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3 de Novembro, 2006 jvasco

O Homem segundo a Religião

Esta treta ocorreu-me recentemente, daquelas coisas que fazem click na cabeça. Em geral, nas religiões Ocidentais a nossa espécie é vista como algo especial, separado do resto do reino animal por alguma propriedade única. Somos o animal racional.

Mas o que é ser racional? Não deve ser pensar, aprender, ou ter inteligência, porque isso muitos animais também fazem. Principalmente nos primatas, há claras evidências que animais não humanos concebem planos complexos, antecipam acontecimentos, e assim por diante.

Racional, para ser algo único à nossa espécie neste planeta deve querer dizer ter razões. Nós somos capazes de dar e exigir razões para fundamentar uma afirmação. Gritar «Vem aí uma àguia!» até os macacos Colobus conseguem. Mas perguntar «Como é que sabes?», uma das perguntas favoritas dos meus filhos, é aparentemente uma capacidade única dos humanos.

O curioso (e irónico) é que é precisamente esta capacidade que as religiões normalmente querem suprimir. Chamam-lhe fé. Como se fosse um acto, como se fosse uma coisa e não apenas a ausência do daquilo que nos distingue como humanos: perguntar por que razão havemos de aceitar algo como verdade.

——————————–[Ludwig Krippahl]

3 de Novembro, 2006 Carlos Esperança

Interrupção voluntária da gravidez

Não sei que razões ponderosas terão levado uma operária de Aveiro a interromper a gravidez e a sujeitar-se a uma curetagem, quiçá com medo de perder o emprego ou, com ele já perdido, receando não poder criar mais um filho.

Foi uma boa acção? – Certamente que não. Também o adultério é um acto perverso e já deixou de ser crime. Também o divórcio é um passo cruel, tantas vezes indesculpável, e não conduz ao cárcere. Também um processo judicial que prescreve, por incúria, é uma ofensa à Justiça e um atropelo aos cidadãos e ninguém é punido.

O que terá levado a PJ e o Ministério Público a perseguirem aquela operária de Aveiro enquanto na costa se descarregava droga? Quem deliberou devassar-lhe a intimidade e obrigá-la ao exame ginecológico enquanto se escolhiam árbitros para jogos de futebol do fim-de-semana seguinte? Quem estabeleceu a prioridade do crime a perseguir?

Aquela operária, com o corpo e a alma doridos, ia de motorizada com o companheiro. Gozasse o conforto de um Mercedes e condutor privativo e ninguém a teria detido. Na Maia, em Setúbal e em Aveiro eram mulheres pobres as que foram julgadas.

A pobreza é mera coincidência. E uma parteira foi presa por tráfico de estupefacientes porque, em vez de minorar as dores, era a sangue frio que devia ter punido as pecadoras.

Perante o crime de mulheres que interrompem a gravidez, porque o feto que trazem no útero é um futuro filho indesejado, não sou capaz de exigir a sua prisão.

Mas, se houver quem as queira prender, se a maioria entender que as mulheres servem apenas para parir e sofrer, tratar da casa e atender o marido, cuidar dos filhos e recusar o prazer, então negam-lhes o direito de ser irmãs, mães, companheiras, filhas e camaradas.

Mas não é num mundo misógino, beato e intolerante que me apraz viver.

2 de Novembro, 2006 Palmira Silva

O referendo ao aborto: dignidade ontológica da Mulher

«Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana» Constituição da República Portuguesa, Artigo 1°.

Com variantes de forma, o reconhecimento da dignidade como valor central dos direitos fundamentais individuais está presente em conteúdo nas Constituições de todos os estados democráticos. De facto, o ordenamento jurídico dos estados modernos – onde não se incluem teocracias, assumidas ou não – erege-se com base na dignidade do Homem, indelevelmente associada aos ideais de liberdade e igualdade em que assenta a nossa sociedade.

O próprio termo «pessoa» é empregue para designar os seres que possuem uma dignidade intrínseca: ser pessoa é ser digno, sendo esta dignidade uma dignidade ontológica, não uma dignidade ética ou moral, isto é, todas as pessoas são igualmente dignas independentemente do seu comportamento ou da sua valoração social, materializando-se essa dignidade no exercício dos direitos invioláveis que lhe são inerentes.

