moral e espiritual que o completa.

Não vejo no Espiritismo uma instituição que pretenda impor autoridade sobre o pensamento humano, vejo, antes, uma doutrina que liberta da autoridade ao incentivar o estudo, o livre-arbítrio e a responsabilidade individual. O anticlericalismo, nesse sentido, não é uma ameaça ao Espiritismo, porque este não tem clero, dogma, nem intermediários entre o homem e Deus.

Por fim, não te escrevo por evangelização, nem para arrancar ninguém de lado algum. Escrevo porque acredito que o diálogo sereno entre a razão e a espiritualidade é a via mais digna de evolução que podemos trilhar.
Como bem disseste:

“Evoluímos melhor quando a verdade, e não o conforto, é o nosso objetivo.”
Nisso, estamos de pleno acordo. 🙏

Ora, como é evidente, eu respondi:

Boa noite,

Antes de mais, quero agradecer-te por teres dedicado o teu tempo a responderes-me.

Acho que quando falas em saber que algo existe por convicção pessoal, estás a cair na falácia da ambiguidade. Dizes que “sabes que Deus existe”, mas que não te referes a um saber de laboratório, e sim a uma certeza interior construída pela experiência. É nisto que precisamos de rigor: o verbo “saber” não muda de significado conforme a conveniência de quem o usa. O conhecimento, em qualquer domínio, requer justificação e correspondência com a realidade. Se falta a justificação verificável, não é saber, é crença. A sinceridade da crença não é um selo de verdade. Pelo contrário: faz-se hoje em dia uma apologia da crença como se fosse uma coisa boa e desejável, como se fosse um marco de integridade e bondade, quando no fundo, só significa ter grande convicção na ausência de provas. Um muçulmano, um hindu ou um cristão místico podem todos afirmar “eu sei que o meu deus existe”, e no entanto as certezas deles são mutuamente exclusivas. Para o teu deus existir, o deus dos outros tem de ser falso. Todas as crenças podem ser (e não duvido que sejam) sentidas como verdadeiras, mas não podem sê-lo simultaneamente. A emoção, por mais intensa que seja, não é critério de realidade. Só deste um palavreado mais intelectual à expressão “mas eu acredito”.

Referes que o Espiritismo chega a essa certeza pela repetição de fenómenos mediúnicos e pela observação comparada. Contudo, a repetição de experiências subjetivas, sem controlo e sem exclusão de hipóteses alternativas, não é ciência, é circularidade na melhor das hipóteses. A tua descrição do método kardecista não passa de um processo de confirmação seletiva. Ou seja, eliminam-se as comunicações incoerentes, sistematizam-se as que parecem convergir e conclui-se que há coerência. No entanto, isso só pode acontecer precisamente porque as incoerências foram descartadas. Não é o método científico a ser aplicado. Esse pode ser aplicado por qualquer pessoa, pelo que se o Espiritismo estivesse em posição de ser confirmado pela ciência, já não pertenceria ao campo da crença. É, aliás, um caso clássico de viés de confirmação. Se um cientista aplicasse este procedimento a um fenómeno físico, seria descredibilizado à primeira revisão por pares. Por falar nisso, onde está a revisão por pares do Kardecismo? Ou os pares têm de ser kardecistas? A grande diferença aqui é que a ciência não elimina as anomalias: investiga-as. No Espiritismo, pelo contrário, as anomalias são descartadas para que a hipótese original se mantenha intacta. Ou seja, o que o kardecista faz é o mesmo tipo de “cherry picking” de todas as outras religiões, tradições místicas, ocultismos e afins, mas com uma roupagem científica. Lembra-te que também os Cientologistas o fazem, e com o mesmo resultado: uma mão cheia de coisa alguma (e a outra cheia de dinheiro).

A frase “Fé inabalável é somente aquela que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da humanidade” não diz rigorosamente nada. É um chavão conceptualmente autofágico. Se a fé espírita tem de encarar a razão, então também tem de se submeter ao critério racional. Ora isto significa que deve poder ser provada, testada e, se falhar, abandonada. Mas o Espiritismo não permite esse exame. Nenhuma das suas afirmações centrais (existência de espíritos, reencarnação, mediunidade, ação dos “fluidos”) resiste ao método científico. Portanto, a própria citação, se levada a sério, aniquila a doutrina que pretende enobrecer. É o mesmo que um astrólogo dizer: “A astrologia é válida apenas se passar pelos testes da astronomia”. Pois claro, só que não passa. E o Espiritismo muito menos. Aceito a ideia de que o Espiritismo possa ser “crer porque se pensa”. Contudo, quando as pessoas pensam mal, acabam a acreditar em falsidades. Daí a necessidade do método científico que, não sendo infalível, é a melhor ferramenta de que dispomos para evitar pensar muito e chegar na mesma a conclusões falsas. A fé que encara a razão não é fé: é hipótese. Se resiste à razão, não precisa de se proteger com metáforas. Se depende da intuição interior, não é conhecimento, não é ciência, não é nada senão aquilo que acontece em todas as religiões do mundo: crença infundada e infundável.

O argumento de que “a ciência do século XIX não tinha instrumentos para estudar a consciência” é um equívoco histórico. O método científico não depende de tecnologia, depende da lógica e do controlo experimental. Em 1859, Darwin publicou “A Origem das Espécies” com base em observação e dedução. Não tinha, nessa altura, um único microscópio eletrónico ou um décimo da tecnologia de que hoje dispomos. O que faltou a Kardec não foram instrumentos, foi precisamente o método. E, mais grave que isso, o que ele propôs não se tornou mais plausível com os instrumentos que a ciência desenvolveu desde então. Se estivesse correto e apenas não tivesse na altura a tecnologia para o provar, o que está a impedir os kardecistas hoje? Não há confirmação da hipótese espírita da sobrevivência da consciência em nenhuma investigação em neurociência, psicologia ou física moderna. Nem sequer há indícios de que a mente exista fora do cérebro, de todo, em nenhum estudo que tenha sido levado ao escrutínio de pares.

