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Autor: Onofre Varela

17 de Agosto, 2023 Onofre Varela

FÁTIMA (2)

Texto de Onofre Varela previamente publicado na imprensa escrita.

As tentativas de explicação para a “visão” dos pastorinhos em Fátima no ano de 1917, são várias. Desde as puramente religiosas, alicerçadas na fé pura, sem qualquer tentativa de explicação que ultrapasse a fé, até às mais rebuscadas e espantosas, passando pela realidade do momento histórico que então se vivia em Portugal. 

A República recém instalada (1910) destronou uma monarquia decrépita, e o poder que a Igreja mantinha até aí, ruiu por força das leis republicanas que separaram a Igreja do Estado. O sentimento anti-clerical da época compreende-se pelo facto de haver um clericalismo feroz a pedir o seu contrário. 

O povo, extremamente religioso, provavelmente sentia-se perdido entre a sua fé enraizada no mais profundo dos seus pensamentos, e a lei da República que lhe dizia, ao estilo de Camões, “Cesse tudo o que a Musa antiga canta, que outro valor mais alto se alevanta”!… 

A par disso havia o espectro da guerra. A Primeira Guerra Mundial iniciou-se em 1914 e o Exército Português participava nela. As famílias portuguesas perdiam os seus jovens nas trincheiras da Flandres, onde os soldados alemães causaram (um ano depois, a 9 de Abril de 1918) a maior derrota que os portugueses tiveram em confrontos bélicos, desde Alcácer-Quibir em 1578 (onde perdemos o rei D. Sebastião e, por arrasto, também perdemos a independência, passando Portugal a ser governado pela coroa espanhola durante 60 anos). 

Era provável que, em 1917, os portugueses se sentissem mal. E a Igreja, em particular, que era perseguida pela nova política, precisava de “um milagre” que recuperasse o seu crédito… e inventou-o, criando as “aparições marianas” já experimentadas em Lourdes (França) com êxito! 

Estas considerações históricas poderão conter alguma explicação para a origem do que aconteceu em Fátima em 1917… mas não explicam tudo. Para mim há algo que não pode ter ocorrido: a aparição da mãe de Jesus. Por várias razões. A primeira razão pertence à História Natural. Quem morre não “aparece” vivo. O meu gato jamais experimentará a “visão” do seu avô persa falecido, porque não tem imaginação para isso. A inteligência do Ser Humano dá-lhe essa imaginação, e a partir daí tudo é possível ao nosso poder criativo. 

Poderá haver alguém que diga ter visto um ente querido depois de este ter morrido, mas na realidade não viu! Foi o seu cérebro que construiu essa visão. Porém, no caso de Fátima há uma particularidade intrigante: aquilo que foi tomado pelo Sol a mover-se, crendo no que foi escrito na época, foi testemunhado não só pelo povo crente aglomerado no local da “aparição”, que poderia constituir um fenómeno de alucinação colectiva, mas também por quem se encontrava a 40 quilómetros de distância, sem o ambiente propício a tal alucinação! 

O que foi que aconteceu, então?!… 

Na verdade, não sei… e este meu desconhecimento não me permite aceitar “as aparições de fé” do modo como a Igreja as quer fazer passar. 

Mas sei que há uma tentativa de explicação que, sendo tão fantástica quanto a aparição de Maria… me parece muito mais coerente.

(Continua)

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

Imagem de CrisG por Pixabay
15 de Agosto, 2023 Onofre Varela

FÁTIMA (1)

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Em Maio de 1917, no lugar da Cova de Iria (Ourém), três crianças que apascentavam gado teriam observado algo que identificaram com a imagem de uma mulher luminosa sobre uma azinheira. 

Até Outubro (no espaço de seis meses), a observação repetiu-se mensalmente nos dias 13, fazendo crescer o interesse pelo fenómeno, mês após mês, levando ao lugar centenas de pessoas animadas pelo fervor religioso daquelas “aparições” testemunhadas pelos três pequenos pastores. 

