Loading
17 de Novembro, 2006 Palmira Silva

Genoma Neanderthal parcialmente descodificado


Como já referi, durante muito tempo pensou-se que o Neanderthal foi um degrau na evolução do homem, isto é que a árvore filogenética do homem seguiu uma única linha entre o Australopithecus, Homo habilis, Homo erectus, Homo sapiens neanderthalensis e o Homo sapiens sapiens. Hoje em dia acredita-se que o Neanderthal é um ramo paralelo, sem sucesso, da evolução dos descendentes do Homo heidelbergensis, que seguiram duas linhas de evolução diferentes, respectivamente na Europa e em África.

A datação de ossos através do carbono-14 permitiu concluir que homem de Neanderthal – assim como o Homo erectus, um ramo do Homo Ergaster – e o Homo sapiens foram contemporâneos. O que levanta várias questões, não só sobre as razões da extinção do Neanderthal mas sobretudo sobre a possibilidade de cruzamento genético entre ambas as espécies.

Nomeadamente, as descobertas no Vale do Lis, especialmente o fóssil conhecido como «menino do Lapedo», permitiram a uma equipa de cientistas que inclui o português Zilhão afirmar que houve cruzamento do Neanderthal com o sapiens. Mas a maioria dos cientistas da área contesta as conclusões de Zilhão e existem muitas dúvidas sobre se o menino do Lapedo é de facto um híbrido de sapiens e Neanderthal.

Mais recentemente, uma equipa de cientistas publicou as conclusões da sua análise dos esqueletos encontrados na caverna Petera Muierii (caverna da velha mulher) na Roménia, em que afirmam ter existido mistura do sapiens com o Neanderthal e como tal a hipótese de que o Neanderthal é um beco sem saída evolutivo deve ser abandonada.

O projecto do genoma do Neanderthal é a única forma de esclarecer inequivocamente esta questão. De facto, apenas por comparação do genoma do Neanderthal com o genoma do homem se poderá averiguar se existiu contribuição genética do Neanderthal para o homem moderno. A comparação conjunta com o genoma do chimpanzé permitirá ainda lançar luz sobre o que significa geneticamente ser humano, isto é, permitirá determinar exactamente que parte do genoma humano nos é único e caracteriza a nossa espécie.

Projecto cujos primeiros resultados foram publicados nas edições desta semana das revistas Nature – que se foca no genoma do Neanderthal– e Science.

Mais de um milhão de pares de bases de ADN fossilizado foi analisado usando uma técnica adequada ao tratamento do ADN antigo e degradado proveniente de um exemplar, o Vindija Neanderthal com 38 000 anos, descoberto na Croácia.

Apesar de apenas uma pequena parte do genoma Neanderthal ter sido descodificada os resultados parecem indicar que não houve cruzamento entre o sapiens e o Neanderthal e permitiram concluir que ambas as espécies partilharam um ancestral comum há aproximadamente 706 000 anos e a separação das populações ancestrais respectivas aconteceu há cerca de 370 000 anos, antes do aparecimento dos homens anatomicamente modernos.

Estes resultados preliminares levantam outras questões que será interessante ver como são analisadas pelos teólogos cristãos que negam a (macro)evolução do homem. Isto é, a descoberta da caverna de Blombos na África do Sul e as descobertas arqueológicas em Skhul, Israel, e Oued Djebbana, Argélia, permitiram concluir que a capacidade cognitiva e o comportamento associado ao ser do homem evoluiu com o próprio homem, tendo estado presentes no Neanderthal e nas populações Sapiens mais antigas. Ou seja, não são exclusivas ao homem anatomicamente moderno!

Isto é, e como já apontei, se o homem evoluiu lenta e progressivamente de um organismo unicelular primevo, desenvolvendo gradualmente o que nos torna diferentes das outras espécies – o tal «princípio vital» que possibilita as nossas capacidades senciente e intelectual únicas – como justificar o pecado original e a necessidade de um mítico salvador/caçador de «almas»?

E em que ponto da evolução fomos mimoseados com almas que necessitam ser «salvas»? Teria o Neanderthal alma? Se sim, que «pecado original» cometeu para «merecer» a extinção?