O reconhecimento da dignidade intrínseca do Homem – e «Todos os Homens são iguais … mesmo as Mulheres» (recomendo vivamente este livro de Isabelle Alonso) – como valor fundamental pressupõe assim um sociedade plural, necessariamente laica em que as convicções religiosas/morais individuais, mesmo se maioritárias, devem permanecer no domínio privado já que se transpostas na praxis da polis se traduzem em preconceitos discriminatórios, condicionamentos ou restrições dos direitos fundamentais das minorias intoleráveis num estado moderno e de Direito!

A legislação sobre o aborto actual, um instrumento de punição de «pecados» ou de imoralidades, viola claramente a dignidade intrínseca da Mulher, subordinando-a a uma dignidade moral arbitrária da própria mulher – que passa a ser humilhada em julgamentos de valor – e à dignidade moral que a lei, arbitrariamente também, concede ao embrião.

De facto, ao «proteger» explicitamente o que denomina vida intra-uterina – distinguindo-a da vida extra-uterina, embriões produzidos in vitro – a nossa legislação reconhece que um embrião não tem dignidade intrínseca, não é uma pessoa e não tem direitos! Assim, não é respeitada a dignidade da Mulher, como consta na Constituição, e esta está actualmente sujeita à arbitrariedade do Estado! Estado que supostamente se baseia no respeito dessa dignidade e na defesa do indivíduo e dos seus direitos inalienáveis, que incluem o direito à saúde e à autodeterminação!

Os posts anteriores sobre ética e direito mostram claramente que a questão da despenalização do aborto não é uma questão moral, mas sim legal. A penalização do aborto, tal como está enquadrada, é completamente incompatível com os axiomas que se defendem actualmente na comunidade do Direito para além de ser, em minha opinião, inconstitucional!

Para além dos fundamentalistas católicos – que não reconhecem direitos, a que chamam «exigências ‘para ela mesma’», à mulher e reclamam para o genoma humano, em todas as formas, células estaminais, pré-embrião e embrião, o estatuto de pessoa, embora não assumam publicamente que querem tratar as mulheres que abortam como assassinas- os (muito poucos) restantes opositores à despenalização do aborto recorrem a argumentos morais que implicitamente não reconhecem dignidade intrínseca à Mulher.

De facto, embora reconhecendo que o embrião não é uma pessoa e que extra uterinamente não tem qualquer valor ou direito, se implantado num útero – uma versão nova da máxima escolástica tota mulier in utero (a mulher resume-se ao seu útero) – os seus direitos morais sobrepõem-se aos direitos intrínsecos da mulher mercê um raciocínio logicamente inválido, um apelo falacioso à potencialidade do embrião que, estranhamente, só se aplica in utero.

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(continua)
1 de Novembro, 2006 jvasco

5 perguntas para os cristãos

1- O cão do teu vizinho matou o teu filho. Destas hipóteses, o que escolherias fazer, caso pudesses:

a) Apesar de toda a tristeza, nada fazer
b) Matar o cão
c) Torturar o cão durante um dia e então matá-lo
d) Torturar o cão por toda a eternidade

2- Enquanto Pai que ama os seus filhos, deste-lhes liberdade quanto às suas crenças religiosas. Um torna-se cristão, outro islâmico, outro wicca, outro budista e outro ateu. Só um deles acredita no mesmo que tu. Como tratarias os outros 4 filhos?

a) Matá-los-ias?
b) Deserdá-los-ias?
c) Aceitá-los-ias respeitando a sua crença
d) Tortulá-los-ias por toda a eternidade?

3- Se tivesses uma mensagem de extrema importância, e quisesses que alcançasse o maior público possível, como farias?

a) Enviá-la-ias quando existisse comunicação de massas e imprensa
b) Farias com que o teu mensageiro não escrevesse nada, confiando nos outros para a passarem de forma precisa, sem a distorcerem
c) Certificar-te-ias que a tua mensagem seria escrita de forma dúbia, confusa, e aparentemente contraditória, para maximizares a probabilidade de gerar más interpretações
d) Escreverias uma mensagem clara e não contraditória e enviá-la-ias numa altura em que existisse comunicação de massas e imprensa

4- Como lidarias com pessoas a quem não chegou a tua mensagem, não a tivessem entendido, ou não tivessem acreditado, visto ela ser tão obscura, confusa e aparentemente contraditória?

a) Matá-las-ias
b) Tortulá-las-ias
c) Deixá-las-ias em angústia e sofrimento por toda a eternidade
d) Compreende-las-ias, e perdoá-las-ias