Inicialmente a Igreja manteve-se afastada da crendice popular, negando as crianças. Mas os acontecimentos operados no lugar da azinheira, palco das aparições, foram de tal monta, que levaram os crentes a construírem toscos altares em forma de monumento. A deslocação de milhares de crentes e de curiosos, àquele lugar todos os dias 13, tomou conta da opinião pública e a Igreja não teve outro remédio se não aceitar as versões dos pequenos pastores (explicação na sua “versão oficial”)… porém… com retoques. 

As três crianças garantiam que aquela senhora falante do cimo da azinheira, estava envolvida em luz, tinha cabelo curto e saia por baixo do joelho. A Igreja construiu outra imagem mais coerente com a tradicional ocultação de simbologia sexual. Os cabelos e as pernas, por serem “elementos de pecado”, foram tapados com um manto ao estilo das burcas islâmicas, e a imagem passou a ser adorada como sendo Maria, a mãe de Jesus Cristo. 

Na última aparição, a 13 de Outubro, o lugar da Cova de Iria estava apinhado de gente vinda de todo o país. Foram ali com o propósito de assistirem ao fenómeno que os pequenos pastores garantiam acontecer mensalmente. Se, até aí, as visões eram testemunhadas, apenas, pelas crianças, não tendo ninguém mais visto a tal senhora sobre a árvore, nem ouvido coisa alguma, naquele derradeiro dia aconteceu aquilo que, religiosamente, se acredita ter sido “o bailado do Sol”. O astro-rei moveu-se, zigue-zagueante!… Desceu, subiu e chispou luzes feéricas em todas as direcções. 

Os jornais dos dias seguintes noticiaram que aquele bailado solar também foi testemunhado por quem se encontrava a cerca de 40 quilómetros do lugar onde a gente se apinhava para assistir à aparição da senhora. Naquele dia, chovia. Ao meio-dia, a chuva parou. As nuvens dissiparam-se mostrando o Sol a mover-se. O calor era tanto que as roupas dos assistentes, ensopadas pela chuva ininterrupta, secaram. 

Este fenómeno movente do Sol causa sérias interrogações. Como se sabe, o Sol é o astro central do sistema planetário a que pertencemos, e não se move do seu lugar. As distâncias dos planetas ao astro que nos dá luz, calor e vida, são sempre as mesmas, ditadas pela movimentação elíptica de cada um deles nas suas órbitas, o que, no caso da Terra, nos permite termos Primavera, Verão, Outono, Inverno… e Vida! 

Se aquele globo faiscante não era o Sol (era impossível sê-lo)… então o que seria?… o que foi que viram as testemunhas do fenómeno? 

(Continua)

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

Imagem de CrisG por Pixabay
4 de Agosto, 2023 Onofre Varela

Crer e Saber

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

O Homem é um animal dotado de inteligência, o que o torna superior aos restantes animais seus companheiros da vida na Terra. Por isso mesmo é, também, um ser religioso por natureza e excelência, cuja característica de animal inteligente o levou à criação dos conceitos do belo, da Arte, do sagrado e dos deuses, e à consequente prática de cultos religiosos. 

As instituições dedicadas à exploração da fé religiosa (vulgo, Igrejas [*]) pretendem ser proprietárias do conceito de Deus – sobre o qual se erigiram civilizações – mas, na verdade, do mesmo modo como a Língua que falamos é propriedade nossa, também o conceito de Deus a todos pertence, independentemente de seguirmos, ou não, uma fé religiosa, porque o conceito dos deuses é uma invenção da espécie Homo sapiens sapiens

Nessa pretensão de posse, a Igreja Católica já perseguiu e puniu com tortura e morte quem se atreveu a abordar a divindade fora do âmbito da sua fé. E o Islamismo extremista ainda hoje mata em atentados terroristas praticados em nome de Deus, com os assassinos a gritarem “Allahu akbar” (Alá é grande). No século XXI voltamos à barbárie, desta vez refinada, que os mais bem intencionados de nós já tinham arrumado nas prateleiras da História mais macabra e longínqua, e que tanto desilustra a Humanidade. 

Por isso devemos considerar, e sublinhar, que crer em Deus não é o mesmo que saber sobre Deus. O saber precisa de conhecimento, obrigando à constante renovação das ideias, sem o que, o verdadeiro saber não existe. 