16 de Novembro, 2006 Palmira Silva

Linha dura do Vaticano reafirmada (de novo)

Sofreram mais uma desilusão os que ainda acreditavam ser possível um suavizar das posições neolíticas do Vaticano.

De facto, foi divulgado há minutos pela sala de imprensa da «Santa» Sé, as conclusões da reunião de Bento XVI com os presidentes dos Dicastérios da Cúria Romana para analisar o chamado «caso Milingo», os pedidos de readmissão de padres casados e os pedidos de dispensa do celibato.

Sem grandes surpresas, Bento XVI voltou a frisar a importância fundamental do celibato, mais concretamente:

«Foi reafirmado o valor da escolha do celibato sacerdotal, segundo a tradição católica».

16 de Novembro, 2006 Carlos Esperança

Padres casados

Parece que o Sapatinhos Vermelhos está em vias de recrutar 150 mil padres católicos que desertaram para o matrimónio.

Basta um compromisso oral. Passarem a ser castos.

O orgasmo será sempre, para este Papa, um genocídio.

16 de Novembro, 2006 Carlos Esperança

O Vaticano e a prostituição

Nesta última terça-feira o cardeal Renato Martino considerou que o tráfico humano, que força mulheres a prostituírem-se, é pior agora que o comércio de escravos africanos no passado» – DN, 15-11-2006.

Tem razão o cardeal e, apesar do se ter dedicado ao comércio de escravos, o Vaticano há muito que não está ligado à prostituição.

Mas esteve. Até a legalizou no Vaticano.

16 de Novembro, 2006 Palmira Silva

Os parasitas do fundamentalismo

Os Manuscritos do Mar Morto continuam a despertar uma intensa curiosidade e a merecer destaque na imprensa mundial. Depois de, como tive ocasião de indicar no Diário Ateísta, dois arqueólogos terem asseverado que Qumran não tem nada a ver com essénios, conventos ou mesmo com os pergaminhos, o último número da revista Revue de Qumran tem um artigo deveras interessante que não só contraria esta hipótese como permite olhar para a comunidade dos ultra-fundamentalistas essénios com uma nova luz.

Uma equipa internacional multidisciplinar, por indicação de James Tabor da Universidade da Carolina do Norte em Charlotte que relembrou as histórias deveras bizarras descritas por Flávio Josefo sobre as práticas de latrina seguidas pelo secto, procurou a latrina comunitária descrita em dois dos Manuscritos, o Manuscrito da Guerra e o Manuscrito do Templo.

De facto, estes fundamentalistas judaicos seguiam à letra a Torah, mais concretamente a parte em que Moisés diz ao povo para construir as latrinas fora do campo e para tapar religiosamente os dejectos depois da sua utilização. Josefo menciona que os essénios, seguindo estritamente o seu livro sagrado, não saíam do campo ao sábado – e não podiam assim utilizar a latrina nem satisfazer qualquer necessidade fisiológica!

A análise bacteriológica do local permitiu localizar inequivocamente a latrina dos essénios – no local indicado nos pergaminhos o que indica ter sido Qumran de facto uma comunidade essénia – e esclareceu algo que intrigava os arqueólogos que investigam o local.

De facto, todos os dados disponíveis indicam que os essénios eram muito selectivos em relação a quem aceitavam na comunidade: jovens saudáveis – e existia um exame de saúde – de pelo menos 20 anos ( e preferencialmente bem parecidos já que para os essénios o aspecto físico traduzia a «pureza» da alma).

No entanto, de acordo com Zias da Universidade de Jerusalém «O cemitério de Qumran é o grupo menos saudável que já estudei em 30 anos». Menos de 6% dos homens (e esta era uma comunidade masculina, claro) chegavam aos 40 anos, enquanto os cemitérios de Jericó, a uns meros 12 km, indicam que na mesma altura quase metade dos homens viviam mais de 40 anos!

Mas a religiosidade dos essénios, que seguiam estritamente os ditames da Torah, não só em relação a latrinas como em relação às purificações rituais que se seguiam à sua utilização, fazia com que proliferassem – em vez de morrerem ao sol – todos os parasitas intestinais cujos ovos foram abundantemente encontrados nos locais escavados. Parasitas que os rituais de «purificação» que envolviam imersão total (olhos, boca, etc.) em piscinas de água da chuva – isto é, água parada renovada uma vez por ano, um excelente fermentador para ténias, lombrigas e restantes parasitas – garantiam infectar toda a comunidade!