Fonte: Britannica

Afirmas que, depois de filtradas e repetidas, certas experiências deixam de poder ser explicadas “apenas pela imaginação”. Essa frase é um exemplo típico da falácia do apelo à ignorância. O facto de não sabermos explicar algo não significa que a explicação espírita esteja correta. Só porque ainda não explicámos algo, não significa que seja inexplicável, é apenas para já inexplicado. E só porque a ciência ainda não explicou determinado fenómeno (sublinho que esse fenómeno deve pertencer ao campo da realidade e não da imaginação), não significa que possas apontar uma explicação sobrenatural só porque te apetece. Se fosse assim, cada lacuna da ciência seria prova do sobrenatural. Essa é precisamente a armadilha do “deus das falhas”, que podemos até apelidar, neste caso, de “espíritos das falhas”: sempre que a explicação natural ainda não está disponível, o sobrenatural preenche o vazio. O problema é que, à medida que o conhecimento avança, as lacunas encolhem e o espiritual recua. A história da ciência é, em grande parte, a história do recuo dos deuses, dos espíritos, das fadas, dos unicórnios, das sereias e restantes criaturas do plano da fantasia. O grande problema está onde dizes “A verdadeira investigação espírita começa justamente pela dúvida e pela necessidade de confirmação”. O método científico não procura confirmação, procura refutação. Quem procura confirmação é o crente, que precisa muito de acreditar e vai em busca de padrões que justifiquem a crença. Parte da resposta, não parte da pergunta. Não é racional, é emocional, é fé.

Dizes também que o verdadeiro questionamento não deve excluir à partida a hipótese de que a consciência não se limita ao cérebro. Concordo, não se deve excluir nenhuma hipótese a priori. Mas uma hipótese que não apresenta qualquer evidência positiva é, por definição, descartável a posteriori. Nas palavras de Christopher Hitchens: “O que pode ser afirmado sem evidências pode ser rejeitado sem evidências”. É esta a navalha que corta, a posteriori, as afirmações de Allan Kardec que, por melhores intenções que tivesse, falhou redondamente a missão. Não é uma questão de recusar à partida uma hipótese, é não me ser dado a encontrar nenhum mérito racional na hipótese colocada. O ceticismo não é o dogma da negação: é a recusa em aceitar como verdadeiro o que não foi demonstrado. A diferença pode ser subtil, mas é mesmo essencial. A dúvida é uma virtude precisamente porque nos protege da tentação de confundir desejo com realidade. O tal “wishful thinking” de que tanto falam os americanos.

Quanto à “complementaridade” entre ciência e espiritismo, o termo é sedutor mas intelectualmente falso e muito enganador. Ciência e fé não se complementam, porque operam em planos distintos e com métodos incompatíveis. Aliás, sempre que se tentam misturar, acaba a fé a querer encurtar a ciência. A ciência, por sua vez, não se preocupa com a fé, deixa-a à porta do laboratório porque não cabe lá dentro. A ciência exige prova e refutabilidade. Já o Espiritismo aceita convicção e intuição, como se o valor fosse o mesmo quando definitivamente não é. A complementaridade só é possível se uma abdicar da sua natureza. Historicamente, é sempre a fé que acaba por abdicar (entre birras e pontapés), ajustando-se a contragosto à medida que a ciência avança. Quando o Espiritismo se afirma “em harmonia com a ciência”, é porque se adapta retroativamente aos seus resultados, nunca porque os antecipa ou os demonstra. Caso contrário não se chamava Espiritismo, chamava-se Neurofísica Post-Mortem ou coisa que o valha.

Dizes ainda que o Espiritismo liberta da autoridade. Mas toda a doutrina que parte de postulados inquestionáveis, como a existência de espíritos, a reencarnação, a evolução moral das almas, entre outros, é uma estrutura de autoridade dogmática, ainda que possa não depender de um clero. A ausência de sotainas e chapéus esquisitos não é sinónimo de liberdade intelectual. Um sistema de crenças que não admite a possibilidade de estar errado é, por definição, autoritário. Mesmo que o autoritarismo se disfarce de serenidade. Ora, se o Espiritismo estivesse disposto a reconhecer efetivamente as suas falhas, já não teria adeptos, já teria concluído que não há razão para manter estas crenças, porque não passam no escrutínio do método científico. Eu sou de facto anticlerical. No entanto, só porque um determinado corpo de crenças não é clerical não me faz ter por ele mais consideração intelectual. O que ganha a minha aceitação são os factos, não o que alguém escreveu num livro, ou em muitos, com roupagens pseudocientificas.

Por fim, afirmas que o diálogo entre razão e espiritualidade é a via mais digna de evolução. Eu diria antes que o diálogo entre razão e espiritualidade só é fértil quando a espiritualidade aceita o crivo da razão e se deixa expirar como o iogurte estragado que é. A espiritualidade que resiste à verificação é apenas uma forma de poesia existencial. Pode ser muito bonita, muito afável ao ego, mas revela-se impotente perante a realidade. A verdade não se mede pela paz interior que nos oferece, mas pela correspondência com os factos. Daí que a utilidade da fé para efeitos de conforto emocional não justifique nada.

Fico contente por concordares que evoluímos melhor quando a verdade, e não o conforto, é o nosso objetivo. Mas a verdade exige disciplina intelectual: a disposição constante de dizer “posso estar enganado”. Essa é precisamente a diferença entre o método científico e qualquer doutrina espiritual: uma pode falhar e corrigir-se, a outra precisa de permanecer certa para continuar a consolar. E entre a necessidade de consolo e o dever de lucidez, hei-de escolher sempre a lucidez.

30 de Outubro, 2025 Onofre Varela

Humanismoe lei religiosa (3 e Fim)

Quando se fala em Humanismo, está-se a falar de quê?

Não há uma definição única amplamente aceite de Humanismo, tal como acontece noutros assuntos relacionados com o Pensamento. Pode haver versões paralelas em cada movimento desenvolvido por pensadores que fizeram as várias épocas que nos precederam, criando variações. Na Igreja essas “variações” são designadas por cisma.

Podemos dizer que os humanistas se opõem à imposição política de uma cultura e rejeitam ditaduras. Também não pertencem a uma igreja ou religião estabelecida, nem aceitam o uso da violência sob qualquer justificação.