A par disto há a considerar que o saber é lento, frio e racional. A crença, não! A crença é emotiva, ferve em pouca água e, por vezes, provoca danos irreversíveis. Na crença afirma-se sem se saber, com a mente aquecida pela emoção cega. O crente não sabe, de saber certo, aquilo que afirma saber, porque crer não é saber. Por muito que eu creia que o comboio parte ao meio-dia, eu vou perdê-lo se não souber que ele parte às dez horas da manhã (se não houver greve!…).

A crença rejeita a dúvida e afirma a certeza na fé. O saber obriga à constante investigação e abertura ao que é duvidoso, novo e contraditório. Sem esta atitude de curiosidade e humildade, podemos ser crentes… mas nunca seremos sabedores. 

Em tudo, na vida, por uma questão de honestidade para connosco e com os outros, e até para que cada um sinta segurança no seu próprio raciocínio, é indubitavelmente preferível que se saiba, do que se creia. 

Há que dizer que as religiões também são “modos de saber”, no sentido emocional da crença. Isto é: quando eu “sei” que Deus existe “porque o sinto”, adquiro um “saber” que ninguém destruirá, pois o meu sentimento mais profundo me diz estar a verdade do meu lado. É este “saber” que faz a “razão” dos crentes… embora não seja saber, nem razão, na verdadeira acepção dos termos, porque não pode ser aferido pelo saber das ciências, nem pela razão filosófica enquanto forma de chegar a conclusões reais, porque estas são contrárias àqueles “saberes” que não passam da imaginação que a fé alimenta. 

É este “saber religioso” que constrói os fundamentalistas… e alguns até são criminosos.

[*] – Igreja: do grego “Ekklésia”, significa “assembleia”, no sentido de reunião de crentes numa fé religiosa.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

Imagem de Yanis Ladjouzi por Pixabay
3 de Agosto, 2023 Onofre Varela

«El Derecho a Cagar-se em Dios»

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Escolhi para encabeçar esta crónica o título de um livro de Richard Malka, na sua versão espanhola (libros del Zorzal, 2022), com o título original em francês: «Le droit d’emmerder Dieu», publicado em 2021.

O seu autor é o advogado que defendeu o jornal satírico francês Charlie Hebdo no julgamento dos terroristas que invadiram a redacção do jornal no dia 7 de Janeiro de 2015 e mataram 12 jornalistas-cartunistas. Richard Malka lembra que o julgamento dos terroristas islâmicos também serviu para demonstrar que o Direito se sobrepõe à força, e recordar o “alcance político, filosófico e metafísico” dos atentados cometidos pelos fanáticos do Islão que matam e destroem tomados pela convicção de que “Deus assim quer”.

As vítimas do Charlie eram pessoas que riam e desenhavam, no desfrute das mais básicas liberdades, as quais os fanáticos assassinos não têm. Nas suas mentes só podem ser encontradas neuroses e frustrações alimentadas por uma crença primitiva destruidora da razão, da inteligência e do bom senso. Para estes agentes religiosos extremistas, apenas contam as inexistentes “leis do céu” e não têm medo de morrer. Preferem a morte à vida.

A seguir aos atentados houve gente socialmente bem colocada, como filósofos, sociólogos e até “uma antiga candidata às eleições presidenciais”, que defenderam o abandono do “direito a caricaturar e a criticar livremente as religiões”!… Richard Malka pergunta: “Como pretender tal coisa com um mínimo de honestidade intelectual?”.

Os terroristas detestam as nossas liberdades e não se detêm no ataque ao modelo de sociedade democrática ocidental, que escolhemos na defesa da liberdade no sentido universalista, baseado na Razão e na liberdade de expressão, contrariando a sociedade dos fanáticos que é constituída pelo dogma e pela submissão. Os terroristas ameaçam as suas vítimas com a promessa de “estripá-las, queimá-las vivas, violá-las, degolá-las, e enviam-lhes fotos de cabeças decapitadas. Vocês não podem imaginar a violência das mensagens” que estes destinatários, escolhidos pelos fundamentalistas, recebem.