Como nota Zias, os essénios «mostram o que acontece quando se leva as coisas bíblicas demasiado fundamentalista ou literalmente, como fazem em muitas partes do mundo, e quais são as consequências últimas [desse fundamentalismo]».

Mas como acrescenta Tabor, mesmo a saúde miserável deveria ser interpretada «biblicamente» pelos alucinados essénios:

«Os homens de Qumran eram muito pouco saudáveis, mas eu creio que isso provavelmente alimentou o entusiasmo religioso dos essénios. Eles deveriam ver as suas enfermidades como um castigo de Deus pela sua falta de pureza e então devem ter tentado ainda mais arduamente a purificação [garantindo que todos estavam efectivamente infectados com pelo menos os quatro parasitas encontrados nas escavações]».

Estranhamente o «Deus» que tanto punia os essénios era francamente mais simpático com os vizinhos de Jericó, uns hereges «liberais» sem sequer vestígios de obsessões fundamentalistas ou de pureza! E menos atormentados por vermes sortidos…

15 de Novembro, 2006 Carlos Esperança

Os bispos uivam

Houve quem esperasse da ICAR uma postura urbana em relação ao referendo sobre a IVG, para o que contribuiu a serenidade, fingida ou sincera, do patriarca Policarpo a referir-se ao aborto como problema essencialmente político, mais do que religioso.

Era preciso não conhecer o ódio que o cio recalcado desenvolve, ignorar a intolerância de que o clero é capaz e a subserviência à única teocracia europeia – o Vaticano -, para ver nos bispos um exemplo de tolerância e espírito democrático.

A Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), espécie de confederação patronal católica, reuniu segunda-feira, em Fátima, local especialmente dedicado ao embuste e ilusionismo místico. Num acto de subversão, traindo o País a soldo de um Estado estrangeiro e totalitário, contestaram a legitimidade da Assembleia da República para legislar no que respeita à «liberalização ou descriminalização do aborto».

O Sr. Jorge Ortiga, bispo de Braga e presidente da CEP, nega à Assembleia da República o direito legislativo sobre o que ele considera «crime». Presume-se que fala em nome de Deus como se este tivesse direito de voto e de veto nos países democráticos.

Como pode um Papa, ditador vitalício, intrometer-se na vida interna das democracias e soltar o exército de bispos, padres e diáconos contra o sufrágio livremente expresso?

O Estado português não controla a qualidade das hóstias, não analisa a água benta, nem legisla sobre o valor das orações e indulgências para a salvação das almas. No entanto, os celibatários reunidos na CEP negam à mulher quaisquer direitos e querem substituir o direito penal pelo direito canónico.

Compreende-se o gozo que dá às reverendíssimas criaturas ver as mulheres condenadas à prisão, a excitação erótica de as saber escutadas nos seus telefonemas, o delírio psicopata de obrigar o Estado a guardar-lhes as barrigas, enfim, a pequena desforra dos autos-de-fé de que os privaram.

O resultado do escrutínio, seja ele qual for, é assunto de portugueses, não é matéria que esteja ao arbítrio das sotainas, uma decisão que possamos tolerar aos agentes infiltrados do Sapatinhos Vermelhos.

15 de Novembro, 2006 Palmira Silva

Vida para além da morte, mediunidades e outros disparates

A verdadeira face da suposta detective paranormal Sylvia Browne

James Randi denuncia Peter Popoff, um pastor evangélico que ganhava milhões de dólares com as aldrabices que supostamente «Deus» lhe confidenciava. Quase 10 anos depois de ter sido exposto como charlatão o devoto cristão está de volta em força…

Se há algo que me irrita são charlatães que exploram a ingenuidade e ignorância alheias como modo de vida. Explorem esses charlatães fraudes centenárias ou inventem novas fraudes. Isto é, sejam eles free lancers ou membros de uma igreja que encoraja a idolatria supersticiosa de «relíquias milagrosas» obviamente falsas, com o pretexto de que não há problemas morais «na continuação de um erro que foi transmitido em boa fé por muitos séculos», ou seja, de que não há qualquer imoralidade em encorajar a crença em fraudes centenárias!