5- Se fosses um ser omnipotente mas invisível, e quisesses ter a certeza que que as pessoas acreditariam ti, o que farias para que isso acontecesse?

a) Escreverias a tua mensagem, em hebraico, na face da lua, numa altura de comunicação de massas e imprensa
b) Farias coisas que não pudessem ter explicação natural, como acabar com a fome no mundo repentinamente
c) Protegerias e recompensarias aqueles que acreditassem em ti, ignorando as preces daqueles que não acreditassem
d) Permanecerias sempre invisível e indetectável, e não mostrarias qualquer favoritismo no atendimento às preces, as quais seriam indistinguíveis da sua ausência

Sim, Deus tem razões que a razão desconhece, mas isso parece uma desculpa tão conveniente para que se acredite em qualquer disparate…
Eu prefiro confiar na razão do que no clero.

Nota- artigo descaradamente baseado neste vídeo do youtube:

1 de Novembro, 2006 Palmira Silva

Referendo ao aborto: ontologia do embrião I

A legislação actual sobre o aborto, que assenta na protecção do bem jurídico «vida intra-uterina» – em que esta vida intra-uterina se refere apenas ao embrião ou feto e contra a qual é apenas possível atentar a título doloso e não, como em relação à vida humana, a título negligente – foi estabelecida como um compromisso, inaceitável num estado laico, entre as ululações da Igreja e seus representantes – que carpem ser um genoma equivalente a uma pessoa – e o que é implicitamente aceite por todos, menos os fanáticos cristãos: o embrião não é uma pessoa!

Só faz sentido criminalizar o aborto após atribuição de um estatuto jurídico ao embrião/feto equivalente ao de uma pessoa, não como protecção de uma vaga e cientificamente imprecisa «vida intra-uterina». Estatuto que deve resultar da discussão da sua natureza, ou seja, de uma discussão ética/ontológica e não deve ser contaminado por considerações religiosas/morais.

Se após essa discussão se concluir que o embrião é de facto uma pessoa então, em minha opinião, para ser coerente com esse estatuto, a legislação nacional deve ser alterada para tratar igualmente a vida e a tal vida intra-ulterina. Ou seja, não só o quadro penal deve ser alterado – sendo as penas para o aborto iguais às correspondentes para o homícido – como deve ser contemplado o atentado negligente contra a vida do que se chegou à conclusão ser uma pessoa.

E apenas deve ser permitido o abortamento de embriões/fetos em caso de risco de vida para a mulher ou embrião/feto! E, claro, deve ser proibido o «assassínio» de embriões produzidos in vitro, isto é, o estatuto do embrião tem de ser um estatuto intrínseco, ontológico, que reflicta o que consideramos ser a natureza do embrião e como tal deve ser independente da forma como foi produzido.

Caso contrário os argumentos a favor da penalização não são sérios, são argumentos assentes não na natureza do embrião mas em preconceitos referentes à forma como ele foi obtido, ou seja, ao sexo, ou em preconceitos de género!

Se, pelo contrário, se concluir que um embrião não é uma pessoa então não faz sentido criminalizar o aborto! Porque criminalizar o abortamento de algo que se reconhece não ser uma pessoa significa apenas que a nossa não é uma sociedade assente no respeito dos direitos do Homem mas em que se respeitam apenas os direitos do homem!

Isto é, uma sociedade em que a mulher não é considerada uma pessoa de plenos direitos, uma sociedade que continua refém de um paradigma católico mariano, em que se ulula contra «um certo discurso feminista» que «reivindica exigências ‘para ela mesma’». Em que se argumenta falaciosamente sobre «motivações egoístas» das mulheres, ou seja, se utilizam julgamentos de valor sobre as motivações de uma mulher que resolve abortar algo que se reconhece não ser uma pessoa para justificar a punição dos sub-humanos que, horror dos horrores, pensem em si como pessoas e não como «propriedade pública»!

Como refere Conceição Branco, num artigo que recomendo vivamente, «Não será certamente por acaso que, numa posição de condenação sobre o aborto, os argumentos [da Igreja Católica] afunilem no adultério, apontado como um pecado feminino, enquanto os homens ficam à margem, escapam ao estigma».

Para ser séria, racional, objectiva e em concordância com os valores que se protesta serem os nossos, a discussão sobre a despenalização do aborto deve ser despida de todos os preconceitos e falácias sortidos com que normalmente é colorida, assentando no que de facto está em causa: um embrião deve ou não ser considerado uma pessoa de plenos direitos? Qual o estatuto ontológico em que devemos assentar o estatuto jurídico a conferir ao embrião?