Perguntando “Como chegamos a esta situação?” o autor responde: Uma organização chamada Sociedade Islâmica da Dinamarca, instruiu o Iman Ahmad Abu Laban para construir um dossiê com as doze caricaturas de Maomé publicadas no jornal Jyllands-Posten em Setembro de 2005, juntando-lhes outras três, de desenho primitivo e sem nome do autor (essas, sim, bastante ofensivas do profeta Maomé!…). Era uma estratégia para inflamar o sentimento religioso muçulmano… o que foi conseguido.

Ahmad Abu viajou pelo mundo árabe publicitando aquele dossiê como isco a ser mordido pelos religiosos mais fundamentalistas… e assim se deu início ao incendiar de paixões religiosas extremistas, organizaram-se acções de rua com queima de bandeiras, embaixadas atacadas, atentados e assassinatos, tudo à conta de um embuste criado pelos ímanes da Dinamarca. 

Richard Malka interroga: “quem deita gasolina no fogo? Quem caricatura o Irão? Nós, ou os ímanes dinamarqueses? Acaso os blasfemadores não foram os ímanes que inventaram as caricaturas ofensivas? Quem conhece esta história? Conhece-a o príncipe Al Thani do Qatar, que nos quer dar lições de anti-racismo e mantém trabalhadores estrangeiros sem passaporte e os trata como escravos? Conhece-a o presidente Erdogan que nos quer dar lições de tolerância e massacra muçulmanos kurdos numa autêntica limpeza étnica?

Massacrar milhares de muçulmanos não é islamofobia… mas publicar desenhos, sim?!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

1 de Agosto, 2023 Onofre Varela

O mau e o bom, nos discursos da mesma Igreja

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Continua na ordem do dia o caso dos crimes sexuais praticados por sacerdotes católicos no seio da Igreja que se proclama distribuidora de amor e tem a sua história manchada por crimes de ódio perpetrados pela Inquisição rotulada de “santa”, e crimes de índole sexual cometidos ao longo da sua história milenar até aos nossos dias e à nossa porta. 

O bispo José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), não foi feliz na negação de apoio às vítimas, o qual devia ser assumido pela Igreja enquanto entidade que alberga os sacerdotes acusados por violação sexual. Disse que a questão desse apoio, referente às indemnizações “é clara, tanto no Direito Canónico como no Direito Civil. Se há um mal feito por alguém, esse alguém é que é o responsável pela indemnização”. 

Em seu entender, a lista que a Igreja recebeu da Comissão de Investigação dos crimes sexuais cometidos pela Igreja, não passa de uma simples lista com nomes, sem possibilidade de se comprovar os actos criminosos alegadamente cometidos por sacerdotes da sua Igreja. As vítimas teriam de fazer prova das suas violações para, só então, os sacerdotes acusados poderem ser alvo de um inquérito no sentido de se averiguar a veracidade da acusação… como se fosse possível comprovar um crime sexual sem testemunhas a assistir!… Como é que um abusado, em criança, prova, em adulto, a sua violação?!… Ele tem, como prova, a sua recordação, o seu trauma e a sua vergonha!… 

Depois, o bispo Ornelas deu a mão à palmatória dizendo que não foi feliz, que a sua comunicação não foi adequada e não conseguiu passar aquilo que tinha para dizer… mas que não soube dizê-lo. 

Um mês antes deste deslize, o mesmo bispo teve um discurso positivo que eu aplaudi. 

No dia 8 de Fevereiro a imprensa noticiou que a CEP levou à assembleia continental europeia do sínodo dos bispos que decorria em Praga, na República Checa, uma lista de reivindicações no sentido de a Igreja ser mais aberta à mudança e promover a participação da mulher em igualdade de oportunidades. 

Da mesma lista consta o acolhimento dos novos modelos familiares, das famílias mono-parentais e dos divorciados novamente casados, incluindo os “casais” do mesmo sexo. 

E mais disse: “é preciso acabar com o hermetismo que rodeia o tema dos abusos sexuais perpetrados no seio da Igreja”. 

Relativamente ao acesso das mulheres ao sacerdócio, à ordenação de homens casados, à identidade sexual e de género, mais o celibato dos padres, José Ornelas defendeu que é preciso “adaptar a linguagem litúrgica aos tempos actuais”. 

Disse ainda que “o clericalismo obstaculiza a mudança, o legalismo arbitrário afasta os fiéis e o rosto burocrático de muitas comunidades são geradoras de tensão e, muitas vezes, de abandono”.