Mas fico especialmente irritada quando esses ditos charlatães afirmam a alto e bom som que há «provas científicas» dos disparates que vendem aos mais incautos. Hoje refiro-me a Deepak Chopra, um dos gurus americanos da «espiritualidade» new age, que escreveu um conjunto de disparates agrupados num livro que dá pelo nome de «Life After Death: The Burden of Proof» em que Chopra afirma que «há conhecimento validado pela ciência» que permite provar como falsa a posição dos cientistas (uma óbvia contradição que passa ao lado do «iluminado» new ager) que sustentam serem matéria de fé, logo impossíveis de provar, todos os disparates sobre a vida para além da morte que abundam na maioria das mitologias.

A estrela das cretinices debitadas pelos especialistas do «sobrenatural» continua a mecânica quântica que se confirma exercer um fascínio especial em todos os charlatães! De facto, Chopra, numa prosa que considero uma elegia ao nonsense – como nonsense comparável ao melhor de Boris Vian – debita uma quantidade assombrosa de afirmações sobre assuntos dos quais obviamente não faz a mínima ideia o que sejam, por exemplo sobre aquilo a que chama «as unidades da Criação, como sejam quarks e a gravidade»! Mas os embevecidos seguidores do guru, tão ignorantes de quântica como o seu ídolo, afirmam na Amazon ser este livro o elo que faltava para reconciliar a física quântica com a crença na vida além da morte!

Estas e outras imbecilidades debitadas pelo especialista no paranormal, que assevera ter a «ciência» comprovado os dislates que reuniu no livro, são demolidas num post imperdível no meu blog de ciência favorito, o Pharyngula. Simplesmente a não perder!

15 de Novembro, 2006 jvasco

Ratros estará doido?

Ratros é um senhor feudal.
O seu feudo tem cerca de 300 habitantes, e ele quer que eles sejam livres.

Ratros também quer que cada um dos seus servos o adore. Em particular Ratros quer, por exemplo, que cada um deles tenha em casa um retrato seu, e que o abrace todas as noites.
Ratros pensou em dizer «cada um de vós é totalmente livre de ter ou não um retrato da minha pessoa na vossa casa. Mas terão de ser consequentes com os vossos actos: se não tiverem tal retrato, serão degolados», mas apercebeu-se que isso era absurdo. Essa situação, de lhes permitir ter ou não ter retratos nas respectivas casas, mas castigá-los severamente caso não tivessem seria indistinguível de uma proibição. Seria uma proibição. Seria uma limitação à liberdade dos habitantes do seu feudo.

Ratros reflectiu: caso ele se limitasse a castigar quem não tivesse tal retrato, todos teriam o retrato, mas por mero medo do castigo – não seriam livres. Mas se Ratros não fizesse nada, muitos poderiam nunca ter o seu retrato em suas casas e viver impunes. Então teve uma ideia.

Em vez de anunciar perante todo o feudo que degolava quem não tivesse um retrato seu na sua casa, decidiu espalhar rumores. Primeiro apareceu a Josefias, que era pastor, e pediu-lhe que espalhasse tal regra. Mais tarde apareceu a Martins, o juíz, repetindo o que tinha dito, e dando instruções adicionais.

Os rumores sobre o que dissera foram-se espalhando, mas, à medida que a palavra se espalhava eles iam sendo distorcidos. Havia quem dissesse que era importante que o quadro fosse pintado a óleo, e quem jurasse a pés juntos que seria chicoteado quem não o tivesse pintado a cera. Pior de tudo, havia vários rumores a serem espalhados que diziam que era quem não tivesse o quadro de Dromodor (um outro senhor feudal de existência incerta) que seria degolado. E cada vez foram surgindo novos e diferentes rumores. Algumas pessoas sentiam-se perante tal confusão de rumores que preferiam não confiar em nenhum, e diziam «se Ratros quisesse que nós tivéssemos o seu quadro em nossas casas, ele dizia-o claramente, espalhando pergaminhos por si assinados por todos os recantos do seu domínio, não lhe custiaria nada fazê-lo, e espalhar rumores desta forma parece uma brincadeira absurda.»