Uma definição de Humanismopode ser esta: “Uma postura de vida democrática e ética na afirmação de que os seres humanos têm o direito e a responsabilidade de dar sentido e forma às suas próprias vidas. Representa a construção de uma sociedade mais humana através de uma ética baseada em valores humanos e naturais, no espírito da razão e na investigação livre. O Humanismo não é teísta nem aceita visões sobrenaturais da realidade”.

Em conformidade com esta definição, os humanistas apoiam a erradicação da fome, as melhorias na saúde, na habitação e na educação. O Humanismo é um conceito que pretende melhorar as condições sociais, aumentando a autonomia e a dignidade de todos os seres humanos, seja qual for a geografia de onde sejam naturais ou onde se encontrem. Rejeita qualquer forma de divindade e defende o bem-estar e a liberdade dos povos perante tudo e todos, com base no respeito da dignidade do Ser Humano.

O conceito humanista também pode ser referido por “Humanismo Renascentista” pelo facto de ter nascido num movimento intelectual e filosófico que floresceu na Europa entre os séculos XIV e XVI, com origem em Itália. Caracterizou-se pelo interesse renovado na antiguidade clássica, pelo antropocentrismo (o homem no centro do universo) e pela crença nas capacidades do ser humano, influenciando a arte, a ciência e a filosofia. Este movimento marcou a transição do pensamento medieval para o moderno, promovendo uma visão mais racional e individualista.

O termo Humanismo para designar esse resgate dos valores do período clássico, foi inicialmente usado pelo estudioso alemão Friedrich Niethammer, na sua obra de 1808: “A controvérsia entre filantropismo e humanismo na teoria da instrução educacional do nosso tempo”.

Friedrich Niethammer

No contexto histórico das transformações sociais que marcaram o tempo de Niethammer, o Humanismo surgiu como manifestação cultural de rupturas com a decadência da hegemonia da Igreja e o enfraquecimento do poder papal, a secularização da política, o surgimento das monarquias nacionais com o fim do feudalismo e a renovação da filosofia: portanto, uma atitude positiva para a Humanidade no seu todo.

O movimento trouxe uma renovação no estudo de Humanidades como algo essencial à formação do Ser Humano enquanto universalista.

Hoje vivemos um mau período para o Humanismo. Assistimos a práticas políticas anti-humanistas promovidas por uma extrema-direita que alastra como nódoa social, ajudada pela ganância pessoal de políticos, a qual é, sempre, alicerçada na ignorância e na falta de memória histórica. Com a sua retórica, os anti-humanistas convencem os eleitores menos atentos que são apanhados pela ganância própria do miserável que, destituído de moral humanista, quer ultrapassar o seu vizinho mas nunca deixando de ser, no pensamento, o miserável que é… por muito dinheiro que tenha… mas habitualmente é pobre. No bolso e no pensamento.

26 de Outubro, 2025 Onofre Varela

Humanismo e lei religiosa (2)

É sabido que as ditaduras oprimem os povos submetendo-os a uma pretensa “tradição a pedir respeito”. Tal tradição não passa de falácia pela qual se praticam maldades. As tradições sociais e religiosas não legalizam a maldade. 

Numa aldeia transmontana era tradição prender um gato no cimo de um poste, ao qual se ateava fogo! Numa outra localidade espanhola também era tradição lançar uma cabra viva, das ameias de um castelo, para um penhasco!

Dir-se-á que nas duas situações se dava vida a “tradições culturais” comunitárias… mas eram, principalmente, acções desumanas e cruéis que tiravam a vida aos animais (ou os feriam) para gáudio de uns tantos homens de comportamento moral duvidoso (muito mais imoral do que moral) que a “cultura” não pode tolerar e que a lei de um país moderno não pode outorgar; por isso se proibiram essas práticas “culturais”. As leis não podem ser desligadas do respeito devido a qualquer ser humano, ou animal, seja aqui ou na Cochinchina.

No Irão e no Afeganistão praticam-se leis que não são modelo de respeito em lugar nenhum do mundo… começando por não o ser nos próprios países que as praticam. No Irão, em Outubro de 2024 foi publicada uma lei sobre o uso do “hijab” (lenço de cabeça) que castiga com até cinco anos de cadeia as mulheres que não o usem. 

Num comunicado da organização “Human Rights Watch” (Observatório dos Direitos Humanos – uma organização não governamental) faz-se saber que a nova lei, intitulada “Protecção da família através da promoção da cultura do hijab e da castidade”, apresentada no Parlamento iraniano a 20 de Setembro de 2023, foi aprovada pelo Conselho dos Guardiões, o órgão religioso que faz a aprovação final das leis do país. 

Tal lei consolida medidas que já vigoravam para impor o véu islâmico, e adiciona sanções mais severas, como multas e penas de prisão mais longas, bem como restrições ao emprego e às oportunidades de educação para os infractores. (No Ocidente os governos extremistas de Direita vão atrás dos mentores islâmicos e proíbem o uso de trajes regionais. Por cá, a proibição acontece para imigrantes quando usam trajes folclóricos quando não são minhotos, escalabitanos ou algarvios!…).

A morte da jovem de 22 anos Mahsa Amini, às mãos da polícia em Setembro de 2022 por não usar o hijab conforme a lei manda, desencadeou uma onda de protestos durante vários meses com motins nas ruas e a polícia a matar e a prender manifestantes. 

Fonte: Britannica

O governo autocrático e religioso, em vez de responder ao movimento “Mulher, Vida, Liberdade” com as reformas fundamentais reivindicadas, “silenciou as mulheres com leis de vestuário ainda mais repressivas, o que só pode gerar uma resistência e um desafio feroz entre as mulheres dentro e fora do Irão”, disse Nahid Naghsh Bandi, investigadora da Human Rights Watch no Irão. 

A nova lei, que pode castigar com cinco anos de prisão a falta de uso do véu, é composta por 71 artigos que reforçam o controle sobre a vida das mulheres e das instituições que não aplicam estas medidas. No século XXI, o Irão – que tem a carga histórica de se localizar na região geográfica da Mesopotâmia onde nasceu a civilização há cerca de seis mil anos – em termos de evolução do pensamento ainda não passou da mais profunda Idade Média!