Defendeu a necessidade de se rever a formação dos seminaristas, bem como a de a Igreja readquirir a relevância social numa Europa cada vez mais descristianizada, onde a dimensão institucional da Igreja tem uma relevância cada vez menor. 

Estes discursos fazem o retrato do catolicismo que continua a ser isto: uma martelada no prego… e outra na ferradura. 

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

OV

29 de Julho, 2023 Onofre Varela

Mitologia no reino da crença – (2)

Texto de Onofre Varela previamente publicado na imprensa escrita.

Sabe-se que as mitologias se copiam, se adaptam e se repetem, e que essa característica se reflecte, também, nas religiões, o que terá motivado o gravador, poeta e tipógrafo inglês, William Blake (1757-1827), a publicar, em 1788, a sua célebre frase “Todas as religiões são uma só”.

Como exemplo ilustrativo do encontro (ou cópia) de narrativas mitológicas, focarei o caso de Zohak, ambicioso filho de um rei do deserto, que se deixou tomar pelo espírito do mal e matou o seu próprio pai para se apossar do trono. Mas uma noite, em sonhos, Zohak viu-se vencido por um jovem príncipe. Ao acordar sentiu pânico pela possível perda do poder, e ordenou a todos os sábios do reino que interpretassem o seu sonho. Um deles, de nome Mobed, disse-lhe que o seu trono iria ser tomado por um jovem acabado de nascer, e que seria “para a Terra, um augusto céu”. Aterrorizado, Zohak mandou massacrar todos os recém-nascidos, esperando matar, ainda no berço, aquele que deveria pôr termo ao seu reinado (*). 

Esta lenda do deserto esteve, por certo, na origem da narrativa do Novo Testamento que conta a maldade de Herodes na tentativa de matar Jesus Cristo recém-nascido! 

Na mitologia grega, Zeus concebeu Hércules deitando-se com Alcmena, mulher do general Anfitrião, ajudado por Sósia que tomou a forma do criado de quarto de Alcmena para vigiar o regresso do general ausente na guerra de Tebas. Mito grego que nos legou a palavra Anfitrião (aquele que recebe em sua casa), e Sósia (aquele que é semelhante a outro), e que foi copiado na versão cristã da gravidez de Maria pelo Espírito Santo, em versão mais cândida sem relação sexual. 

A história de Moisés, abandonado em bebé numa cesta flutuando nas águas do Nilo, é cópia das histórias de Ciro e Ardashir, bem como da de Sargão, rei Sumério que viveu cerca de 600 anos antes, e que em bebés foram abandonados num cesto nas águas do rio Eufrates. 

De igual modo, os gémeos Rómulo e Remo, filhos proibidos da vestal Reia Sílvia, foram lançados no rio Tibre numa cesta. Encontrados por uma loba que os amamentou, cresceram, alcançaram a fama, e Remo fundou Roma no ano 753 AC.

Estas lendas que contam o sucesso de quem, pelo nascimento, parecia talhado para a desgraça, tem a mais valia de alertar os menos afortunados para a possibilidade de se libertarem do “mau-destino” se procurarem outros caminhos ao encontro de um futuro mais promissor, no sentido de que não há quem nasça com o destino marcado… o destino de cada um é construído pelo próprio, de acordo com as oportunidades que tem, e do seu querer e saber.

(FIM)

(*) – História das Mitologias II. Direcção de Félix Guirand. Edições 70. Lisboa, 2006. Págs. 199 e 200.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

28 de Julho, 2023 Onofre Varela

Mitologia no reino da crença – (1)

Texto da autoria de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

A Mitologia legou-nos fantásticas narrativas que testemunham o nosso poder de abstracção do real – sinal de inteligência superior – e atestam a crença em poderes sobrenaturais, na construção da sensibilidade religiosa. O espírito dos mortos e as divindades, com ou sem forma humana, povoam as várias mitologias ainda hoje visíveis sob a forma ritualista enquadrada na etnografia de todos os lugares do mundo, incluindo nela as religiões.