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(continua)
31 de Outubro, 2006 fburnay

A Razão e a Fé IV – A Igreja e a Razão (fim)

Depois da degradação do sistema feudal e do fim do poder militar da Igreja perdeu-se a última componente política que a Igreja ainda possuía com o advento dos valores laicistas. Os governos já não precisam do aval de Roma para exercer o seu poder. A religião não é um dos eixos da sociedade e o clero já não é uma classe. A separação de poderes garante não só que as religiões não interfiram no poder do Estado como salvaguarda as religiões da interferência deste. Ganhou-se liberdade em duas frentes, a religiosa e individual e a de Estado e institucional, ainda que a liberdade que a Igreja pretendesse em tempos fosse outra. Mais uma vez, uma noção de liberdade diferente.

O avanço da Ciência foi removendo Deus dos modelos explicativos do mundo natural, transformando-o num deus das lacunas, que apenas consegue sobreviver em nichos onde o conhecimento humano ainda não chegou, nichos esses que tanto alento trazem aos que vêm nessa ignorância uma esperança de Deus. De facto, uma das últimas, mais frágeis e importantes lacunas das quais Deus foi removido foi a da origem da vida e do ser humano, com o surgimento das ideias de Darwin – tema esse ao qual várias fés pretendem devolver o estatuto de lacuna. A Ciência dá hoje e cada vez mais uma explicação sólida da realidade, aperfeiçoável, sem recorrer a subterfúgios teístas para salvar a nossa divindade e a dos nossos deuses.

Com a propagação de uma cultura de sociedade democrática e laica e uma outra cultura científica e tecnológica, a Igreja ficou relegada para o plano social, sem que lhe seja dada a mesma importância de outrora nesses campos da sociedade. A principal consequência que o abraçar do racionalismo, nas suas várias formas, teve para a Igreja foi o seu afastamento dos seus campos de actividade tradicionais. Como mote de reconciliação, parece-me que tem sido o esforço de Bento XVI reabilitar a Fé com a Razão. Como? Ressuscitando as velhas dúvidas lacunares, recuperando a antiga noção de Razão (vide “Fides et Ratio”) e apelando ao bom senso como cimento destas ideias. Isto traduz-se em advertências à comunidade científica, condenação dos valores laicistas e uma suposta posição previlegiada na luta contra o terrorismo.

31 de Outubro, 2006 fburnay

A Razão e a Fé III – A Igreja e a Razão (cont.)

O modelo de Copérnico foi considerado absurdo e erróneo (sic) pela Igreja e o seu livro colocado no Index, assim que lhe foi dada importância. Galileu foi ameaçado de tortura e obrigado a abjurar, «de coração sincero e genuína fé» por ter defendido um erro «contrário à Santa Igreja Católica» e por negar os princípios aristotélicos. A igualdade entre os homens foi igualmente considerada um disparate pelo papa Pio VI na sua bula Quod Aliquantum, uma resposta à Declaração Universal dos Direitos do Homem. A liberdade de consciência era, para o papa Gregório XVI, um delírio absurdo e erróneo.

As classificações de absurdidade e erro são uma constante. Se bem que mais tarde retractadas em muitos casos ou rectificadas noutros, porquê a obstinação aos frutos do raciocínio? Porquê esta aversão ao exercício livre da Razão? Durante séculos a ICAR condenou o Individualismo a vários níveis e em particular enquanto possibilidade de exercer o nosso próprio julgamento. E estava errada nas posições que tomou. O modelo de Copérnico afinal, tinha razão de ser. Aristóteles estava enganado na sua descrição do mundo natural. A liberdade de consciência foi considerada, por Paulo VI, como estando «para além da razão de Estado e da razão da Igreja». Porque é que a Igreja não deu ouvidos a quem o havia dito tantos anos antes? A primeira ideia que me vem à cabeça é a dogmática – a sempre intrigante memética do divino.