(Continua)

20 de Outubro, 2025 Onofre Varela

Humanismo e lei religiosa (1)

O tema em que pego para escrever esta crónica, obriga-me a ocupar um espaço maior do que aquele que o jornal me concede. Vou, por isso, dividi-lo em três partes, publicando hoje a primeira parte.

Cada país rege-se pelas leis aprovadas no seu Parlamento, o qual tem duas formas de existência: ou foi formado pelo voto popular e vive em Democracia, ou foi imposto por um qualquer sistema ditatorial.

Retirando a segunda hipótese que todos nós rejeitamos (espero eu… exceptuando quem não o rejeita, até o deseja, e que hoje até tem assento no nosso Parlamento), é comum, por respeito à liberdade dos povos, não nos imiscuirmos na política interna de outros países, nem “ditarmos leis” na casa dos nossos vizinhos. Mas podemos (e, sobretudo, devemos) criticá-los porque a Democracia também existe para isso mesmo… e no caso de os nossos vizinhos serem dirigidos por ditadores, podemos (e também, sobretudo, devemos) ajudá-los a combater a ditadura que os oprime, em nome da decência, da ética e da Humanidade.

As leis não caem do céu como as folhas outonais caem das árvores.

Há uma “História das Leis” ligada ao desenvolvimento da Civilização. No Egipto Antigo, há 5.000 anos, já havia uma lei escrita para governar o país, baseada na tradição e na igualdade social.

Há 3.800 anos, o Código Hamurábi regia a lei na Babilónia, ficando conhecido como o primeiro código de leis da civilização Suméria (o berço da civilização).

Fonte: The Paris Review

O Antigo Testamento tem mais de 3.300 anos e assume a forma de imperativos morais (alegadamente ditados por um deus) como recomendações para uma boa gestão da sociedade.

Há cerca de 2.900 anos, Atenas foi a primeira sociedade a basear-se na ampla inclusão dos seus cidadãos, mas excluindo mulheres e escravos.

A lei romana foi influenciada pela filosofia grega e impôs-se na Europa Medieval após a queda do Império Romano, a qual foi retocada com preceitos religiosos católicos.

Depois surgiu a necessidade de redigir leis internacionais para regular o comércio em toda a Europa e no mundo.

Toda esta retórica me serviu para chegar ao momento de dizer que, embora cada país tenha a autoridade legal e inalienável de ditar leis aos seus povos, é igualmente verdade que a liberdade de cada pessoa em qualquer parte do mundo é, também ela, inalienável à luz do Humanismo, do conceito da igualdade e do respeito devido ao próximo. Por isso as ditaduras são repudiadas.

Podemos dizer que cada sociedade tem a sua sensibilidade, e esta está na base das leis que a rege. Porém, o Humanismo não está presente nas leis de muitos países… e o Ser Humano é igual em qualquer parte do mundo. Cada mulher, cada homem, cada criança, tem o mesmo sistema nervoso que lhes permite sentir alegria e tristeza perante a mesma experiência de vida, e não precisamos de estudar Direito para sabermos – e sentirmos – o que é justo e o que é injusto. Aqui ou nos antípodas.

O Humanismo, com todas as particularidades que o constroem, é o único modo político e económico de governar (bem) os povos, em qualquer parte do mundo.

PARTE 2

18 de Outubro, 2025 Eva Monteiro

Soltem as Ideias

O Vice-Presidente da Associação Ateísta Portuguesa, Onofre Varela, em conversa sobre a sua vida:

5 de Outubro, 2025 Eva Monteiro

Carta a um Crente

(Quase) todas as quartas-feiras sou anfitriã de um debate online em que convido crentes a discutirem temas que me parecem relevantes à luz das suas crenças. Faço-o através da plataforma TikTok e vou lá deixando também, em formato de vídeo, algum conteúdo. Foi com alguma surpresa que encontrei na minha caixa de entrada desta plataforma uma mensagem mais educada e razoável que as do costume (normalmente são insultos). Sou detalhada nas minhas respostas, pelo que no fim, achei que o texto poderia ser útil e decidi publicá-lo aqui. O que se segue é a mensagem inicial desta pessoa:

Ponderei bastante antes de enviar mensagem. Era bem mais fácil não dizer nada e pronto, vida que segue. Mas não consigo concordar contigo em relação às religiões. As religiões têm um papel fundamental na sociedade e esta é somente a minha opinião. E esta é a minha verdade. Tu tens a tua e outra pessoa qualquer poderá ter a dela e está tudo certo. Sem julgamentos, até porque a meu ver cada um tem o seu caminho e trajeto a seguir. Que me digas que houve e há uma instrumentalização por parte dos homens em relação a essas mesmas religiões, sem dúvida alguma, 100% de acordo. No entanto, as religiões na sua essência são apenas e só uma maneira de mostrar valores e distinguir o certo do errado. Percebo que me digas que isso faz parte da educação de cada ser, mas na minha opinião não é a mesma coisa. Pois uma coisa é o pai, ou a mãe, ou mesmo a professora, outra é supostamente uma entidade superior a demonstrar o bem ou o mal.

Atenção que à medida que crescemos todos nós optamos por diversos caminhos e começamos a questionar esses mesmos ensinamentos. O que é normal pois são apenas histórias que passaram de pessoas para pessoas e que quem as passa age como se fossem verdades absolutas.

Como é lógico, devemos questionar sempre e não acreditarmos em algo só porque sim. Devemos tirar as nossas próprias conclusões, pelas nossas próprias experiências e também pelas nossas pesquisas se assim o desejarmos e quisermos saber mais. Por exemplo, se me perguntares se eu acredito em Deus, eu vou responder o que respondo sempre. Eu não acredito, eu sei que Existe.

Não me identifico com nenhuma religião. Fui educado sim na igreja católica cristã (é cultural) e tive passagens pelo budismo. No entanto, desde os meus 5 anos de idade que tenho contato com outros planos, que não aquele que estamos no momento presente. Estudo o espiritismo segundo Allan Kardec, sempre baseado no método científico.