Os mitos e as lendas são narrativas que identificam os povos. Para Roland Barthes, a narrativa é um dos mais eficazes instrumentos de conhecimento que acompanham a Humanidade desde os seus alvores. Não há povo sem uma narrativa que, simbolicamente, o represente. Contos, fábulas, relatos, crónicas e epopeias, são os suportes da narrativa que enaltece os feitos, as leis e as virtudes de um povo. Essa narrativa funciona como emblema, ou marca, da realidade comunitária, e tem responsabilidades na formatação do pensamento dos indivíduos da comunidade.

A Bíblia está nessa linha. É uma colectânea de narrativas lendárias misturadas com feitos, factos e personalidades reais que fazem História. Por tão misturadas, há lendas que passam como verdades históricas (exemplo das dez pragas do Egipto, da fuga dos Hebreus e do abrir das águas para o “povo eleito de Deus” poder atravessar o mar a seco). Os primeiros cinco livros da Bíblia – do Génesis até ao Deuteronómio – são uma colectânea de narrativas que misturam lenda e História, enformando a identidade de um povo concreto: o Israelita.

Na Mitologia Egípcia o deus Rá extraiu de si mesmo, e sem união com uma mulher, o primeiro casal divino, ao mesmo tempo que criava o primeiro universo, governando-o a partir do seu palácio. Mas com o correr do tempo revelou-se a ingratidão dos homens… o que lhe inspirou o desejo de deixar a Terra e de se refugiar longe dos seres que criara, indo para o céu, para o seu palácio celestial, de onde passou a reinar como Deus-Sol, criando, então, o nosso mundo actual.

Esta estória mitológica egípcia tem muita semelhança, na forma, com a narrativa bíblica que conta a criação de Adão e Eva, o arrependimento de Deus por ter criado um Homem de índole tão perversa, e a solução do dilúvio que a divindade encontrou para acabar com o mal feito e recomeçar a sua obra com um mundo novo.

É bastante plausível que os Hebreus autores do Génesis bíblico se motivassem neste mito egípcio, muito provavelmente importado da Mesopotâmia dos Sumérios (a primeira civilização) para construírem a sua própria Cosmogonia. 

Voltarei ao tema no próximo artigo.

(Continua)

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

Imagem de Zorro4 por Pixabay
26 de Julho, 2023 Onofre Varela

A dignidade da Igreja ou a falta dela

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Vou alinhar na moda dos articulistas de jornais e escrever sobre aquilo que “está a dar”… o que está mais vivo nas nossas memórias enquanto Portugueses atentos à Comunicação Social. Se, até há uma semana, era o terramoto na Turquia e na Síria que tomava o lugar da importância noticiosa dada à guerra que Putin faz à Ucrânia, agora é a pedofilia clerical na sua versão portuguesa.

Enquanto ateu não estou nada preocupado com o futuro da Igreja… mas preocupo-me com o futuro dos jovens que lhe caem dentro, sejam estudantes seminaristas, ou crentes tenrinhos em preparação do espírito religioso para a comunhão, e que podem acabar abusados sexualmente precisamente por sacerdotes em quem confiam e de quem ouvem o discurso “Deus é amor”!

Os crimes de pedofilia cometidos no seio da Igreja não vão terminar após a leitura do resultado deste inquérito sobre crimes sexuais de sacristia. Depois da “poeira assentar”, a Igreja continuará a albergar dentro de si abusadores sexuais.

Os casos de sexo criminoso só poderão ser reduzidos (o óptimo era serem erradicados), quando o tema “sexo” não constituir tabu para a Igreja, nem os sacerdotes se obrigarem à hipócrita “castidade”. Um padre é um animal como qualquer outro homem; tem sexo e instinto. A Natureza que o comanda obriga-o à prática sexual. Se o não pode fazer legalmente, fá-lo-à criminosamente!… Quem não percebe isto não percebe nada… e parece que a Igreja nunca o percebeu.

Contrariar a Natureza é o que os ensinamentos católicos sempre fizeram. Desde a negação de que o Homem é um antropoide sujeito a uma evolução natural, afirmando ter sido criado por um deus de fábula já com a forma definitiva… até à absolvição divina, de todas as más acções cometidas, através do acto medieval da “confissão”.