Ratros decidiu entao enviar o seu próprio filho para falar com Joel e Abel, dois carpinteiros, para lhes transmitir com clareza todas as instruções. Joel e Abel ficaram tão convictos que foram extremamente persuasivos. Desta feita convenceram quase um terço das pessoas a respeito da importância do quadro de Ratros em cada lar, se bem que, com o passar do tempo, as discussões entre os que acreditavam na importância do óleo e da cera se mantivessem constantes, e por vezes bem agressivas. Quanto aos restantes, quase um terço mantinha nas suas casas um retrato de Dromodor. Havia quem dissesse que era parecido com Ratros, e quem considerasse que era totalmente diferente.

Esta história faz algum sentido?

Não.

Porque não?
Porque, como é óbvio, Ratros não tornou as pessoas mais livres por esconder delas o castigo que pretende aplicar. Porque não faz sentido querer esconder tal castigo, supondo que tal segredo é o garante da liberdade, e depois tentar passá-lo através de rumores, vivendo com toda a confusão que isso implica.
Porque assim Ratros nem sequer vai beneficiar necessariamente aqueles que potencialmente pudessem gostar mais dele, mas sim aqueles que tiveram a sorte de ouvir os rumores certos, ou a sorte de duvidarem dos errados e não dos certos – a sorte de não ter espírito crítico face a esses.
Esta atitude de Ratros seria totalmente absurda do princípio ao fim. Só um louco agiria desta forma.

Querem-nos convencer que Deus, alegadamente infinitamente justo e cheio de amor, age desta forma. Que o Deus omnipotente não envia um anjo seu para cada um de nós; ou pelo menos para a ONU em directo para as câmaras de todo o mundo; que não escreve a história de Jesus na Lua para todos vermos que é verdade; que se esconde de tantos de nós; por não querer que façamos a sua vontade apenas por medo do Inferno, a que alegadamente nos destina caso não o adoremos.
Isto é totalmente absurdo.

14 de Novembro, 2006 Palmira Silva

Mudando o Chile

A eleição da ateísta Michelle Bachelet está a varrer as teias de aranha católicas do Chile, um dos países em que a manipulação social da Igreja de Roma se faz mais sentir mas em que lentamente a sociedade chilena se liberta dos condicionamentos sociais resultantes de uma ditadura sob os auspícios da Igreja Católica – Augusto Pinochet, o ditador chileno, crente devoto foi considerado um católico exemplar por João Paulo II.

O mesmo Pinochet que considera ir «Deus» perdoar-lhe todos os atropelos dos direitos humanos, incluindo o direito à vida, que cometeu durante os 17 anos da sua abençoada ditadura, já que «Tudo o que fiz, tudo o que levei a cabo, todos os problemas que tive, dedico-os a Deus».

Mas a sociedade totalitária, completamente dominada pelos dogmas e hipocrisias católicas, está em vias de extinção no Chile. Assim, o desaparecimento da censura que garantia o pensamento único católico permitiu que o Chile já não seja considerado uma nação de 16 milhões de fundamentalistas católicos.

Uma sondagem levada a cabo pela MORI Chile indica que entre 1990 e 2006, num país em que o divórcio é apenas permitido há dois anos e a homossexualidade apenas deixou de ser crime há 8 anos, 60 e 49% da população aceitam, respectivamente, o divórcio e a homossexualidade.

Para além disso, e não obstante as ululações em contrário da Igreja de Roma, cerca de 90% da população considera que as mulheres devem ser livres de controlar a sua fertilidade, escolhendo o método contraceptivo que entenderem.

A misoginia da Igreja Católica que se traduz não só na oposição a qualquer forma de contracepção mas igualmente na consideração que a vida de uma mulher tem menos valor que qualquer óvulo fertilizado – e a lei actual do Chile segue estritamente os ditames do Vaticano em relação ao aborto: é proibido mesmo para salvar a vida da mulher – está na base das últimas guerras abertas da delegação local dos ditadores de Roma com o governo de Bachelet.

Assim, a Igreja Católica chilena ulula contra a última campanha de Michelle Bachelet, que visa prevenir a infecção com o HIV promovendo o uso do preservativo – no Chile mais de metade da população nunca usou um preservativo e apenas 35,4% dos jovens o utilizam na primeira experiência sexual.

De igual forma, a Igreja Católica carpiu a decisão recente de um Tribunal chileno que confirmou uma directiva de Setembro que permitia a venda livre da pílula do dia seguinte.