Como eu costumo dizer, o espiritismo não é uma religião, é um modo de vida. É apenas a maneira como vemos o mundo e que não há certos nem errados, há apenas experiências e modos de fazer e ver as coisas de maneira diferente. Lá porque dizes que algo é assim e eu digo que é assado é tudo uma questão de perspectivas. Estamos sempre a aprender e a evoluir.

Peço desculpa pela intromissão e pelo testamento. Bom fim de semana.

A minha resposta:

É a tua vez de me perdoares a extensão da resposta. Quando acabei de a escrever dei conta que talvez tenha sido detalhada demais. Ainda assim, acho que devo escrever o que tenho a dizer e tu decidirás se tens o tempo e a paciência de fazeres a leitura e até, se eu tiver alguma sorte, responderes aos pontos em que discordo contigo.

Prometi que te respondia mal pudesse dar atenção completa à tua mensagem e tive algum tempo para ponderar. É sempre um sinal de integridade intelectual quando alguém que me manda mensagem privada numa rede social se dispõe a refletir, questionar e dialogar, mesmo quando o tema é sensível; e poucas coisas o são mais do que as crenças religiosas. Por isso, antes de mais, quero agradecer-te novamente pela mensagem.

O facto de não concordares comigo quanto às religiões é válido, temos direito a portar diferentes opiniões e a defendermos diferentes posições. Contudo, eu acredito em fundamentar as minhas posições e a questionar o fundamento das posições contrárias à minha. Desta forma, posso entender se a minha posição está afinal, errada. Hoje não foi o dia. Parece-me que confundes, antes de mais, opinião com verdade. Esta ideia de que dada coisa é “a minha verdade” é completamente descabida. É a tua opinião, faz parte da tua mundividência, é o que tu achas. A verdade é outra coisa. Não depende da opinião nem da perspectiva de quem afirma que algo é verdadeiro, mas da coerência entre a afirmação e a realidade. Isto é, uma afirmação é verdadeira se corresponder aos factos ou ao estado de coisas que a pessoa afirma.

Quanto a opiniões, cada um tem a sua, é verdade. Por outro lado, não devo aceitar tudo o que me dizem só porque as pessoas têm direito a terem opiniões. Podemos certamente concordar que nem todas as opiniões fazem sentido. Há quem acredite que a terra é plana. Têm direito a acreditar numa coisa falsa, mas eu não tenho que aceitar que a terra é plana só porque essa é a opinião de uma pessoa que está muito claramente errada mas que decidiu ser essa “a sua verdade”. Há opiniões sobre tudo e para todos os gostos. Algumas opiniões são inócuas, outras têm consequências. Quando a consequência só atinge o próprio, está tudo bem. Quanto a consequência atinge outros ou a sociedade em geral, creio que opor-me é imperativo.

Do ponto de vista histórico, é verdade que as religiões moldaram civilizações, inspiraram arte, música e literatura, e serviram de estrutura moral e social durante séculos. Mas a questão crucial é: a que custo e com que fundamentos. A religião, de uma forma geral, foi a primeira explicação que a humanidade conseguiu dar a grandes questões, mas não foi a última nem foi a melhor. Pelo contrário, é a mais imperfeita das explicações do mundo e a que provocou piores danos. Contudo, ainda que não tivesse provocado danos e não fosse hoje uma visão obsoleta, o facto de em tempos ter tido utilidade não significa que seja verdade. São dois conceitos diferentes. Um vidente pode ser útil a um cliente que lá vai desabafar, mas não deixa de ser charlatanice. Naturalmente, não concordo contigo que as religiões ainda têm esse papel social, pelo menos no ocidente secularizado em que as leis, feitas por pessoas para pessoas, moldam a nossa vida diária. Por outro lado, a religião mantém esse poder em países onde a teocracia é a regra. Acho que basta olhar para os países que não fazem a separação entre o estado e as organizações religiosas para vermos o quanto a religião corrompe e destrói sociedades inteiras.

Quando alguém me diz que as pessoas é que instrumentalizam a religião, sinto que estamos a cair numa tautologia. A religião não é petróleo. Não é uma coisa que a humanidade descobriu e que não soube usar corretamente. A religião é uma construção humana cujo objetivo é o controlo. Parece-me por isso evidente que um instrumento seja… instrumentalizado. Basta olharmos para as sociedades para entendermos que tipo de deuses é que as pessoas criam. Uma sociedade de pequenas tribos, onde toda a gente se conhece e em que a violência e o crime são situações pontuais e aberrantes tende a ser animista. Já uma sociedade que desenvolve grandes cidades tende a criar deuses que vigiam, que estão em todo o lado, que castigam pecados. A religião é o que as pessoas criam antes de desenvolverem sistemas legais e modos mais seculares de regulação social.

Na sua essência, as religiões não te dão um sistema de valores. Pelo contrário, és tu que imprimes moralidade à religião que professas. Por isso é que tantos cristãos não são racistas, misóginos e violentos, apesar de o seu livro sagrado estabelecer um sistema de “valores” absurdo e impensável. Se decidisses agora seguir à letra o sistema de valores que o cristianismo, o judaísmo ou o islamismo oferecem nos seus escritos sagrados, só não ias parar à cadeia se te rebentasses juntamente com uma bomba, ou te suicidasses após desatares a matar infiéis, pecadores, bruxas, ateus e outros. Se seguisses à letra esse sistema de “valores”, não distinguirias o certo do errado. É porque consegues distinguir o certo do errado que tens a capacidade de ignorar as partes imorais de uma religião e selecionar ou reinterpretar as partes que se coadunam com o teu sistema moral.