A Igreja poderá transformar-se numa instituição socialmente mais aceitável e credível quando, no sacerdócio, houver mulheres e padres casados. Enquanto essa evolução não se verificar, os crimes de pedofilia continuarão a ser praticados pelos religiosos mais próximos das crianças.

Pedidos de perdão e indemnizações aos ofendidos não resolvem em definitivo os males provocados, nem garantem o abandono de práticas criminosas. O dinheiro não vai curar as feridas psicológicas causadas pela violação das vítimas, porque as feridas vão acompanhá-los por toda a vida, embora possa ser usado para custear actos médicos no alívio do mal.

Os agressores tiveram a sua “construção psicológica” erigida durante a permanência no seminário sem contactos com o sexo oposto. Se esta situação não garante o nascimento de um pedófilo, também não pode afirmar o contrário… e em algumas mentes poderá conduzir ao uso do sexo na alcova do crime.

A situação socialmente inaceitável da Igreja começa no momento em que o credo religioso se considera “intocável”. Não criticar a Igreja é a primeira atitude para alicerçar e permitir os abusos por ela praticados. O extremo poder da Igreja sobre as populações culturalmente indefesas dos países católicos por tradição milenar é, por si só, uma “atitude pornográfica”. Os poderes numa sociedade moderna, verdadeiramente progressista e democrática, têm de ser diversificados para que os abusos não sejam cometidos com tanta facilidade ou, até, serem evitados.

Quando há poder absoluto, os detentores desse poder podem fazer de tudo… e a Igreja sempre deteve todo o poder do mundo, exercendo-o a seu bel-prazer a coberto da “intocabilidade sacra” e com o apoio que sempre recebeu de ditaduras e democracias, com as quais convive promiscuamente.

É esta intocabilidade que ainda mora dentro de cabeças cardinalícias… e é por aí que se deve começar o desmoronamento da mentalidade bafienta e medieval que faz o retrato oficial da Igreja.

Mulheres na actividade sacerdotal e casamento dos sacerdotes, poderá ser a porta de saída dos pedófilos, e a porta da entrada de alguma dignidade nesta Igreja tão carente dela!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

Imagem de Peter H por Pixabay
24 de Julho, 2023 Onofre Varela

A História diz-nos que deus é perigoso

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

O conceito de Deus, entendido como poder, é tão perigoso quanto qualquer outro poder quando ele nos é imposto como paradigma da “Verdade Absoluta”, obrigando-nos à sua submissão e adoração, sem limites nem interrogações. O “poder dos deuses” sempre foi uma ditadura persecutória, explorado pelos líderes das comunidades que o usavam para oprimir o Povo, conseguindo a sua subserviência ao poder temporal, amedrontado-o com o castigo divino. Os credos religiosos subjugam-nos desde a Antiguidade mais remota até aos nossos dias e à nossa porta, e é neste sentido que deve ser entendida a frase: “A História diz-nos que Deus é perigoso”. Fora deste contexto de subjugação a um deus, numa sociedade sadia dispensadora da droga do divino, uma corrente de ar é bastante mais perigosa para um corpo desprotegido… e Deus vale zero.

Embora esse poder continue a ser praticado ao serviço dos vários interesses que comandam a sociedade em que nos inserimos, estamos numa posição diferente daquela em que viveram os povos de outros tempos sob a ditadura dos sacerdotes. Hoje não são apenas as religiões que dirigem a vontade dos povos; os partidos políticos e os grupos económico-financeiros também fazem parte da lista dos exploradores da boa-fé das populações. Somos comandados pelos poderes que dominam a sociedade e nem nos damos conta de que são muitos. Na verdade, quando um anónimo cidadão temente a Deus ajoelha no templo em frente ao altar do santinho da sua devoção, julga fazê-lo perante a divindade. Foi isso que lhe disseram em menino e é nisso que ele acredita. Mas na verdade ajoelha-se perante um Poder: o poder da Igreja que amarra as mentes crentes à ideia opressora de Deus. A seguir vêm todos os outros poderes, e não é raro a própria entidade patronal (a quem o temente a Deus vende a força do seu trabalho) pertencer à casta dos que colhem da seara divina (é, até, muito vulgar) porque a ideia de Deus traz acoplada a submissão à autoridade, seja ela divina ou humana. O patrão tem poder sobre os seus assalariados, podendo negar-lhes o pão quando muito bem entender, e na verdade já o nega quando lhes paga salários miseráveis e compra habitações de luxo e automóveis topo de gama para si próprio com o lucro que arrecada do trabalho miseravelmente pago. As leis nesta era da globalização, estão feitas à medida dos poderes da banca e da Economia, numa Europa desenhada para a submissão do Trabalho ao Capital, e da Política à Economia e à Alta Finança, protegendo a exploração do trabalho com direitos reduzidos para alimento de um sistema económico asselvajado.