Por outro lado, não obstante a homossexualidade já não ser crime, não há qualquer disposição legal que reconheça ou proteja os direitos de homossexuais, situação que Bachelet pretende mudar.

De facto, fazem parte do programa que a elegeu, «pontos totalmente inaceitáveis para a consciência cristã» de acordo com «os reiterados ensinamentos dos Papas». Nomeadamente, Bachelet pretende que o Chile assine um anti-católico protocolo de 1979 da ONU que defende os direitos das mulheres – a ICAR não reconhece direitos, a que chama «exigências ‘para ela mesma’», à mulher.

Para além disso Bachelet pretende oferecer «estabilidade legal» às uniões de facto «independentemente da sua composição», um duplo pecado mortal já que implicitamente admite vir a reconhecer uniões homossexuais.

Marta Lagos, directora da MORI Chile afirmou recentemente em relação a esta abertura da sociedade chilena à modernidade, lenta para os padrões ocidentais mas impensável há uns escassos 15 anos:

«A mudança de valores é enorme se olharmos para ela da perspectiva que … sobre estes temas [aborto, divórcio, homossexualidade, contracepção, etc.] nos tornámos numa sociedade que tolera alguns deles e começa a falar sobre os restantes».

tag ,

13 de Novembro, 2006 Ricardo Alves

Anselmo sem fogo

Tenho alguma ambivalência face aos «religiosos moderados». Simpatizo com o facto de não seguirem à risca os preceitos religiosos, o que é sinal de carácter e exercício de liberdade. Por outro lado, fico perplexo com a insistência em quererem salvar sistemas de ideias e tradições que, mesmo reinterpretados, só podem merecer o repúdio das pessoas de bem.

Consideremos o caso de Anselmo Borges, um sacerdote católico moderado que escreve no Diário de Notícias ao domingo, e que assume o ónus das guerras de religião, da repressão religiosamente ordenada da sexualidade, e dos crimes cometidos pelas igrejas ou justificados pelas religiões. Conclusão:
  • «Estes factos obrigam a ter constantemente presentes, com temor e tremor, os perigos patológicos das religiões. Talvez nunca se tenha meditado suficientemente na grandeza heróica daqueles que preferiram o ateísmo a ficar presos de um deus que humilha, escraviza e anula o Homem

É claro que é uma apreciação simpática para nós, ateus (embora o «heroísmo» me pareça um exagero). Mas, depois de ter batido no peito e confessado pecados ao ponto de reconhecer alguma razão aos ateus, Anselmo Borges deita ao mar a rede de pesca:

  • «No entanto, o Homem é por natureza religioso, no sentido de estar constitutivamente aberto à questão de Deus enquanto questão. Essa abertura, independentemente da resposta, positiva ou negativa, que se lhe dê, é que é o fundamento último da dignidade humana. Precisamente porque é abertura ao infinito.»

Este argumento é daqueles que me faz sorrir. O homem é «naturalmente religioso» porque inventou a religião? Então também seria «naturalmente científico» porque inventou a ciência, ou «naturalmente ideológico» porque inventou as ideologias, ou «naturalmente jogador de xadrez» porque inventou esse jogo. Evidentemente, Anselmo Borges responderá que a ciência e o xadrez não fundamentam a «dignidade humana». É uma opinião, mas mais atrás Anselmo já reconhecera implicitamente que a religião, historicamente, sempre foi a maior inimiga da «dignidade humana», e que foi até o principal instrumento da humilhação e escravização da humanidade… Em que ficamos?

Mas continuemos com Anselmo Borges:

  • «A religião enquanto fé no Deus infinito e pessoal foi mediadora da tomada de consciência da infinita dignidade de ser Homem. Esta é a intuição e a parte de verdade da tese de Feuerbach ao querer reduzir a teologia a antropologia

Novamente, mais um jogo de palavras vazio de sentido. Acrescenta-se o adjectivo «infinito» a duas abstracções («Deus» e «dignidade») e postula-se uma associação espúria. Infelizmente, a maior parte do pensamento religioso actual está reduzido a jogos de palavras deste género, o que poderá ser um sinal de que já nem os sacerdotes têm fé. Mas, assim, também não serão eles a ajudar-nos a compreender como a humanidade criou a religião. (Aparentemente, foi a seguir à linguagem e à música…)