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Entrevista ao Açoriano Oriental

Por Isidro Fagundes
a
Carlos Esperança

1 – Quando foi criada a AAP e o que motivou a sua criação?

– A AAP constituiu-se em associação, num cartório notarial de Lisboa, em 30 de Maio de 2008, após alguns anos de convívio e discussão intelectual entre ateus, no sítio ateismo.net, e depois de quase cinco anos de publicação ininterrupta do Diário Ateísta. A necessidade de defender a laicidade do Estado foi provavelmente o motivo principal que nos impeliu para a criação da AAP.

2 – Qual é o principal objectivo da AAP?

Não há um objectivo único. Há vários que não me permito hierarquizar:

– Fazer conhecer o ateísmo como mundividência ética, filosófica e socialmente válida;
– Representar os legítimos interesses dos ateus, agnósticos e outras pessoas sem religião no exercício da cidadania democrática;
– Promover e a defender a laicidade do Estado e a igualdade de todos os cidadãos independentemente da sua crença ou ausência de crença no sobrenatural;
– Despreconceitualizar o ateísmo na legislação e nos órgãos de comunicação social;
– Responder às manifestações religiosas e pseudo-científicas com uma abordagem científica, racionalista e humanista.

3 – Considera que persiste na sociedade portuguesa uma certa “diabolização” (perdoe-me a referência religiosa) do cidadão ateu e do cidadão agnóstico?

– Existe em Portugal um proselitismo mitigado por uma sociedade cada vez mais secularizada e descrente. Os interesses económicos das religiões, em Portugal especialmente os ligados à Igreja católica, estão na origem do azedume que o ateísmo provoca. As Igrejas estão mais interessadas na conquista dos mercados da educação, saúde e assistência, que movimentam verbas astronómicas, do que na divulgação do alegado martírio do seu deus.

4 – Se a AAP promovesse em Portugal uma campanha como a de Richard Dawkins em Inglaterra, como acha que seria a reacção da sociedade civil?

– Uma campanha idêntica está nos objectivos da AAP e não creio que as reacções sejam violentas. Uma sociedade democrática tem imensa capacidade de conviver com o pluralismo, apesar do proselitismo agressivo de certos meios simultaneamente beatos e reaccionários, claramente minoritários.

5 – Na sua opinião, Portugal é, na prática, um Estado Laico? Há uma efectiva separação entre o laico e o religioso na política, na educação, etc.?

– Há em Portugal atropelos graves à laicidade do Estado, como se pode ver com a participação dos mais altos dignitários do Estado, nomeadamente o Sr.Presidente da República e o Sr. Presidente da AR (açoriano, por acaso) nas cerimónias da canonização de Nuno Álvares Pereira, distinção atribuída pela Igreja católica ao herói medieval por ter curado o olho esquerdo de D. Guilhermina de Jesus com óleo de fritar peixe.
A AAP denunciou a manobra obscurantista e apelou, em comunicado, ao espírito crítico dos portugueses para que não creiam em afirmações infundadas ou, pelo menos, façam a distinção entre as crenças pessoais e o reconhecimento estatal da superstição.
A existência desnecessária de uma Concordata é prejudicial à liberdade religiosa que deve ser garantida, de igual modo, a crentes, descrentes e anti-crentes. A existência de capelães militares, hospitalares e prisionais é igualmente um dos muitos privilégios injustos da poderosa Igreja católica.
6 – Há alguma delegação da AAP nos Açores, ou há intenções de criá-la?

– Só há uma «sede» em Lisboa e jamais haverá qualquer delegação onde quer que seja. Os ateus não são prosélitos e, até hoje, nunca pedimos a quem quer que fosse para se tornar sócio da AAP. Nem pediremos. Nem apareceremos em casa das pessoas a dar a boa nova: «Deus provavelmente não existe…»

7 – No seu entender, qual é a importância actual da religião na sociedade? A religião está em declínio? Se sim, qual acha que é o motivo?

A religião vive da tradição, dos hábitos e dos medos das pessoas. Nos períodos de crise os crentes religiosos aumentam, tal como os clientes dos bruxos, quiromantes e de outros ofícios correlativos. E há solenidades que levam muitas pessoas a aproximarem-se da Igreja. Acontece com o baptismo, o casamento e o funeral – os ritos. A sociedade ainda não se organizou para prescindir da presença do clero em algumas situações.

8 – Qual John Lennon, peço-lhe que imagine um Portugal sem religião. Pinte-me um retrato do Portugal Ateu.

Não prevejo, a curto prazo, um Portugal sem religião, mas não vejo que tivesse outras consequências para além do desemprego eclesiástico.
Se me perguntar se o Estado deve ser ateu, respondo-lhe com veemência, que não. Um Estado ateu é tão perverso como um Estado confessional. Há exemplos de ambos. Trágicos. O Estado deve ser laico, pautar-se por absoluta neutralidade religiosa e defender o direito dos cidadãos à crença, à descrença ou à anti-crença.
Um Portugal com todos os cidadãos ateus (diferente do Portugal ateu, que não aceito) significaria que todos se assumiriam responsáveis pelos seus actos e pela sua forma de viver, dando valor à sua vida e à dos outros, cultivando a razão e confiando no método científico para construir modelos da realidade, e não remetendo as questões do bem e do mal para seres hipotéticos nem para a esperança de uma existência após a morte.

9 – Amanhã a RTP 2 emite o programa “VIA SACRA”, que define como “Via-Sacra que ao anoitecer de Sexta-feira Santa, nos faz congregar neste lugar evocativo de profundas recordações cristãs”. Para além disso, emite cerca de 12 programas que reúnem representantes de inúmeras confissões religiosas existentes em Portugal. Neste sentido, pergunto-lhe como reage a esta iniciativa do canal de serviço público programada para amanhã? Pergunto também se considera que há uma subrepresentação, ou mesmo ausência de representação dos cidadãos ateus no canal público? A tradição religiosa portuguesa justifica estes aspectos?

– Fico a saber pelo Sr. jornalista da existência do referido programa. Pela minha parte ignorá-lo-ei, naturalmente.
Penso que não é função de um canal público emitir programas religiosos mas não é esse o atropelo mais grave à laicidade a que o Estado se encontra obrigado.