Se a Igreja se enganou tantas vezes nos julgamentos que fez em relação a temas fundamentais da Ciência ou da vida em sociedade, sendo que nesses julgamentos se baseou na sua estrutura teológica, que dizer da qualidade desses fundamentos? No fundo, porque é que Aristóteles se enganou? Porque recorreu unicamente à sua capacidade de raciocínio para explicar a natureza da realidade. É variada a forma como filósofos se enganaram sistematicamente em relação a descrições do mundo natural. Isto aconteceu porque a especulação filosófica é insuficiente para descrever a realidade sem que se saiba se os princípios de onde partimos têm ou não parecenças com os objectos reais do mundo. Essa herança aristotélica prevalece ainda na ICAR. Essa forma de “racionalismo” não tem, no entanto, grande paralelismo com aquilo a que hoje em dia designamos por Racionalismo – o exercício da razão longe de preconceitos não só como forma de auto determinação (a componente individualista) como o uso desta no aperfeiçoamento do conhecimento empírico que temos do mundo (na Ciência). A versão religiosa é outra e diz respeito à capacidade de articular argumentos teístas num discurso metafísico. Diz respeito, no fundo, um pouco à noção daquilo que a Razão deveria ser para os escolásticos e um pouco aquilo que deveria ser para os tomistas. No fundo, refere-se a uma noção de fé consciente e pensada. Trata de usar as capacidades racionais para fortalecer a fé. A Razão cujos valores eu defendo não tem nada a ver com isto.

30 de Outubro, 2006 Carlos Esperança

Nicarágua – Protectorado do Vaticano

O Parlamento da Nicarágua aprovou um projecto de lei que proíbe o aborto terapêutico.

Interrompe-se, assim, um acto que, por indicação médica, se praticava legalmente há mais de um século.

A medida, instigada pela Igreja Católica, está a levantar um coro de protestos, mas fica a ideia de que, quando a correlação de forças lhe é favorável, a Igreja impõe às mulheres a obrigação de parir, ainda que no ventre esteja um ser com deformidades incompatíveis com a vida, um feto com espinha bífida ou mongolóide.

Nem mesmo o perigo de vida da mulher demove os padres, que jamais serão mães.

Depois acusam de jacobinismo os que, conhecendo a felicidade de ser pai ou mãe, não querem que se persigam as mulheres que não têm resistência psicológica para suportar uma gravidez indesejada.

A maldade humana está onde menos se espera. Este retrocesso legislativo é uma afronta às mulheres de todo o mundo.

A clericanalha não dá tréguas.

30 de Outubro, 2006 Palmira Silva

Opus Dei perde no Brasil

Luiz Inácio Lula da Silva foi reeleito à segunda volta presidente do Brasil com 61% dos votos.

Geraldo Alckmin, o tal que é filho do primeiro supranumerário do Brasil e ele próprio pelo menos com fortes ligações à Opus Dei – promove reuniões periódicas com membros da seita e tem um confessor da prelatura – teve menos votos que na primeira volta: apenas 39% dos votos.

A separação da Igreja e do Estado, uma conquista da democracia, fica assim a salvo das depredações inevitáveis que a eleição de um presidente ligado à mais fanática e intolerante seita da Igreja católica implicaria. Os mais sinceros parabéns aos nossos leitores do outro lado do Atlântico!

30 de Outubro, 2006 lrodrigues

A Igreja Católica e a Vida Humana

Nestes tempos de intenso debate nacional a propósito do referendo sobre a despenalização do aborto, é notória a profunda dissensão a que se assiste na sociedade portuguesa entre os defensores do “sim” e os defensores do “não”.