Para mim, distinguir o que é bom e o que é mau também não faz inteiramente parte da educação de cada pessoa. Faz também parte do processo de seleção e da sobrevivência da espécie. Somos uma espécie cooperativa e se não tivéssemos a capacidade de coexistir, de saber que não se faz mal aos outros, que devemos ser bons uns para os outros, não sobreviveríamos enquanto espécie. Com todos os defeitos que temos, temos tendência a não sermos violentos, a não sermos destruidores da nossa própria espécie. É coisa comum a muitas espécies, especialmente entre os mamíferos e especificamente entre os primatas que nos são, do ponto de vista da evolução, mais próximos. A mãe e o pai, ou a mãe e a mãe, ou o pai e o pai, ou a avó, o avô, o tio, a tia, ou seja quem for que educa uma criança tem um papel essencial na sua vida através da educação e isso eu não nego. Uma criança bem educada terá um futuro mais feliz e útil, para si e para os outros. Contudo, falas de uma entidade superior que demonstra o bem e o mal. Suponho no entanto que o teu deus, seja ele qual for, nunca te respondeu às preces de forma audível e verificável. Não temos quaisquer provas de que uma entidade sobrenatural alguma vez tenha falado ou aparecido a alguém. Temos é padres, pastores, bispos, apóstolos, profetas, gurus e restantes líderes espirituais que dizem saber o que está certo e o que está errado, e que afirmam o que é ou deixa de ser a vontade do respetivo deus. Ora, cada líder religioso tem a sua opinião sobre o que está certo ou errado, pelo que não existe nessa suposta comunicação divina objetividade suficiente, nem nos dias de hoje nem ao longo da História, para suportar a tua afirmação. Eu creio que entendes isto, pela forma como escreves, mas não me parece que entendas que o que dizes num parágrafo contradiz o que dizes no parágrafo anterior.

Concordo que devemos questionar, tirar as nossas próprias conclusões, como dizes. Mas então em que momento desse processo é que entra deus?

Dizes uma frase que já ouvi centenas se não milhares de vezes em debates, especialmente com cristãos e muçulmanos: “Eu não acredito, eu sei que Existe.” Na verdade é o oposto, tu não sabes, tu acreditas. É matéria de fé e não de facto. Se soubesses efetivamente que o teu deus existe, terias como prová-lo. Se fosse esse o caso, não estaríamos a debater via mensagem no TikTok, terias mostrado esse facto à humanidade, não existiriam ateus e terias ganho meia dúzia de prémios Nobel e pelo menos uma beatificação. É apenas, e lamento ter que to dizer de forma tão direta, uma frase feita daquelas que os padres e os pastores gostam de atirar ao ar mas que carecem de qualquer tipo de sentido. É aquela jogada de dizer “eu sei no meu coração que deus existe” – se sabes no teu coração, não sabes na tua cabeça. Estou interessada naquilo que é verificável, não em “verdades pessoais” que é uma forma de dizer crenças infundadas.

Quando alguém me diz que não se identifica com nenhuma religião chego sempre à conclusão que é porque não se querem comprometer à partida com determinados dogmas, com os quais podem não concordar ou não saber como sustentar. No entanto, quando faço perguntas a quem diz que não se identifica com nenhuma religião, chego sempre à conclusão que o deus em que acreditam é aquele que lhes foi imposto na infância e que as suas crenças religiosas vão de encontro às crenças da instituição religiosa correspondente, ainda que não na sua totalidade. Resumindo, posso dizer que apesar de tu não te identificares com nenhuma religião, bastariam 10 minutos de conversa honesta para eu fazer essa identificação por ti. Aliás, esse diálogo, a ser feito internamente e de forma honesta, provavelmente também faria com que te identificasses com alguma religião. Vou apostar, sem muita base, porque essa conversa não aconteceu, que acreditas no deus da Igreja Católica (omnisciente, omnipotente, omnipresente e bom), mas que gostas de práticas mais místicas pelo que em vez de ires à missa preferes meditar e que não te identificas com a Igreja Católica porque o Kardecismo te conferiu a crença de que o mundo dos espíritos está ao teu alcance, quando a Igreja o nega. Isto é, descaradamente, um pré-conceito da minha parte. Não o nego e até peço desculpas se estiver errada. No entanto, apostaria uns euros nesta opinião se fosse forçada a isso.

Quanto ao espiritismo e à ideia de contacto com outros planos, o que posso dizer é que a sinceridade da experiência não garante a veracidade da interpretação. As experiências subjetivas (visões, intuições, sentimentos de presença) são universais e explicáveis em termos neurológicos e psicológicos. A mente humana é extraordinariamente criativa, e o cérebro é capaz de gerar experiências intensamente reais que, no entanto, não têm correspondência objetiva. O método científico serve precisamente para proteger-nos dessas ilusões, inclusive das mais agradáveis.

Embora Allan Kardec afirmasse seguir o “método científico” na elaboração da doutrina espírita, na realidade ele nunca aplicou qualquer procedimento científico reconhecível. Não houve observação controlada, hipóteses testáveis, experimentação reproduzível nem revisão por pares. O que Kardec fez foi recolher relatos mediúnicos e interpretá-los à luz das suas próprias convicções, apresentando-os como factos. Esse processo pode ter sido feito com sinceridade, mas não é ciência, é especulação metafísica. A ciência baseia-se em evidências verificáveis e na possibilidade de refutação. Já o espiritismo baseia-se em testemunhos subjetivos e fenómenos não demonstráveis. Portanto, apesar de Kardec desejar dar ao espiritismo uma aparência racional, os seus escritos pertencem ao domínio da crença, não ao da investigação científica. Que seja esse o teu modo de vida é uma escolha pessoal que não tenho que questionar. Contudo, é só isso, uma escolha de vida que em nada demonstra a veracidade dos ensinamentos que escolheste seguir e que em nada se baseia no método científico.

Concordo inteiramente contigo num ponto essencial: devemos sempre questionar e continuar a aprender. O problema é que o verdadeiro questionamento exige que também coloquemos em dúvida as nossas certezas mais íntimas, inclusive as espirituais. E é aqui que a postura ateísta não é uma negação da espiritualidade humana, mas uma exigência de honestidade intelectual. Por fim, suspeito que o que te incomoda no meu conteúdo é sobretudo o anticlericalismo. Deixa-me só referir que o anticlericalismo não é ódio à religião, mas defesa da liberdade de consciência contra qualquer instituição que pretenda ter autoridade sobre o pensamento humano. É uma oposição ao poder clerical. As igrejas e demais instituições religiosas e espirituais, todas elas, devem ser submetidas ao mesmo escrutínio que qualquer outra forma de poder. Isso não é intolerância; é maturidade intelectual.