Neste sistema social há uma verdade histórica a considerar: “o Povo é tanto mais explorado quanto mais religioso for”. E há mais esta: “a sociedade tem tanto mais ricos, quanto mais pobres forem as pessoas que a constituem”. E isto não é mais do que sinal de primitivismo!

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

21 de Julho, 2023 Onofre Varela

O acaso e a ideia de deus.

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Quando o “Homo sapiens” teve consciência de si e do meio em que vivia, deu-se a primeira grande Revolução do Pensamento, iniciando-se aí um caminho de busca e descoberta que jamais parou. 

O nosso pensamento, enquanto banco de dados (e ainda sem dados em número e qualidade suficientes), começava, então, a fazer a incessante colecção de ideias usadas como ferramenta que, mesmo primitiva e deficiente, permitia o desbravar do desconhecido acrescentando mais dúvidas às nossas procuras, do que certezas satisfatórias e definitivas. 

Muito provavelmente foi assim que se iniciou a busca das explicações para os enigmas que nos caíam no pensamento como moscas em fruta podre. É de crer que, então, se construiu a primeira grande “ideia explicativa” em forma enigmática: uma panóplia de deuses! Cada deus acudia a um problema! 

No decorrer do avanço do conhecimento, o panteão que nos serviu de “enciclopédia” e pretensa despensa com “soluções” para todos os males e respostas para todas as perguntas, acabou por ser reduzida a, apenas, um único deus, criado e adoptado pelo povo Hebreu com base na lista dos deuses importados da civilização suméria. 

Hoje todos nós sabemos que Deus é “uma ideia”, um conceito. E também sabemos que uma ideia não tem poder sobre a matéria se não for concretizada. E Deus (assim, tal e qual como nos é apresentado, exactamente na forma como as religiões o pintam e adoram) não passa de uma ideia fantasista inconcretizável; logo, directamente, não pode agir sobre nada. 

Os fenómenos desenvolvidos pelo acaso (o que é o acaso?) indutor de transformações químicas e físicas que fazem a evolução natural, mais as acções dos homens, é que recebem, de nós próprios, o rótulo “obra de Deus”… mas a responsabilidade desse rótulo é nossa, e as acções e concretizações pretensamente divinas, também! Não são de Deus que, como actor fora do nosso pensamento, é inexistente. Logo, Deus não é, nem pode, coisíssima nenhuma. 

Deus é como a tinta na paleta de um pintor. Se não for o pintor a colocá-la na tela, ela própria, por si só, não produz obra (eis a resposta para o acasoo acaso é a terceira cor conseguida pela mistura de duas… e nunca é um acaso fortuito, porque obedece a razões químicas, físicas e matemáticas. Sem aquelas porções certas de cada cor, aquele “acaso” não seria assim, tal como se apresenta, mas um outro. Cada acaso tem a sua fórmula própria que lhe permite ser como é e não de outra maneira). 

Então, poder-se-á perguntar: crer em Deus é sinónimo de ignorância?!… Porque é que um licenciado (médico, por exemplo) tem, pelo conceito de Deus, a mesma adoração de um servente de pedreiro analfabeto? Será que o licenciado não aprendeu nada, ou o analfabeto sabe muito?! 

Não podemos, nem devemos, ajuizar o conhecimento de cada um a partir das suas crenças ou descrenças. A crença e o conhecimento podem co-habitar pacificamente na mesma mente. Embora sejam de naturezas diferentes, possuem vasos comunicantes e até se podem complementar. 

É preciso respeitar o outro e perceber o fenómeno desapaixonadamente, para se evitar confrontos azedos e sempre desnecessários. 

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

OV