As divergências políticas estão já marcadas: depois do Primeiro-ministro José Sócrates se ter afirmado publicamente a favor do «sim», apareceu Marques Mendes a dizer que votará «não», numa posição que pretende nitidamente não mais do que uma demarcação política e partidária.
Depois, aparece a Igreja Católica mais uma vez a meter o bedelho e a querer influenciar a sociedade e a vida das pessoas, quer sejam católicas quer não o sejam.
Pela voz de José Policarpo, cardeal-patriarca de Lisboa, a Igreja Católica é muito clara a explicar a sua posição:
«…desde o seu início, a Igreja condenou o aborto, porque considera que desde o primeiro momento da concepção, existe um ser humano, com toda a sua dignidade, com direito a existir e a ser protegido».
E vai mais longe quando esclarece que:
«… a condenação do aborto não é uma questão religiosa, mas de «ética fundamental»; trata-se, de facto, de um valor universal, o direito à vida, exigência da moral natural…».
Assim, e defendendo a vida humana como um valor inquestionavelmente absoluto, ao mesmo tempo que considera que desde o primeiro momento da concepção existe já uma vida humana, a Igreja Católica assume uma pretendida coerência de ser contra o aborto.
A vida humana é um valor absoluto, e ponto final!
De tal forma, que a Igreja Católica é inequivocamente contra qualquer forma de aborto.
Mesmo nos casos (previstos na lei actualmente vigente em Portugal) de malformação do feto, de violação ou de perigo de vida para a mulher, a Igreja Católica tem sempre a mesma posição: é contra o aborto.
É assim que (admitamos que muito coerentemente), esse repositório básico da «Doutrina Oficial da Igreja Católica», dos «valores judaico-cristãos» da civilização ocidental, essa fonte de «ética fundamental» que é o «Catecismo da Igreja Católica», pune com a pena de excomunhão «latae sententiae», isto é, pela prática do próprio facto, tanto a mulher que pratica um aborto, como também quem a tenha auxiliado.
Como podia ser de outra maneira: pois não é a vida humana um valor fundamental e absoluto para a Igreja Católica?
Pois. Mas o pior é que não é!
É que enquanto afirma que «a vida humana deve ser respeitada e protegida de maneira absoluta a partir do momento da concepção», e que «desde o primeiro momento de sua existência o ser humano deve ver reconhecidos os seus direitos de pessoa, entre os quais o direito inviolável de todo o ser inocente à vida», esse mesmo tal «Catecismo da Igreja Católica» afirma a propósito da «legítima defesa»:
«Quem defende sua vida não é culpável de homicídio, mesmo se for obrigado a matar o agressor».
Isto explicado melhor quer dizer que a doutrina católica, a tal «ética fundamental» a que se referia o Cardeal Patriarca e tão bem explicada no «Catecismo», nos diz que quando estão em confronto as vidas humanas de um agressor e de um agredido, privilegia-se este último e legitima-se o seu direito a defender-se e a matar o agressor, isto é, a tirar-lhe o tal «valor absoluto» que é sua a vida humana.
Mas quando uma gravidez põe em perigo a vida de uma mulher, não lhe é concedido o direito a abortar.
Desta vez privilegia-se um embrião, a quem se «concedeu» vida logo desde o primeiro momento da concepção, e recusa-se à mulher o direito à sua própria vida, à mesma «legítima defesa» que antes se concedeu a um indivíduo ou a uma sociedade que foram «agredidos».
Uma vez mais, e como ao longo da História tem sido persistente tradição da Igreja Católica, a mulher é tratada como um «objecto» de segunda categoria, e nem sequer a sua vida humana constitui já um «valor absoluto» assim tão fundamental que, quando em confronto, justifique a destruição de um embrião, passe este ou não de um conjunto de meia dúzia de células sem sistema nervoso, estejamos ou não perante uma malformação do feto, seja este ou não resultado de uma violação da mulher.
Mas esta ignóbil hipocrisia da Igreja Católica não fica por aqui:
Enquanto fala no valor absoluto da vida humana a propósito de um embrião, a mesma Igreja Católica Apostólica Romana defende no seu Catecismo… a pena de morte!
Como diz o «Catecismo da Igreja Católica» (§ 2267):
«A legítima autoridade pública tem o direito e o dever de infligir penas proporcionais à gravidade do delito».
«O ensino tradicional da Igreja não exclui, depois de comprovadas cabalmente a identidade e a responsabilidade de culpado, o recurso à pena de morte, se essa for a única via praticável para defender eficazmente a vida humana contra o agressor injusto».
É de facto muito curiosa uma religião que admite a pena de morte!
É de facto muito curioso que haja alguém que ora defende os valores éticos e absolutos da vida humana quando fala de um embrião, para logo a seguir esquecer essa mesma «ética fundamental» quando fala de uma pessoa adulta e admite que os seus semelhantes lhe tirem a vida, esse tal «valor absoluto», como castigo por uma acção por si praticada.
Que haja quem defenda o «sim» e o «não» à despenalização do aborto, isso entendo perfeitamente.
Por isso é que haverá um referendo onde todos devem ter o direito de votar em liberdade e de acordo com a sua consciência.
Mas já não compreendo a profunda hipocrisia e a inqualificável desonestidade intelectual de quem, por se intitular católico e por isso se achar dotado de uma superioridade «ética fundamental», ora se manifesta contra a despenalização do aborto em nome do «valor absoluto» da vida de um embrião, ora, orgulhando-se de pertencer a essa tenebrosa associação que é a Igreja Católica Apostólica Romana, é também e ao mesmo tempo favorável à pena de morte!

(Publicado simultaneamente no «Random Precision»)