Ao ler e reler a tua mensagem fico na dúvida: seria uma forma de evangelização? Tens como objetivo arrancar-me do ateísmo herege e pecaminoso? Tiveste necessidade de partilhar as tuas crenças porque sentes que o meu conteúdo as invalida de alguma forma? Ou só quiseste iniciar um debate? Não sei, mas agradeço na mesma a tua mensagem. O diálogo é o que nos permite evoluir.

Evoluímos melhor quando a verdade, e não o conforto, é o nosso objetivo.

29 de Setembro, 2025 Onofre Varela

«ERA UMA VEZ NA AMÉRICA»…

Os Estados Unidos da América (EUA) pelas acções dos republicanos no poder comandados por Donald Trump, deram, de si mesmos, a habitual imagem degradante do que é a política na versão fundamentalista com muletas religiosas.

Charlie Kirk, militante republicano assassinado a tiro no dia 10 de Setembro último, foi homenageado num recinto que se mostrou pequeno para albergar a multidão que acorreu à homenagem, congregando cerca de 90.000 pessoas. Kirk foi honrado como “mártir da fé cristã”, nas palavras do vice-presidente dos EUA, J. D. Vance. E Donald Trump, por sua vez, referiu-o como um “evangelista da liberdade”!…

Esta do “evangelista” é a mais recente versão do Cristianismo no seu modelo de seita fundamentalista, conseguida na confusão do lema “A América Grande Outra Vez” inventado por Trump, que é o candidato ao lugar histórico de ditador dos EUA. Nesta aproximação da América actual ao figurino religioso islâmico-fundamentalista, o Secretário de Estado Marco Rubio comparou Charlie Kirk a Jesus Cristo!…

Por sua vez, a viúva de Kirk tomou parte do espectáculo debitando um discurso místico, perdoando ao “jovem que matou” o seu marido, porque foi o que Jesus fez na cruz, ao dizer “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”. “Porque a resposta nunca é o ódio, mas sim o amor. Amor pelos nossos inimigos e por quem nos persegue”.

Seguiu-se um outro momento patriótico com a multidão a entoar a canção “América the Beautiful”, rematada com um discurso do conselheiro presidencial Stephen Miller, dizendo que os que estão contra o activista Kirk “não são conscientes do que despertaram. Vós acreditastes que pudestes matar Charlie Kirk? Só conseguistes torná-lo imortal… agora, milhões tomarão o seu lugar!”

Depois apelou à derrota “das forças das trevas e do mal”, concluindo: “Não podem parar-nos. Nós temos beleza, luz, virtude, força, determinação. Os nossos inimigos não percebem a nossa paixão. Nós construímos este mundo e vamos defendê-lo. Estamos do lado do bem, do lado de Deus”. A seguir, Jack Posobiec, comentador de extrema-Direita e apoiante fervoroso de Trump, na mesma senda de Miller, entrou em cena apelando “a uma guerra espiritual”!…

Chegou o momento de Trump brilhar em apoteose, encerrando o degradante espectáculo. Fez um comício onde enalteceu o ideal “republicano-americano”, defendendo as comissões “caça-dinheiro” que impôs aos países que querem negociar com os EUA; atacou Joe Biden (o seu inimigo de estimação já neutralizado desde as eleições); mais os imigrantes que quer ver expulsos do território; e mais a “esquerda radical” a quem culpa pelo assassinato de Kirk; e ainda os meios de informação independentes por não dizerem o que ele quer que se diga. Acabou em grande, garantindo que nos seus oito meses de governação converteu os EUA no “país mais sexy do mundo”!…

Se tudo isto não é uma súmula de discursos de loucos… então o que é?!…

Aquilo que seria o funeral de um activista político assassinado, foi transformado numa jornada “político-religiosa” com Deus na boca e o Diabo no coração de todos os intervenientes, ao estilo das ameaças extremistas islâmicas!

E tudo isto acontece, hoje, na América!…

28 de Setembro, 2025 Onofre Varela

Pode-se viver sem deuses, mas não sem Conhecimento

Roberto Calasso foi um escritor e editor italiano que morreu em Milão no dia 29 de Julho de 2021, com 80 anos de idade. Reconhecido pelos seus amigos como sendo dono de um carácter “muito difícil e complicado”, também se lhe reconhecia a sua extrema elegância, falando com a precisão dos sábios. E sabia manter o silêncio sobre qualquer pensamento do qual ainda não tivesse tomado consciência plena para se poder exprimir sobre ele.

O filósofo e ensaísta espanhol Juan Arnau, especialista em religiões orientais, escreveu sobre Roberto Calasso, começando por dizer que “da solidão surge o conhecimento, do conhecimento a arte e da arte o eterno, fechando-se o ciclo”. Calasso não encontrava diferença entre “o pensamento e a literatura”, convivendo com as duas matérias como se fosse uma só.

Numa das suas últimas entrevistas, o escritor e editor confessou que se pode viver sem os deuses, mas que “a experiência do divino muda tudo”, e é essencial saber reconhecê-lo. Calasso soube ler o mundo como se fosse um texto sagrado no qual estamos entrelaçados, mas, ao mesmo tempo, olhava com receio os êxitos da nossa civilização tecnológica, dizendo que “a tecnologia cria a ilusão do conhecimento”, e que “estamos perto de sabermos quase tudo do que não nos interessa saber”.

Sobre a Neurociência (disciplina da moda no século XXI), Calasso mostrou-se muito crítico da ideia de “a consciência ser uma propriedade da matéria”, concluindo que a antiga busca do divino, encetada pelos gregos, se transformou hoje na indagação sobre a Natureza e a consciência, mas que a nossa civilização não foi (ainda) capaz de distinguir “mente e consciência”.

Nem sequer Husserl, que foi o primeiro a fazer da consciência o tema central da filosofia contemporânea. (Gustav Hussel [1859-1938] foi um filósofo e matemático alemão, fundador da “escola da fenomenologia”, cujo pensamento influenciou profundamente todo o cenário intelectual do século XX, mais a parte do século XXI que já vivemos).

