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10 de Maio, 2013 José Moreira

Religião e arte

O facto de ser ateu não me impede de admirar a arte religiosa. Ainda vou tendo o discernimento suficiente para separar as águas de modo a entender um “Requiem” como arte musical e não como uma oração fúnebre.

Por isso não fiquei minimamente chocado quando um amigo que, recentemente, tinha visitado Roma e um dos bairros mais mal frequentados da capital italiana, me descreveu o encanto que sentiu ao visitar a Capela Sistina e a fabulosa pintura de Miguel Ângelo: “Tu não imaginas, pá, aquela perfeição, aqueles pormenores! Olha que até o umbigo de Adão é visível!”

Confesso que ainda não tive oportunidade de ver, ao vivo e a cores, a fabulosa pintura; mas também não é muito importante, porque a “Criação de Adão” está à distância de um clique. Tenho-a, agora, à minha frente, e dá para confirmar as palavras do meu amigo: Adão tinha umbigo.

Se tivesse sido feito pelo velhote, nunca poderia ter umbigo. Adão foi gerado, não foi criado.

Tal como o outro.

O J. Cristo.

10 de Maio, 2013 Carlos Esperança

E assim vai o meu país…

Com um milhão de desempregados, e a ameaça a pairar sobre os que ainda mantêm um posto de trabalho, instala-se o medo e bloqueiam-se os sonhos e a esperança.

Há nas ruas, nos transportes públicos, nas repartições e oficinas, um silêncio tenebroso, uma paralisia fúnebre e uma tristeza solitária.

A televisão espanhola aconselha rezas e velas acesas. Do Portugal profundo saem ainda velhos rurais, com restos do que foi uma farda militar, convencidos de que foi a Senhora de Fátima que fez o milagre de regressarem vivos da guerra colonial. Buscam a ventura sonhada, para depois da vida, quando se extingue a confiança na única que nos coube.

Quando da terra, que deixou de amanhar-se, e do mar, que vai deixando de dar peixes, não vêm sinais animadores, as pessoas erguem as mão para o céu, numa resignação contida, e vão a pé a Fátima.

São avós que pedem um emprego para o neto, pais a quem se esgotam as prestações de desemprego e mães que veem a dispensa vazia e a quem minguam os ingredientes para a sopa que fumegava à mesa.

Da Europa sonhada por Schuman e Monnet e, ainda, por Delors, resta a merquiavélica visão da agiotagem. Deixámo-nos deslizar para o terreno barroso do nosso desencanto.
Troicam-nos por um prato de lentilhas.

Quanto maior é a desgraça mais a fé se exacerba e a superstição se aprofunda. Fátima é o pântano onde se afoga o desespero.

6 de Maio, 2013 José Moreira

Democracia e laicidade

Quando convém, a nossa comunicação social, em geral, e os nossos políticos em particular, enchem a boca de democracia e laicidade. E são capazes de jurar a pés juntos e com um prego aceso na mão que Portugal é um estado democrático e perfeitamente laico, não tendo o menor pejo em invocar a Constituição como a principal e melhor testemunha.

Entendamo-nos. É tudo uma questão de rigor linguístico – ou de falta dele. Porque omitem uma palavra que, apesar de pequena, faz toda a diferença. É um singelo advérbio e modo que dá pelo nome de formalmente. Exacto. Portugal é um país formalmente democrático, e formalmente laico.

Em Portugal, a justiça é igual para todos, ninguém está acima da Lei, a saúde é tendencialmente gratuita  e a educação é mesmo gratuita, toda a gente tem direito ao trabalho. Formalmente falando, claro.

Em Portugal, a religião está separada do Estado. Formalmente. Porque a prática diz-nos, precisamente, o contrário. A TV do Estado, de todos nós, encheu-nos o Domingo com as Festas de Barcelos, o que até nem seria grave, se não fizessem o patético esforço de tentar justificar a origem das festas, enchendo o tempo com estórias cuja veracidade está a anos-luz da razão. Mas isso ainda é o menos; porque ao fim da tarde, a dita “primeira-dama”, esposa de um presidente de uma república dita laica, aparece no meio de uma procissão religiosa cuja única finalidade visível é a de aproveitar o sol para tirar o cheiro a mofo do mamarracho, e tentar aliviar-lhe o caruncho. E tivemos de gramar largos minutos, como se o folclore tivesse alguma importância para o momento que o país atravessa.

Tudo isto, afinal, a propósito do nome do futuro hospital de Lisboa. Que, num país laico, vai chamar-se “Hospital de Todos-os-Santos”. Mas o que é que têm os santos a ver com os hospitais de um estado que se diz laico? Já agora: vale uma aposta em como vai levar benzedura?

Portugal, país laico e democrático? A língua portuguesa é mesmo muito traiçoeira…

29 de Abril, 2013 Carlos Esperança

Esta tarde triste e pardacenta – cenas do quotidiano

Avança fria e chuvosa a tarde em Coimbra. Da janela da minha biblioteca, com os pés sobre a escalfeta, gozo o conforto pequeno-burguês de 44 anos de trabalho e descontos, enquanto os estarolas do Governo me deixarem, e olho pela janela.

Vejo uma vez mais o homem de cerca de quarenta anos que revolve o lixo do contentor que fica no lado oposto da rua. Observo os gestos lentos com que retira algo que leva à boca e mastiga. Não sei se é alienado ou apenas um desesperado que vem aconchegar a mucosa gástrica com vitualhas conspurcadas por bactérias que habitam o lixo.

Hesito entre chamá-lo a partilhar os restos abundantes de uma refeição em que sobram sempre alimentos para uma boca mais ou deixá-lo cumprir um ritual que todas as tardes me incomoda. O temor da sua reação impõe-se à solidariedade que me exige chamá-lo.

Não posso sentir-me confortável no habitat que me coube. Quando à minha volta vejo a miséria e fico inerte também eu me torno miserável. O homem partiu enquanto escrevia este desabafo. Amanhã, ou depois, lá virá de novo a este caixote, ou a outro, enquanto o medo ou o preconceito me tolhe um gesto humano e fazem de mim outro miserável que vê o semelhante a chafurdar no lixo que ali deixei, a recolher os resíduos de quem ainda não tem necessidade de o disputar.

Que raio de sociedade! Ainda hei de saber quem é aquele homem, este irmão de que não sei o nome, morada, se a tem, ou o passado, se isso interessa. Devia, pelo menos, saber como posso ser-lhe útil.

É esta tragédia que as religiões aproveitam para a conquista do poder.

26 de Abril, 2013 Abraão Loureiro

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