Ao contrário do que é aceite – de que a mente está no cérebro – Calasso defendeu o contrário: o cérebro é que está dentro da mente! A identificação entre mente e cérebro é um dos descalabros do pensamento moderno – dizia ele – para a seguir sentenciar que “na sociedade secular tudo é idolatria, e que toda a boa literatura é sagrada”. A mente deixou-se embrulhar na sua própria projecção “e a inteligência deixou-se absorver pelos algoritmos”, do que resultou esta fatalidade: “os verdadeiros problemas não têm solução”… ou não estamos nada interessados em procurá-la, encantados que nos sentimos na artificialidade com que decoramos a naturalidade, como se fosse uma árvore de Natal!…

22 de Setembro, 2025 João Monteiro

Oradores Congresso Livre-Pensamento

João Monteiro

Presidente da Associação Ateísta Portuguesa, é licenciado em Biologia, mestre em Biologia do Desenvolvimento e doutorado em História, Filosofia e Património da Ciência e Tecnologia. Tem trabalhado nas áreas da comunicação de ciência e da investigação académica. A sua investigação tem-se centrado em torno dos temas da História da Medicina Tropical, o papel das mulheres na ciência e coleções científicas. Vai falar da história recente do ateísmo em Portugal.

Anabela Pinto-Poulton

Anabela Pinto-Poulton é licenciada em Biologia Universidade Clássica de Lisboa, com Mestrados em Ecologia pela Universidade de Aarhus (DK) e Psicologia pela Universidade de Hertfordshire (UK). Doutorada em Evolução e Ecologia Comportamental pela Universidade de Aarhus.

Trabalhou como investigadora na Universidade de Cambridge nos departamentos de Veterinária, Antropologia Biológica e Psicologia e leccionou nas Universidades de Cambridge e outras instituições britânicas e internacionais em comportamento, bem-estar e ética animal, antropologia biológica, psicologia, métodos em investigação científica, escrita académica em inglês e pensamento crítico.

Em 2002 fundou a empresa Cambridge e-Learning Institute oferecendo os primeiros cursos on-line internacionais em bem-estar animal e pensamento crítico para universidades e empresas. Foi professora convidada para dar cursos em pensamento crítico em Chengdu na China e em várias Universidades no Brasil.

Palestrante internacional, tem dedicado os últimos 20 anos de sua carreira a promover o pensamento crítico. O seu interesse académico foca em psicologia evolutiva onde se debruça sobre a evolução da moralidade e psicologia da religião.

J. Xavier de Basto

J. Xavier de Basto pertence à Associação República e Laicidade desde 2004 e, actualmente, é membro da sua Direcção. É lisboeta, tem 60 anos e trabalha com sistemas informáticos de gestão (ERP) para as PMEs desde 1988. Xavier resume assim a sua apresentação: “Definição/ões da Laicidade.  Análise breve da situação da Laicidade em Portugal. Desafios para a Laicidade, no futuro próximo numa realidade globalizada.”

João Sequeira

Arqueólogo licenciado e mestre pela Univ. Nova de Lisboa, é doutorando em História – Património na Universidade do Minho, com o projeto “Humanizar a Arqueologia Industrial”, financiado pela FCT em 2021 e desenvolvido nos centros CICS NOVA e IHC. É autor e coautor de vários artigos e do livro Arqueologia Contemporânea em Portugal (séc. XIX e XX). Tem experiência em intervenções arqueológicas empresariais e participou em projetos como o IH4Future na Fábrica de Pólvora de Vale de Milhaços.

Joel Santos

Joel Santos licenciou-se em Arqueologia pela Universidade NOVA de Lisboa. Obteve posteriormente um mestrado em Arqueologia e Património na Universidade de Leicester, onde desenvolveu uma dissertação sobre a Arqueologia da Solidão. Apaixonado pela resolução de problemas, dedica-se principalmente à análise crítica e ao debate teórico em Arqueologia, aplicando também conhecimentos adquiridos numa licenciatura anterior em Engenharia Electrónica e de Computadores no Instituto Superior Técnico de Lisboa

Tânia Casimiro

Tânia Casimiro é investigadora da Universidade de Stirling, associada ao Centre for the Sciences of Place and Memory. Arqueóloga especializada em cultura material, marginalidade urbana e legados coloniais, a sua pesquisa explora memória, lugares e identidades por meio de diversos projetos, incluindo a arqueologia dos resíduos e descartes, espaços abandonados, cemitérios e comunidades urbanas informais. Liderou escavações e projectos interdisciplinares em diferentes lugares do mundo, investigando como objectos e espaços preservam histórias e relações.

Estes três oradores (João Sequeira, Joel Santos e Tânia Casimiro) irão falar de arqueologia do lixo religioso. Mas de que se trata esta área de estudo arqueológica? Os oradores apresentam o seu tema da seguinte maneira: “A Arqueologia do lixo religioso desmonta a ilusão da pureza espiritual associada a dois rituais católicos: a Procissão das Velas em Fátima e a Luminara de San Ranieri em Pisa. Milhões de fiéis produzem toneladas de plástico, que são ocultadas em tempo real para manter a aura do sagrado. A arqueologia que defendemos é ativista e, através de uma abordagem também em tempo real, pretende desmascarar o óbvio: devoção e destruição caminham juntas, e a fé acaba por ser um gatilho de indiferença na produção de lixo, a que chamamos religioso.”

Eva Monteiro

Formada em Filosofia pela Faculdade de Letras Universidade do Porto, produziu e apresentou o Podcast Portugal de Culto em que explorou temas controversos relacionados com seitas religiosas e outros grupos de alto controlo. Podcaster e dirigente da Associação Ateísta Portuguesa, promove o pensamento crítico e a laicidade. Apresenta e produz o Podcast Homo SemDeus, denunciando violações da laicidade em Portugal. Citada no livro O Universo das Seitas Destrutivas, participou na sua apresentação ao lado de Steven Hassan.

João Nascimento

Assistente técnico do SNS, poeta, filósofo, amante da palavra escrita e da ironia como força metafísica. Motivado por uma sede incessante por conhecimento e pelos mistérios do cosmos. Fascinado pelo estudo histórico das religiões. Escreveu o texto biográfico de homenagem a Tomás da Fonseca, personagem histórica que inspirou a organização deste Congresso.